Em 2020 foram 589 ocorrências de violência contra crianças de 0 a 11 anos. Nos três primeiros meses deste ano os foram 138 registros no Estado

Na primeira semana de março, Henry Borel, de 4 anos, chega morto em um hospital da Barra da Tijuca. O caso, que inicialmente foi tratado como consequência de um acidente doméstico, semanas depois chocaria o Brasil. O laudo necroscópico mostrou uma série de lesões internas e lacerações no corpo da criança, o caso passou a oficialmente ser investigado pela 16ª Delegacia de Polícia da Barra da Tijuca. Dias depois, o vereador Dr. Jairinho, namorado da mãe de Henry, Monique, é acusado de violência. A partir de sua repercussão pública, assim como quase todas as situações de grave violência, o caso tomou conta do noticiário. Entretanto, mesmo que acontecimentos como esses causem espanto, não se tratam de fatos isolados.

Na primeira semana de março, Henry Borel, de 4 anos, chega morto em um hospital da Barra da Tijuca. | Foto: Redes Sociais/Divulgação

Conforme levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) em parceria com a empresa de consultoria 360º CI, em um período de dez anos, entre 2010 e 2020, mais de 100 mil crianças e adolescentes foram a óbito vítimas de agressões. Desse número, cerca de 2 mil tinham menos de quatro anos, idade em que tinha Henry.

Para a deputada estadual Delegada Adriana Accorsi (PT), que atuou como titular por mais de oito anos na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) de Goiânia, o caso de Henry é uma história de brutalidade, covardia e omissão. “Todos esses casos de violência contra criança têm muitas semelhanças, e ler sobre o caso do Henry me deixou muito abalada, por me fazer lembrar de todas as situações de violência que já investiguei enquanto atuei na DPCA”, desabafa.

De acordo com dados apurados junto a Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás (SSP-GO), é grande a quantidade de ocorrências registradas por lesões corporais em crianças e adolescentes. Na faixa etária entre 0 e 11 anos, foram 589 casos em 2020, uma média de 49 casos por mês. No ano de 2019 o registro era ainda maior – 843 denúncias. Nos três primeiros meses deste ano foram 138 ocorrências. Já entre as idades de 12 a 17 anos, foram registradas 2.178 ocorrências em 2019, 1.480 em 2020 e 320 entre janeiro e março de 2021.

Delegada da DPCA Goiânia, Marcella Orçai. | Foto: Arthur Menescal/Reprodução

Ao observar os dados de forma superficial, é possível considerar a redução dos casos de violência contra criança no Estado. A Delegada da DPCA, Marcella Orçai, entretanto, acredita que a justificativa de maior probabilidade dessa redução de registros, foi o isolamento das crianças durante a pandemia. “Normalmente, as crianças contam nas escolas sobre as agressões. Com as escolas fechadas para colaborar com nesse passo, o número de denúncias cai”, opina.

Adriana Accorsi concorda. Para ela, a chance os casos terem diminuído são mínimas, uma vez que a violência doméstica registrou alta durante a pandemia do novo coronavírus, seja contra mulheres ou crianças. Estatísticas da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) mostram que, em 2018, 83% dos agressores foram o pai ou a mãe e 60% delas foram realizadas dentro da própria residência em que a criança morava.

“No mundo todo, houve grande aumento na violência doméstica. Entretanto, nesse período há uma grande dificuldade de a criança revelar, justamente pela falta de convivência com a escola, com os amigos, com demais familiares e vizinhos que poderiam perceber a agressão. Isso, porque no confinamento, o agressor acaba se sentindo mais encorajado, o que junta com o aumento do consumo de entorpecentes, principalmente o álcool, que é lícito… Também há maior incidência de problemas financeiros, desemprego, e tudo isso colabora para maior irritabilidade e o aumento da violência doméstica”, afirma Adriana Accorsi.  

Para o psicólogo forense Leonardo Faria, a maior parte dos menores apresentam o que é chamado de síndrome do segredo, onde a criança não conta o que ocorreu, para as pessoas próximas, por ter sido ameaçada pelo agressor ou ter recebido algum agrado, uma espécie de suborno. “Isso faz com que ela contenha a informação e não conte o que aconteceu. Por isso, é comum que se ouça falar de experiencias de estupro e maus tratos, anos depois do ocorrido, mas demorar para contar não significa que a criança esteja mentindo; pelo contrário, é normal”, afirma.

Ao contextualizar sobre a origem das agressões, Fernando explica que cuidar de uma criança é uma tarefa que naturalmente exige muito daqueles que o fazem: desde tempo à paciência e resistência à frustração. Isso, porque as crianças demandam muita atenção e, assim, os adultos, ao terem filhos, precisam renunciar a muitas coisas a fim de prover o cuidado necessário a eles. Ele explica, desse modo, quando se chega à violência física, é sinal de que vários outros tipos de violência já foram cometidos. A física é o último estágio de violência desse ciclo que geralmente se inicia de forma verbal e psicológica; de forma não material.

“Não existe um perfil restritivo os agressores se encaixam. O que existe são características de pessoas que cometem esse tipo de ato. Características de pessoas que agridem por se sentirem impotentes frente à criança e aos comandos não obedecidos, e muitas vezes dizem que estão ‘batendo por amor’, mas isso não existe. Essa é a expressão mais equivoca que existe no mundo. Não se bate por amor, se bate por ódio; por pensar: se eu não consigo te controlar, então eu tenho que te bater”, esclarece Fernando.

Caso emblemático

Adriana Accorsi foi a responsável pela investigação do caso de Lucélia Rodrigues, que ocorreu em 2008, e salvou a vida da menina que, apesar de ter apenas 12 anos, foi mutilada e torturada por cerca de um ano e meio. Com a promessa de ter uma vida melhor, Lucélia conta que foi retirada de seus pais, que eram muito pobres, e foi viver na casa da empresária Silvia Calabresi. Nos primeiros seis meses, se cumpriu com o esperado. Em entrevistas à imprensa, ela conta ter vivido uma vida de princesa, algo que nada se assemelhou com os incontáveis meses de pesadelo que seriam posteriormente experimentados pela garota.

Lucélia Rodrigues aos 12 anos, em 2008, e aos 24, em 2020. | Fotos: Reprodução

“Apesar de nós, da Delegacia, convivermos com esse tipo de crime, e recebermos uma quantidade de quase 50 denúncias por dia, o caso da Lucélia, em especial, me marcou muito. Ele começou por meio de uma denúncia anônima. Como sempre busquei verificar todas as denúncias que recebíamos, porque, de dez, pelo menos sete acabavam sendo verdade, mandei uma equipe de policiais até o local”, narra Adriana Accorsi.

Na denúncia, o que foi dito à delegada era quanto a suspeita de uma criança amarrada dentro de um apartamento, no Setor Marista. Ao inspecionar o local, que no momento só contava com a babá que trabalhava na residência, inicialmente não se encontrou nada, exceto uma porta trancada. Ao solicitar que fosse aberta, as desculpas foram muitas. Não se tinha a chave ou a tinha perdido. Somente após a ameaça de arrombamento é que a funcionária cedeu e conseguiu encontrar a chave que dizia estar perdida. Com a abertura da porta, a situação era muito pior do que os agentes esperavam.

Lucélia Rodrigues pendurada em apartamento do Setor Marista. | Foto: Reprodução

Lucélia estava pendurada, amordaçada e ferida. O medo era nítido em seus olhos e em todas as suas reações corporais. “Vinte minutos após eu enviar a equipe, liguei para os policiais. Quem atendeu, era um oficial experiente, com muitos anos de Polícia, e ele estava chorando. Por não ter condições de falar, passou o telefone para outra policial, que disse que eu não iria acreditar na situação que eles tinham acabado de presenciar, então fui clara: então filma e tira foto porque iremos precisar desses elementos como prova, e não saia daí sem a criminosa”, explicou.

Foi dito e feito. Os agentes fizeram a babá contatar Sílvia, relatar um problema e solicitar sua presença imediata. Ao aparecer na residência, a empresária foi presa. “Lucélia ficou com tanto medo, que quando ela chegou na delegacia, eu fiquei quarenta minutos abraçada a ela, e ela nos contou uma rotina de tortura: todos os dias era pendurada, era colocado pimenta nos olhos e na boca dela, ela era espancada, ficava sem alimento, foi obrigada a comer fezes de cachorro…”, descreve a delegada.

Motivos da ascensão dos casos de violência

Deputada Estadual Delegada Adriana Accorsi (PT) na época em que era titular da DPCA Goiânia. | Foto: Arquivo Pessoal

Em consenso, Adriana ressalta, que com a evolução dos estudos mostra que os castigos corporais e humilhantes às crianças, que antes eram considerados benéficos à educação, provocam grandes males, como alterações neurológicas permanentes, problemas emocionais graves, traumas e sofrimento. “Não se pode relacionar educação com castigo físico. Muitos casos que já investiguei começaram como uma ‘agressão corretiva’ que passou do limite: um pai que bateu numa criança com um cinto e a fivela acertou o olho e a cegou, crianças que tiveram mãos e pernas, cabelos arrancados… A pessoa perde a compostura, perde o limite, porque ela faz isso com muita raiva”, relembra a delegada.

Além das pessoas que normalizam a agressão e a defendem como método corretivo e educativo, o psicólogo acrescenta o grupo de pessoas que, mesmo sem consciência, sentem prazer em cometer tais atos e agridem por perversão. Não se pode, entretanto, confundir essa característica com psicopatia.

“Com a repercussão desses crimes, é comum que pessoas comecem a chamar os agressores de psicopatas, entretanto, não é um ato criminal que faz uma pessoa psicopata. O diagnóstico e psicopatia é complexo, não é tão simples assim. Pessoas não psicopatas também podem agredir”, diz o psicólogo. Ele ainda explica que, para ser considerado psicopata, é preciso uma perícia psicológica e médica, onde a pessoa precisa ser avaliada desde a infância até a idade adulta para saber se ele tem as características que demonstram a psicopatia.

“De acordo coma Organização Mundial da Saúde (OMS), através do CID-10, que é a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, e com a Associação Psiquiátrica Americana, o diagnostico da psicopatia só é feito em pessoas acimas de 18 anos. Para serem submetidas a avaliação, essas pessoas precisam ter tido, na infância e adolescência, episódios que caracterizam atos antissociais. Ou seja, precisa ter vivencias que demonstram maus tratos a animais, pequenos delitos cometidos, dificuldade de seguir regras, normas, entre outras características”, explana. No entanto, para Fernando, ser diagnosticado com psicopata ou não, nesses casos de violência contra crianças, não muda nada, ao considerar que a psicopatia não é um modificador de responsabilidade penal.

Perpetuação da violência

Dos elementos citados por Adriana como comuns a todos esses casos de violência, a delegada Adriana Accorsi coloca a covardia em primeiro lugar. “O agressor é covarde. Ele agride uma pessoa indefesa que não consegue se contrapor a ele. Espancar, violentar e torturar crianças, que são muito menores e não conseguem se defender, é um ato cruel”, pontua.  A covardia, nesses pontos, para a delegada, é logo seguida pela omissão que, de tudo, foi o que mais chocou no caso de Lucélia.

Empresária Silvia Calabresi. | Foto: Wagner Soares/TJGO

Ela conta que, na época, toda a família se Sílvia Calabresi, incluindo marido, filhos, pais e até a babá e demais empregados da casa, tinham conhecimento quanto a forma que a criança era tratada na residência. E nunca faziam nada. “É impossível dizer que não se sabia da violência. O corpo de Lucélia dizia que era vítima de tortura e, da mesma forma que que o Henry, a cumplicidade por omissão nos crimes foi nítida”, opina a delegada.

Para ela, existem diversos fatores que colaboram para essa omissão, dentre eles, a normalização do espancamento como forma de educação. “Temos várias situações muitos não denunciam por concordarem com esse tipo de correção, outros não denunciam por não quererem se envolver – o que é uma inverdade, porque hoje você pode realizar denúncias, através do Disque 100, de forma totalmente anônima –, ou porque de alguma forma dependem do agressor”, elenca Adriana.

Leonardo Faria, psicólogo e psiquiatra forense. | Foto: Arquivo Pessoal

Leonardo Faria, que é psicólogo forense, concorda com os fatores mencionados pela delegada e diz que o próprio ciclo da violência demostra essa relação entre o agressor e a pessoa omissa e conivente. “Por que a violência doméstica não acaba? Existe a dependência econômica, por exemplo, que existe em todas as classes sociais, onde se pensa: se eu denunciar, vou perder meu sustento. Também existe a dependência afetiva, onde pessoas não denunciam os agressores com medo da separação e de nunca mais encontrar outro para substituí-lo”, explicita Fernando.  

“Tudo isso envolve ameaça, medo, dependência e fatores de ordem cultural e social”, resume o psicólogo.

Saúde mental das vítimas

Além das consequências fatais e visíveis, como os hematomas e outros aspectos já mencionados, Leonardo chama atenção para os efeitos a longo prazo na saúde mental das vítimas de agressão. Para ele, essas sequelas são seríssimas. Por isso, caso não seja feita uma intervenção pós agressão, por meio de profissionais de saúde mental, como psicólogos e psiquiatras, a criança poderá desenvolver uma série de transtornos afetivos (como depressão, bipolaridade), transtornos de ansiedade generalizada, características de agressividade latente (ao ponto de ela reproduzir essa violência no futuro), entre outros transtornos psiquiátricos graves que podem ser acometê-las ao ponto de comprometer todo o seu desenvolvimento humano.

Contudo, o psicólogo diz que apesar de esse comportamento agressivo do adulto poder vir de um trauma anterior de agressão, quando criança, isso não é regra. “Isso não é determinado. Não se pode estar fadado a condenar crianças vítimas a futuros agressores. A maioria das pesquisas mostram, na verdade, que grande parte dos estupradores não foram estuprados quando crianças. O que vai inferir sobre isso é o manejo das pessoas que cuidam dessa criança que foi violentada. Se ela é amparada pelos seus responsáveis e lhe é fornecido tratamento necessário, ela vai conseguir ressignificar essa agressão, ao ponto de ela conseguir ver que foi vítima, mas que isso não dá a ela o direito de agredir”, afirma Fernando.

Políticas Públicas de prevenção

Para a delegada Adriana Accorsi, apesar de já terem sido criadas diversas políticas públicas que previnem esse cenário, o contexto atual é de retrocesso. “As polícias começaram andar no governo do Fernando Henrique Cardoso e caminharam muito nos governos Lula e Dilma, onde foi criado Ministério dos Direitos Humanos, por exemplo, que detinha recursos para atuar nessa área”, explica.

Sede de Goiânia da Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente (DPCA). | Foto: Reprodução

Como espécies de políticas públicas que foram criadas e que devem continuar sendo estimulado o investimento, para a delegada, são os conselhos tutelares e as Delegacias de Proteção a Criança e ao Adolescente (DPCA). “Os conselhos tutelares são uma grande possibilidade de evitar a violência contra as crianças. Eles são eleitos nas comunidades, então as conhecem de forma mais profunda. Eles atuam na verificação das denúncias do disque 100, têm direito de entrar nas residências e falar com as crianças a sós”, diz. Além disso, para ela, quando há o maior investimento nos conselhos tutelares, e eles consequentemente se tornam mais atuantes, há um mais estímulo a denúncias por parte da população.

Outro aspecto que demanda maior atenção por parte do governo, segundo Adriana, é a própria capacitação de policiais e profissionais da Saúde. “Os agentes de segurança precisam de melhora na estrutura em sua estrutura para realização do trabalho de investigação, e os próprios trabalhadores da saúde também deveriam ser capacitados para perceber quando a criança chega nas unidades de saúde com sintomas de pânico, por serem vítimas de agressão, por exemplo”, opina a deputada.

Como ajudar?

Ao encarar todo esse contexto de constantes violências contra menores, Adriana chama atenção para a necessidade de se olhar com carinho para o outro, uma vez que, se as pessoas prestassem mais atenção no que ocorre a sua volta, seria mais fácil de identificar o que ocorre com as pessoas que estão ao seu redor. Isso, porque a delegada diz não conhecer um caso sequer de violência contra a criança, que o menor não apresentou sinais claros de pedido de ajuda. Em concordância, o psicólogo forense, Fernando Faria, que tem experiência de avaliação forense em mais de quatro mil crianças, menciona a mudança brusca de comportamento como um dos sinais mais visíveis.

“Crianças que geralmente são mais alegres, ao sofrerem esse tipo de violência, de uma hora para a outra podem ficar tristes, ter medos inexplicáveis, rejeição de ficar na presença do agressor e até apresentar alterações de ordem fisiológica, como doenças sem explicação orgânica – as psicossomáticas”, ilustra Fernando. Segundo Fernando, também é observado crianças com dificuldades em se alimentar, perda de sono ou até sono excessivo, e com comportamento regressivo. “Uma criança de 8 anos, por exemplo, passa a perder o controle e se comportar como se tivesse uma idade inferior”, elucida.

Além de mudarem o comportamento, a deputada estadual delegada Adriana Accorsi ressalta a necessidade de realizar a denúncia. Para isso, relembra o Disque 100, número que recebe, analisa e encaminha denúncias de violações de direitos humanos que sejam realizadas contra crianças, adolescentes, idosos e deficientes. “Você pode denunciar sem se identificar, não estará se expondo e estará salvando uma vida”, completa. Fernando ainda faz um apelo, para que seja realizada uma inversão de papel e que as pessoas se coloquem no lugar das crianças que estão sofrendo.