25 anos depois da queda do Muro de Berlim, enfim o epílogo da guerra fria
20 dezembro 2014 às 10h31
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Ação sabiamente arquitetada pelo papa Francisco decreta o fim de um caduco boicote diplomático dos norte-americanos à ilha que quase levou o mundo ao conflito nuclear
Elder Dias
Uma das regras da gramática estabelece que, quando um substantivo comum ganha artigo definido, é sinal de que os participantes da interlocução já sabem de que se trata. Aquele objeto em pauta já é de conhecimento comum. Todos têm tal intimidade com o tema que não precisam mais iniciar uma conversa informando sobre o que seja ele. Basta o artigo.
É com artigo definido que os cubanos tratam a retaliação que sofrem há mais de meio século pelo vizinho gigante situado a menos de uma centena e meia de quilômetros: “el bloqueo”. Uma expressão que, para Havana, tem a mesma intimidade — embora não o mesmo sentido e sentimento — que “o carnaval”, para os cariocas, ou “the Holocaust”, para o mundo.
É como “el bloqueo” que ficou conhecido, em espanhol, o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos a Cuba e oficialmente instalado em 7 de fevereiro de 1962. É a última das heranças malditas da guerra fria que, embora cambaleante, está de pé. Sua agonia definitiva, agora, enseja para o continente americano um enredo que em simbologia guarda similitudes com o caminho entre a Perestroika de Mikhail Gorbachev e a queda do Muro de Berlim.
“El bloqueo” está no fim. Sua derrocada já vem de muito tempo, pelo fato de sua real motivação — a “ameaça comunista” vinda do Leste — ter sido derrotada há 25 anos, período equivalente a, atualmente, quase a metade da duração do embargo.
Já fazia tempo que a represália dos EUA parecia ter tanto sentido prático quanto a continuidade do regime autoritário dos Castro. Mas tudo o que envolve essa novela hispano-americana ficou mais acentuado na última semana, quando, em passo ensaiado, os líderes máximos de Estados Unidos e Cuba anunciaram que reatarão relações diplomáticas. Tudo já estava sendo engendrado desde meados de 2013, tendo papel fundamental na costura do acordo o papa Francisco — que, ainda como padre Jorge Bergoglio, superior provincial dos jesuítas, viveu na sombria ditadura argentina as consequências indiretas da busca da hegemonia ideológica no continente.
Na verdade, a Revolução Cubana, depois transformada em ditadura comunista, causou a criação de uma barricada continental por aqui pelos Estados Unidos, que ergueram seu Muro de Berlim imaginário nas águas do Atlântico. O fato de ter um inimigo ideológico ali ao lado da Flórida era visto além da questão puramente pragmática: era a afronta máxima ao país, sua população e seus princípios. Acostumados a tratar a América Latina como um quintal, os americanos tiveram de engolir Fidel Castro e seus homens tomando o poder na ilha mais próxima — e de um grande aliado, o ditador Fulgencio Batista, governante tirânico e corrupto e que ninguém consideraria digno de poder, ainda mais poder absoluto.
Ascensão e queda estratégica de Cuba
Como represália à ascensão dos rebeldes, veio o bloqueio. O governo de Dwight Eisenhower, presidente norte-americano de 1953 a 1961, começou a segregação da ilha comunista e seu sucessor, John Kennedy (1961–1963), a aprofundou. A influência dos Estados Unidos fez com que muitos países aderissem ao embargo. Como se diz que na guerra vale tudo, estava posta ali, pelo bastião da democracia, uma violação ao princípio de não intervenção e de autodeterminação dos povos — algo primário em termos de relações internacionais: depois de Kennedy, nem mesmo remédios e alimentos chegavam a Cuba.
A fracassada invasão da Baía dos Porcos — tentativa desastrada da CIA para derrubar o governo comunista —, em 1961, e a crise dos mísseis nucleares no ano seguinte, em 1962, quando os soviéticos levaram ogivas para a ilha, no episódio-ápice da guerra fria, causaram o acirramento que faltava. Isso foi a cereja no bolo para o divórcio litigioso entre o gigante e o ilhado, que tentava se provar à altura do rival de formas alternativas — e então o investimento pesado em medalhas olímpicas foi um bom exemplo de como funcionou a propaganda de duelo ideológico.
Com a abertura econômica (“perestroika”) e política (“glasnost”) da União Soviética, promovida por Mikhail Gorbachev à frente do governo a partir de 1985, a guerra fria agonizou. Cuba foi, obviamente, perdendo força estratégica. Em 1989 cai o Muro de Berlim; dois anos depois, o Estado Soviético está desfeito.
A partir de então, sem o maior parceiro comercial, a situação da economia de Cuba flertou sempre com a própria insolvência. Era das repúblicas soviéticas que vinham petróleo e outros importantes produtos. E era para elas que ia a maior parte da produção de açúcar, principal commodity de Cuba. Para manter a “Revolução”, foram então feitas várias concessões. O socialismo passou a viver na hipocrisia, já que os dólares injetados pelo turismo, inclusive sexual, se tornaram uma força mantenedora do regime.
As lições extraídas a partir da década de 80 são claras: o comunismo não deu certo. Ou pelo menos, as formas tentadas até então não foram as corretas. Ou ainda, com mais abertura, pode-se dizer que o mundo talvez não esteja devidamente preparado para tal modo de produção. Ainda que exista quem garanta que seja possível manter a liberdade em meio a uma ditadura, mesmo que do proletariado — é o caso da doutrina levantada pelo PSOL, no Brasil —, o fato é que hoje o socialismo nessas bases é coisa do passado ou do futuro.
Assim formulada a questão, torna-se ultrapassada, ingênua e risível a preocupação com uma tal “bolivarianização” da América Latina. É o que pregam ideólogos passionais como Olavo de Carvalho, que crê na necessidade de combater o Foro de São Paulo — uma resolução da esquerda no continente acertada em 1990 (portanto, ainda antes da queda da União Soviética) como reação às políticas dos Estados Unidos — com uma devoção quase religiosa. Ainda que o discurso inflamado de personalidades políticas como o pós-chavista Nicolás Maduro e o boliviano Evo Morales pareçam ver os movimentos dos americanos do Norte como algo a ser combatido, isso não é nada mais do que jogar para a própria plateia.
É o mesmo que dizer que há algo de comunista no governo do PT. Basta lembrar que o recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou para socorrê-lo na condução da economia o goiano Henrique Meirelles, ex-presidente mundial do BankBoston e então sagrado pelas urnas deputado recordista de votos pelo PSDB. Só mesmo petistas ainda presos no primeiro ciclo da história do partido (eles existem?) acreditam que haja algo no Palácio do Planalto rumando ao socialismo radical.
Obama fez o que deveria ter sido feito há muito tempo
Por todo o contexto histórico, quando, na quarta-feira, 17, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, divulgou medidas ousadas sobre a relação de seu país com Cuba não havia nenhum fato novo em curso. Já estava tudo programado com antecedência, com intermediação do Vaticano, em mais uma intervenção pessoal e aguda do papa Francisco em uma questão mundial, e supervisão do Canadá, a Suíça da América, o mais neutro dos países do continente.
E veio o pacote de medidas que começam a valer a partir de Washington: restabelecimento das relações diplomáticas; facilitação para viagens de americanos a Cuba; autorização de vendas e prestação de serviços para Cuba; permissão para importar no valor de até 400 dólares de bens de Cuba; esforços para melhorar o acesso de Cuba à tecnologia de comunicação; restabelecimento de uma embaixada em Havana; e a revisão da alcunha “patrocinador do terrorismo” dada ao regime castrista.
Já não era sem tempo. Como, aliás, Obama admitiu com franqueza rara em um chefe de governo: “O isolamento fracassou. É hora de uma nova abordagem.” Bingo!, remedando a expressam dos americanos quando descobrem o óbvio. A ficha demorou a cair: pode não ser o único, mas o meio mais eficaz de conseguir abertura do duro e arcaico regime cubano é mostrar abertura.
O editorial do “The New York Times” sobre o fato histórico sintetiza o caso: “Obama poderia ter dado um passo mais modesto e gradual para o fim do degelo. Em vez disso, ele corajosamente foi tão longe quanto pôde, dentro dos limites de uma lei ultrapassada de 1996 [assinada pelo então presidente Bill Clinton, democrata como Obama] que impõe sanções rígidas sobre Cuba na busca da mudança do regime do país.”
Sim, Obama foi até onde podia. Tomou, pela normalização das relações com o vizinho, todas as medidas ao alcance do Executivo. Agora, o que ele e as pessoas de bom senso aguardam é que o Congresso dos EUA debata serenamente a questão, para selar a boa morte do embargo contra Cuba.
O fim do embargo vai economizar páginas na crônica de outra morte anunciada, a do castrismo. Não será de um dia para outro que os ares da democracia vão tomar conta dos céus de Havana, mas até os maiores críticos do regime socialista, se tiverem o mínimo de sensatez, saberão admitir que “el bloqueo” foi o grande trunfo de Fidel e Raúl Castro para esticar seus anos de poder. Era o bode pronto a ser expiado, a rolha que, alegavam os mandatários da ilha, entupia o escoamento de todas as muitas carências da ilha.
Para o Brasil, a certeza é de que a aproximação entre ianques e cubanos não trará nada de negativo. Alguns especialistas vão até mais longe: acreditam que a ótima relação do País com o regime — o que inclui o polêmico financiamento do porto de Mariel, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — trará benefícios econômicos, além da evidente vitória política. A dedução vem do fato de a posição logística de Cuba favorecer ao comércio com os Estados Unidos. O Brasil como “queridinho” gratificado pela ilha teria, então, um belo entreposto. O tempo, sempre ele, dirá tudo.