O jornalista disseca a cantora a partir de múltiplos pontos de vista. Era uma artista em permanente processo de (re)construção, avessa a dogmas

Bernardo Pasqualette

Especial para o Jornal Opção

O ano era 1985. Enquanto no Brasil sopravam os ventos da redemocratização, Nara Leão atravessava o Atlântico para uma esperada turnê no Japão — país cujo público admirava imensamente o seu trabalho (o país de Ryuichi Sakamoto é apaixonado por Bossa Nova).

Já padecendo de dores de cabeça que ocasionalmente a deixavam desnorteada — a artista chegava a misturar idiomas e falar frases desconexas sem aviso prévio —, Nara aceitou o convite para participar de um programa de auditório de grande audiência no país oriental.

Após cantarolar os primeiros versos da canção “Corcovado”, tudo o que poderia dar errado, errado deu. Misturando o português ao inglês, Nara passou a se expressar de forma ininteligível. Quando o entrevistador tentou acalmá-la, involuntariamente acabou por revelar ao público toda a extensão da confusão mental em que a cantora se encontrava naquele exato momento: “O que estou fazendo aqui? Quem são esses japoneses?”.

João Gilberto, rei da Bossa Nova, e Nara Leão na Praia do Diabo, Arpoador | Foto: Reprodução

O incidente no Japão marcou o desarranjo do final da carreira de uma das maiores intérpretes da música popular brasileira. O caricato episódio, no entanto, não diminui em nada a incrível trajetória de Nara Leão contada em 240 páginas no excelente livro “Ninguém Pode com Nara Leão — Uma Biografia” (Planeta, 223 páginas) escrito pelo jornalista Tom Cardoso (também biógrafo de Tarso de Castro, um dos fundadores de “O Pasquim”, e do jogador Sócrates).

Do varejo aos grandes temas, passando por episódios inusitados que ajudam a reconstituir o verdadeiro âmago de uma das artistas mais influentes da MPB, o livro desenvolve uma narrativa leve e envolvente que, definitivamente, prende o leitor. Se biografias geralmente constroem um personagem a partir de uma determinada perspectiva, Tom nos brinda com algo raro: dissecar a personalidade de Nara por intermédio de múltiplos pontos de vista, o que dá a ela a verdadeira dimensão que teve em vida — uma artista em permanente processo de (re)construção e uma mulher com suas virtudes e problemas, o que fornece a verdadeira dimensão humana da personagem biografada.

Chico Buarque e Nara Leão: dois tímidos de grande talento | Foto: Reprodução

A futura musa da Bossa Nova foi uma adolescente tímida, ofuscada pela beleza e exuberância da irmã mais velha — a modelo Danuza Leão. Mais Nara teria a sua hora e, principalmente, tinha estrela. Não tardaria a brilhar. Intensamente.

A parceria com Chico Buarque (com quem compartilhava o temperamento pouco afeito a apresentações em público), o gosto genuíno pelo samba de raiz carioca e a inusitada amizade com uma trupe de baianos — na qual a intérprete seria a grande responsável por lançar artisticamente ninguém menos que Maria Bethânia — demonstram o quanto a artista foi muitas em uma só.

Jerry Adriani (foi namorado de Nara), Maria Bethânia, Nara Leão e Danuza Leão | Foto: Reprodução
Um artista à frente de seu tempo

Nara foi de tudo um pouco e, de certa forma, um pouco de tudo. Em realidade, estava à frente do seu tempo. Muito.

Na engajada década de 1960, a política fervilhava e despertava paixões díspares em um mundo polarizado pela Guerra Fria. Era impossível ficar em cima de muro. Naqueles estridentes anos, Nara ganharia a alcunha de “musa da canção de protesto”. Contudo, Nara Leão não era uma personalidade que se amoldasse a um rótulo, muito menos a um tipo. Muito pelo contrário. Procuraria se afastar do estigma que, ao rotulá-la, comprimia a sua própria personalidade multifacetada. Na verdade, era impossível defini-la por meio de reducionismos.

Elis Regina e Nara Leão: as duas cantoras viviam em guerra | Foto: Reprodução

Mesmo se dissociando da indesejada alcunha, Nara não ficava em cima do muro. Jamais. Em 1966, um ano “complicado” para a vida política nacional, Nara foi a público e, em uma entrevista corajosa, propôs nada menos que extinguir o Exército brasileiro. Há de se recordar de que, naqueles tempos, quem dava as cartas no Brasil eram os generais. Não é incorreto afirmar que a ousadia — ou a característica inata de dizer sempre o que pensava independente da repercussão — podia ter custado a própria vida de Nara Leão.

É certo que Nara sabia disso. Mesmo assim foi em frente. Parece que Deus a poupou, em especial, de um sentimento: o do medo.

Tom Jobim, Nara Leão e Caetano Veloso | Foto: Thereza Eugênia

Mais não digo, afinal uma leitura que surpreende — como é o texto de Tom Cardoso — merece ser degustada pelos leitores sem tantos spoilers. Uma última dica, no entanto, me permito: ao final do livro há a discografia completa da intérprete, algo que remonta a outro tempo — quando o público ainda esperava com ansiedade o lançamento dos discos de seus artistas preferidos. Nessa viagem ao passado, involuntariamente se sumariza a notável versatilidade da cantora, por meio da diversidade cultural contida em suas obras.

Tom Cardoso: biógrafo afiado de Tarso de Castro, de Sócrates e Nara Leão | Foto: Reprodução

Para quem vai ler o livro e gosta de música, uma preciosidade disponível em três toques no celular ainda complemente a leitura: na plataforma Spotify há uma versão de “Funeral de um lavrador” (de Chico Buarque), em francês, na voz inigualável de Nara Leão.

Simplesmente imperdível, tal qual “Ninguém Pode Com Nara Leão”.

Bernardo Pasqualette, advogado, é autor do livro “Me Esqueçam — Figueiredo: A Biografia de uma Presidência” (Record, 797 páginas).

O escritor Gabriel García Márquez e a cantora Nara Leão
Trecho do livro de Tom Cardoso (página 125) | Foto: Jornal Opção