Texto originalmente publicado em setembro de 2019

O conflito entre jovens e a lei é rodeado de enganos, senso comum e fracasso. Sob a pecha de “defender bandido”, tentativas de entender o fiasco do sistema socioeducativo são colocadas de lado em detrimento de endurecimento das políticas de segurança pública que, na prática, não dão resultados, mas ressoam com apelo popular. Goiânia, que atualmente tem cerca de 600 adolescentes internos em centros socioeducativos e mais que o dobro disso em servidores públicos ligados a área, tem a oportunidade de melhorar sem aumento de gastos um dos sistemas socioeducativos mais atrasados do Brasil – segundo pesquisadores ouvidos – caso empregue políticas comprovadas pela ciência.

Os veículos de imprensa têm sua parcela de culpa. O ato infracional análogo ao homicídio é mencionado uma vez a cada quatro matérias jornalísticas que abordam o tema, mas esse ato infracional corresponde a apenas 0,8% dos atos infracionais totais, segundo o Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da Universidade Federal de Goiás. Ainda mais: em 2013, adolescentes foram responsáveis por 1.963 dos 50,000 homicídios (4,5%) no Brasil. Os três atos mais noticiados são os menos cometidos: estupro (2% do total de atos infracionais), homicídio (0,8%) e latrocínio (0,2%). 

Portanto, apesar da percepção comum, a minoria dos jovens em conflito com a lei praticam a violência. Dentro desta minoria, o sociólogo Marcos Rolim se debruçou sobre uma amostra ainda menor – a dos que cometem violência extrema. Rolim escreveu sua tese de doutoramento, que se transformou no livro “A Formação de Jovens Violentos”, lançado em Goiânia no dia 20 de setembro, e que trata daqueles que respondem a provocações mínimas com agressão desproporcional. 

Em busca da origem da brutalidade, Rolim entrevistou jovens com disposição violenta e os comparou com aqueles de perfil social, sexo e idade semelhantes, mas que não foram autores de atos desta natureza. Sua intenção, por meio de um tratamento estatístico e metodologia científica de fôlego, foi encontrar os fatores comuns nas histórias de vida dos jovens em conflito com a lei que cometeram agressões deliberadas. Seus achados apontam soluções e desmentem diversas noções do senso comum. 

Treinado para matar

Sua base de dados de jovens do Rio Grande do Sul mostrou uma maior probabilidade de violência entre os jovens que passaram por treinamento violento. A disposição à violência extrema cairia por 54%, caso não houvesse uma socialização dos jovens por criminosos mais velhos (o recorte não investiga a violência em geral, mas especificamente a tipificação de agressão desproporcional). “Podemos afirmar que a taxa de homicídios no Brasil seria muito fortemente impactada sem o que chamamos de treinamento violento”, afirmou o sociólogo em entrevista ao Jornal Opção. “Daí a importância da evasão escolar. Aqueles jovens treinados na prática de matar não estariam ali se estivessem na escola.”   

Marcos Rolim afirma que se sua hipótese for verdadeira, vivemos um processo de socialização perversa nas periferias | Foto: Ramon Moser / Divulgação

O treinamento violento diz respeito a introdução do jovem à sociedade por um grupo perverso que valoriza o ato de matar, a não hesitação quanto a violência. “Em algum momento da vida, especialmente início da adolescência, os jovens se associaram a grupos armados que praticam atos de violência e instruem os mais novos. Exatamente onde a escola pública falha, já que esse jovem faz parte da cifra de evasão escolar, há o acolhimento pelo grupo criminal. Ali ele se socializa.” Na prática, trata-se da vanglorização de atos violentos pelo grupo, a ridicularização dos novatos resistentes a atacar pessoas, coerção com ameaças de punição física, exortação à violência com instruções.

Ao passo em que descobriu a importância determinante do treinamento violento, Marcos Rolim encontrou também que fatores comumente atribuídos aos jovens em conflito com a lei são, verdade, pouco importantes. Por exemplo, os jovens envolvidos com o tráfico e com a violência foram, em regra, criados em famílias onde, independentemente dos problemas típicos da exclusão social,  se valorizava o trabalho e a honestidade. 

Rolim afirma: “Se criou essa ideia, que não está amparada em evidências, de que os jovens violentos são resultado de famílias desestruturadas. É claro que a desestruturação familiar é um fator de risco importante, mas não é o único. Muitos vêm de famílias onde o trabalho e honestidade eram valorizados, tanto é que escondem o envolvimento com o crime o máximo que podem. Às vezes, têm uma educação protetiva, que está indo bem na formação moral, mas quando chega na adolescência, é muito comum que o jovem defina seu comportamento pelo grupo ao qual se vincula. Essa lógica tribal de comportamento na juventude é muito comum.”

Desistência criminal espontânea

Em todo o mundo e em qualquer período analisado, o pico de cometimento de crimes violentos se dá por volta dos 23 anos de idade, como mostra este relatório da Agência de Estatísticas de Justiça (Bureau of Justice Statistics), do Departamento de Justiça Americano. Duas hipóteses complementares explicam o porquê de a juventude ser o período crítico. Primeiro, há a hipótese da maturação que explica a violência com base no fato de que o córtex pré-frontal é a última parte do cérebro a amadurecer e ser onde se processa o juízo e autocontrole.

A outra explicação é sociológica. Rolim afirma que, na infância as crianças são naturalmente vinculadas, pois precisam da proteção de um adulto; na adolescência há o rompimento, ainda que simbólico, desse vínculo e criação de uma individualidade. “O único vínculo que permanece é o da escola, por isso ela é tão importante. Nesta fase ainda não há os vínculos típicos da vida adulta: emprego, casamento, filhos, que começam a surgir na faixa etária em que a curva criminal cai, pelo início dos vinte anos”, afirma Rolim. 

Por isso, apenas uma pequena parte dos adolescentes envolvidos em atos infracionais continuará praticando crimes a vida inteira. A maioria, que passa pela chamada remissão espontânea, ou desistência criminal, deixa os conflitos por mérito próprio, sem apoio governamental. Na realidade, os adolescentes que terão uma carreira no crime podem ser encontrados justamente nos centros de internação socioeducativos. No Centro de Internação Provisória (CIP) de Goiânia, do total de adolescentes em internação definitiva, 25,5% são reincidentes. 

A convivência em centros de internação é capaz de propiciar o treinamento violento. “Mais do que a promessa da inclusão no mundo glamoroso dos carros de luxo e das mulheres encantadoras, o tráfico dá aos meninos a possibilidade da autoria, do respeito e do poder – tudo aquilo que o Estado sequer cogita como elementos de políticas públicas”, escreve Marcos Rolim no capítulo final de sua tese.