João Filho traduz dois sonetos que têm por tema Baruch de Spinoza, um de Sully Pruhdhomme e o outro de Jorge Luis Borges. E para complementá-los, na sequência, segue um soneto de Machado de Assis, também sobre sábio solitário

O judeu-holandês Baruch de Spinoza (1632-1677) foi um dos maiores nomes do início do pensamento moderno, ao lado de René Descartes e Gottfried Leibnitz


João Filho

Especial para o Jornal Opção

Deparei-me com o soneto de Borges no livro El outro, el mismo, na sua obra poética completa. Segundo o autor argentino era o livro que mais apreciava. O soneto de Sully Prudhomme retirei do Itinerário de Pasárgada, de Bandeira; cotejei com uma edição virtual e há algumas ligeiras mudanças de pontuação, fora um erro estranho de digitação. Coisas da Internet. Conservei a de Bandeira. O “natura” do 10º verso fica, além da facilidade rímica, também pelo sabor de contração comum ao século do poeta francês. O nome do filósofo, no final do soneto, fica Bento mesmo por causa da métrica, além de condizer com o espírito do poema. O de Borges ficou em decassílabo, e o de Prudhomme em alexandrino.

 ESPINOSA

As translúcidas mãos desse judeu
que lustram na penumbra seus cristais
e essa tarde morrendo é medo e breu.
(As tardes dessas tardes são iguais.)

As mãos e o seu espaço de jacinto
que empalidece no confim do Gueto
quase inexiste para esse homem quedo
que está sonhando um claro labirinto.

Não o perturba a fama, esse parelho
de sonhos com os sonhos de outro espelho,
nem o amor temeroso dessas virgens.

E livre da metáfora e do mito
lustra um árduo cristal: o infinito
mapa d’Aquele dono das origens.

SPINOZA

Las traslúcidas manos del judio
labran en la penumbra los cristales
y la tarde que muere es miedo y frío.
(Las tardes a las tardes son iguales.)

Las manos y el espacio del jacinto
que palidece en el confín del Ghetto
casi no existen para el hombre quieto
que está soñando un claro laberinto.

No lo turba la fama, ese reflejo
de sueños en el sueño de outro espejo,
ni el temeroso amor de las doncellas.

Libre de la metáfora y del mito
labra un arduo cristal: el infinito
mapa de Aquel que es todas Sus estrellas.

Jorge Luis Borges

 

UM HOMEM BOM

Era um homem tão doce, de saúde frágil,
Que de tanto polir os cristais de mil lentes,
Pôs a essência divina numa fórmula ágil,
E o mundo apavorado o viu como um descrente.

O sábio demonstrou, com um simples adágio,
Que tanto o bem quanto o mal são velhos dementes,
E os mortais são fantoches que devem seu ágio
Aos fios necessários de mãos descontentes.

Admirador devoto da Santa Escritura,
Não poderia ver um Deus contra a natura,
Ao qual a sinagoga se opunha raivosa.

Longe dela, polia os cristais de mil lentes,
E socorria os sábios contando astros e entes.
Era um homem tão doce, Bento de Espinosa.

UN BONHOMME

_C’était un homme doux, de chétive santé,
Qui, tout en polissant des verres de lunettes,
Mit l’essence divine en formules très nettes,
Si nettes, que le monde en fut épouvanté.

 _Ce sage démontrait avec simplicité,
Que le bien et le mal sont d’antiques sornettes,
Et les libres mortels d’humbles marionettes
Dont le fil est aux mains de la nécessité.

_Pieux admirateur de la sainte Écriture,
Il n’y voulait pas voir un Dieu contre nature;
A quoi la synagogue en rage s’opposa.

 _Loin d’elle, polissant des verres de lunettes,
Il aidait les savants à compter les planètes.
C’était un homme doux, Baruch de Spinoza.

Sully Prudhomme

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João Filho é poeta e tradutor, autor do livro “A Dimensão Necessária”, que foi publicado pela editora Mondrongo, em 2014, tendo sido o vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional de 2015, na categoria poesia.

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 Por sugestão do também poeta e tradutor Wagner Schadeck, incluímos nesta publicação o soneto “Spinoza”, de Machado de Assis, que segue abaixo:

SPINOZA

Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante idéia.

E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.

Machado de Assis