Partindo da história do assassinato de um estudante, Dostoiévski faz estudo profundo do pensamento político, social, filosófico e religioso de seu tempo. Como um profeta, o autor visualiza os desvios que o socialismo real viria a apresentar até o seu esfacelamento

Cultural_1885.qxdCarlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção

Talvez em nenhum dos seus cinco grandes ro­mances, Dostoiévski haja atingido a “totalidade do movimento dramático”, como o fez em “Os Demônios”, que, por isso mesmo é de uma extrema complexidade de entendimento. Talvez esse seja o motivo pelo qual até o próprio Czar Ale­xandre II pediu que o autor o esclarecesse sobre a que vinha o livro.

Ele estava distante da Rússia, em Dresden, quando o principiou. A inspiração básica foi o momento histórico e filosófico vivido pela juventude russa nos anos 60 e 70 do século 19 que, partindo do niilismo chegava ao assassinato político.

O livro “Os Demônios” foi considerado pela intelectualidade soviética e pelos políticos da revolução de modos totalmente distintos. De acordo com o intelectual, crítico literário e primeiro Comissário para a Educação, Anatóli Lunatcharski, o romance juntava-se para compor a obra “do mais atraente escritor russo de todos os tempos”. O centenário do nascimento de Dostoiévski foi comemorado com tributos oficiais em 1920. Antes, em 1918, Lênin e Lunatcharski haviam inaugurado o busto de Dostoiévski ao lado do de Tolstói, como símbolos maiores da literatura russa.

Enquanto Lênin considerava “Os Demônios” como um romance “repulsivo, porém colossal”, confessando havê-lo lido quatro vezes, a era Stálin iria bani-lo, juntamente com “Irmãos Karamazov” e “O Idiota”. Até a década de sessenta, eles eram considerados leitura “perniciosa” e “não construtiva” para o proletariado russo. “Os Demônios”, visto como o cúmulo da heresia, somente em 1970, voltaria a ser impresso e circularia livremente.

“Os Demônios” foi, sem dúvida, a obra em que o realismo trágico de Dostoiévski mais se aproximou de fatos históricos. O caso que propiciou o foco narrativo foi o assassinato do estudante Ivanov, por ordem do niilista Sergey Nechayev a quem aquele não lhe reconhecia autoridade revolucionária. Nechayev, de certa forma, era discípulo de Mikhail Bakunin e com ele havia escrito o “Catecismo de um Revolucio­nário”, obra exemplar em maquiavelismo político, no dizer de Friedrich Engels. Após o assassinato de Ivanov, Bakunin rompe com Nechayev, e realiza sua autocrítica “de que todos os meios são justificáveis para atingir os fins revolucionários”.

Como curiosidade, na maior parte dos esboços que Dostoiévski realizou, o personagem Piotr Verkhovenski que encarna o “principal demônio” é simplesmente denominado de Nechaiev.

Outros fatos da vida real que lhe serviram de pano de fundo ao autor foram tantos os incêndios nos bairros operários ocorridos durante a Comuna de Paris, quanto os de Petrogrado em 1868. Desse fato ele extrai a destruição pelo fogo do bairro operário que, no final do romance leva à morte de Liza.

Muitos buscam na interpretação da obra um alerta contra o socialismo. E ele realmente existe, do ponto de vista do ateísmo e do poder. Dostoiévski como um profeta visualiza muitos desvios que o socialismo real viria a apresentar até o seu esfacelamento. E um dos dogmas ocultos de Piotr Verkhovenski, o verdadeiro “demônio” de Dostoiévski, por duas vezes confessado a Nikolai Stavroguin é: “Não sou socialista, sou um assassino”. Piotr vai além e descortina que num futuro, “essa canalha democrática [os grupos de ação que ele próprio buscava construir] com seus quintetos, é um mau sustentáculo: aí se precisa de uma vontade magnífica, vontade de ídolo, despótica, apoiada em algo que não seja ocasional”.

Os demônios são niilistas e esse desfazer-se com o mundo, termina com que eles a tudo neguem, até mesmo o amor, a amizade, a honra e a verdade. Negam Deus, falsificam o bem, pois somente o mal poderia conduzi-los ao poder político. Iludem as pessoas fazendo-as crer que falam em nome de uma enorme organização política, quando na verdade, falam exclusivamente por si próprios e daqueles que eles conseguem, por algum tempo, iludir.

Talvez possamos dizer que muito do mal que nubla “Os Demônios” seja fruto da dessacralização ou da perversão do amor. Homens e mulheres rendem-se ao Príncipe Harry (Stavroguin), mas ele nem honra e nem devolve a dedicação que têm. Essa falta de reciprocidade é enraizada em sua desumanidade essencial, que cria a desordem e o ódio. E o príncipe, seguido por Verkhovenski, seu falso profeta, vai abandonando os apóstolos em um patético e sinistro vazio de espírito.

Pontos de maior relevo

As sessenta horas culminantes de “Os Demônios” iniciam-se na festa de Iulia Lembke, esposa do governador. A “quadrilha literária” que encerra a miserável festa é interrompida pelo fogo no quarteirão que margeia o rio, e que destrói todas as casas de madeira. A “quadrilha” é uma figura retórica do niilismo intelectual e de irreverência da alma na qual Dostoiévski discernia a origem de futuros motins. O fogo para o autor é arauto da insurreição, ofensa à normalidade da vida, que buscaria arrasar as velhas cidades para imporem a fundação de uma “nova cidade”, uma Nova Jerusalém.

Num Apocalipse feroz, o governador Lembke enlouquecido corre para o fogo e grita à sua comitiva: “É tudo niilismo! É tudo incêndio! Se algo está pegando fogo é o niilismo!” Em seu pânico ainda grita: “O fogo não está nos telhados, mas na ca­beça das pessoas”. Esta frase po­de­ria ser o prólogo ao romance, pois as ações que Dostoiévski descreve são gestos da alma quando ela se encontra em dissolução. Os demônios entram por essas gretas e por mero contágio as chamas se propagam dos cérebros aos telhados das casas.

Todos os quatro grandes romances do autor possuem em seu âmago um assassinato. Aqui ele é triplo, conduzindo-nos para a visão trágica. Quando as chamas se amainam Lebiadkin e sua irmã Maria, assim como sua velha criada estão mortos, esfaqueados. Tudo indica que o incêndio fora provocado para encobrir os crimes, crimes comuns, de gente humilde.

As chamas a arder na margem do rio nos encaminham como um farol para uma janela da casa de Sta­vroguin. É madrugada e Liza observa o brilho ao longe. Stavroguin está junto dela e seu vestido está um pouco amarrotado, alguns botões desabotoados, aquela noite está toda nesse detalhe. Mas ela havia sido desastrosa. Se Dostoiévski não é explícito sobre a incompetência sexual de Stavroguin, o impacto da esterilidade da noite é fragrante. Liza, que viera quase publicamente se entregar a ele explode: “É esse Stavroguin, o vampiro Stavroguin, como te chamam?” Liza foi sangrada na vontade de viver, mas ela também penetrou no âmago de Stavroguin, pois sabe que algo pavoroso e ainda assim ridículo, um segredo lhe domina a mente. “Sempre achei que você me levaria a algum lugar em que viveria uma enorme aranha má, do tamanho de uma pessoa e que lá passaríamos toda a vida a olhá-la com medo.”

Entra Piotr Verkhovenski e Stavroguin diz a Liza: “Se você ouvir algo estou avisando que a culpa é minha”. Stavroguin inicia um processo de autodestruição, que Piotr não pode permitir, pois se seu ídolo se destruir o que acontecerá? No entanto, ele deve partilhar a culpa, pois Stavroguin e Verkho­ven­ski estarão emaranhados mais intimamente. “No fundo você não tem nada a temer. Em termos jurídicos é de todo inocente e de consciência também, porque você mesmo não queria, não é? Não queria? Mesmo você não tendo nenhuma culpa nessa história, nem em pensamento, não obstante… Em toda a situação se dá um excelente jeito: de repente você é viúvo e livre, e pode-se casar com essa bela moça, riquíssima, que, de mais a mais já está em suas mãos. Veja o que pode fazer uma coincidência de circunstâncias simples e grosseiras.”

Josef Stálin: responsável pelo banimento da obra de Dostoiévski por considerá-la leitura “perniciosa” e “não construtiva” para o proletariado russo
Josef Stálin: responsável pelo banimento da obra de Dostoiévski por considerá-la leitura “perniciosa” e “não construtiva” para o proletariado russo

A agonia na interrogação de Stavroguin move-se não pelo temor da chantagem: a ameaça es­tá em seu poder de destruir o lhe que resta de lucidez. O ho­mem-demônio Piotr, está tentando remodelar seu deus à sua própria imagem, que é simplesmente vil.

Stavroguin diz a Piotr que “nessa noite Liza adivinhou de algum modo que não a amo… o que ela sabia o tempo todo na realidade”. Piotr se delicia com o fracasso daquela noite que ele engendrara, trazendo Liza para Stavro­guin. Seu sadismo se delicia na observação da moça. Mas ele subestimou o “cansaço” de seu deus. Stavroguin diz à moça: “Eu não os matei, fui contra, mas sabia que eles seriam mortos e não impedi os assassinos”. Piotr pensa pela primeira vez em destruir seu deus. Saca da arma, mas confessa sem coragem: “Eu sou um bufão, mas não quero que você, a minha melhor parte, se torne um”.

Stavroguin o descarta com essas palavras: “Vá para o diabo agora… para o inferno… para o inferno!”

Descartado, Verkhovenshi tenta se vingar em Liza, mas ela é salva de suas garras pelo antigo noivo, Mavriki, que a espera nos jardins da propriedade, e ela quer que ele a acompanhe à cena do assassinato. Quando eles chegam, a multidão formiga com a possível culpa de Stavroguin. Ela é identificada e a assassinam. O narrador comenta que “tudo aconteceu de modo absolutamente acidental… eles estavam bêbados e irresponsáveis”. Entretanto, a impressão que nos causa é que Lisa buscou uma morte em um ritual de expiação; morre ao lado dos corpos assassinados pela desumanidade de Stavroguin.

Corre o boato de que Stavro­guin abandonara a cidade e seguira para Petrogrado. Horas após, Verkho­ven­ki encontra-se com a célula de cinco conspiradores. Ninguém dormiu por duas noites e Dostoiévski sugere o embaçamento da razão. Ele os convence da necessidade de assassinarem Cha­tov, convencendo-os de que ele estaria por entregá-los às autoridades. Piotr, desde a partida de Stavroguin, perde sua luz própria, o pivô de sua lógica está enlouquecido.

Quando caminha com Liputin, ele repete a postura anterior de Stavroguin quando com ele caminhara. Ocupa toda a calçada fazendo com que quem o siga caminhe atrás de si, suportando a lama a respingar. Liputin retruca em seu ódio: “Em lugar das muitas centenas de quinhentos em toda a Rússia, somos o único grupo, e não existe rede nenhuma”. Mas a tirania de Piotr já dominou seus súditos. Liputin, consciente, mas incapaz de reagir, recolhe-se ao seu andar.

As trinta e seis horas restantes são ocupadas pelo assassinato de Chatov, pelo suicídio de Kirillov, pelo nascimento do filho de Sta­vroguin com a antiga companheira de Chatov, também Maria, o acesso de loucura de Liamshin e a de­sin­tegração do pretenso grupo re­volucionário. Essa parte de “Os De­­mô­nios” contém uma das maiores realizações estéticas de Dos­­toiévski. O encontro entre Piotr e Kirillov, quando eles discutem o suicídio desse último, deixando uma carta em que este assume todos os crimes do gru­po de Piotr Verkho­ven­ski, terminando com a pavorosa morte do engenheiro. E o reencontro entre Ma­ria que está para dar a luz e Chatov e o redespertar do amor deste por ela. O assassinato de Chatov no parque noturno e, finalmente, a despedida de Piotr que foge para o exterior (tal e qual Nechaiev) e sua despedida do mais patético dos assassinos, o jovem Erkel.

Se não há sentido na experiência, então o sentido da arte que contém a tragédia da desordem e do absurdo se aproximará ao máximo do realismo. Rejeitar coincidências e tons extremados seria ler na vida uma espécie de harmonia e respeito ao provável que ela não tem. Desse modo, Dos­toiévski destemidamente acumula o real sobre o fantástico. É bizarro o retorno de Maria para Chatov, grávida e para dar à luz ao filho de Stavroguin, às vésperas do assassinato do próprio Chatov; é totalmente implausível que nenhum dos cúmplices de Piotr, dos quais apenas o jovem Erkel ainda nele acreditava como percursor de uma “nova sociedade”, não o houvesse denunciado pelo assassinato planejado e executado. Que Kirillov, amigo de Chatov, não o houvesse prevenido. É quase impossível de crer que Virginski e sua esposa (aquela fizera o parto de Maria na casa de Chatov), não impedissem o assassinato, mesmo estando certos de que o assassinado jamais trairia o grupo, pois tudo era intriga de Piotr Verkhovenski para manter o grupo de assassinos sob seu controle. O próprio suicídio de Kirillov é absolutamente inacreditável quando ele se sente “iluminar” e descobre que o niilismo de Piotr havia levado ao assassinato de Chatov.

Dostoiévski acreditava que esse “realismo profundo” deveria, em virtude de sua intensificação, retardar o significado autêntico de uma época histórica que ele concebia como a chegada do apocalipse. Por isso, ele, secamente, registra a cronologia do pandemônio: Chatov é assassinado às sete horas; Piotr chega à casa de Kirillov à uma da manhã e este se mata às duas e trinta; às cinco e cinquenta, Piotr, em companhia de Erkel, chega à estação ferroviária. Dez minutos depois, convidado, sem nem ao menos despedir-se de seu “companheiro” fiel, ele entra na primeira classe a jogar uíste. O trem engata e ganha velocidade. Piotr, o demônio, escapa, via Petrogrado para o exterior.

Em nenhum romance de Dostoiévski poderemos separar o trágico do fantástico. O episódio da morte de Kirillov ilustra com perfeito detalhe como a fantasia gótica e a maquinaria do horror nos conduz ao efeito trágico. Piotr precisa assegurar-se que Kirillov realmente cumprirá o prometido de suicidar-se, assumindo todas as responsabilidades pelos crimes cometidos por Verkhovenski e seu grupo. Mas o engenheiro que se move entre os estados místicos e de desprezo rústico não se decide. Ambos, Mefistó­feles e Fausto estão armados. Mas Kirillov, após dilacerar um dedo de Piotr se suicida em desespero abjeto, porque não consegue se matar numa afirmação de sua libertação.

Dostoiévski considera o tormento de crianças e, particularmente, sua degradação sexual, co­mo um símbolo do mal, uma ação simplesmente irreparável, um pecado imperdoável. Também é sugerido que ele tivesse participado de um grupo de prática do satanismo e orgias, no passado. E essas serão as cruzes que ele carregará durante sua vida niilista, até o suicídio.

Um entrelaçamento interessante com temas bíblicos ocorre quando Stepan Verkhovenski (o pai de Piotr) encontra ao final de sua vida a mulher-evangelho, quando decide assumir seu destino e deixar de ser um parasita ornamental da mãe de Stavroguin. Pede que essa nova Sofia leia determinada passagem do evangelho de Lucas, no qual os demônios são, por ordem de Cristo, incorporados aos porcos que se jogam de um despenhadeiro. “Somos nós, loucos e endemoniados… o melhor seria nos lançarmos do rochedo ao mar.”
“A charada fácil” de Maria Timoviena, a aleijada e pobre irmã massacrada pelo irmão bêbado, palhaço e poeta, que reproduz o pai Karamazov, é um dos nós mais complexos e mais significativos do romance. Stavroguin ao casar-se com ela sob segredo e, depois, dispondo-se em divulgar o casamento, está na verdade buscando uma catarse de sua afronta à pequena que ofendera até o martírio na sua juventude. Ela diz que tivera um filho de Stavroguin que jamais a tocara, entretanto. Que o filho morrera e ela o enterrara num sudário. Maria, na verdade reproduz Maria, mãe de Cristo. Stavroguin tem uma parte niilista, que a todos possui mas que não é possuído pelo mal. Pois há beleza em Stavroguin, há algo de Hamlet nele, “príncipe Harry”. Cada um possui sua própria imagem de Stavroguin, Verkhovenski sabe disso e lhe diz: “Sem você eu não sou ninguém, eu preciso de você….Você é tão orgulhoso e tão belo quanto um deus”.
Seria para Dostoiévski, Stavro­guin, o Anticristo? São muitas as semelhanças com o verdadeiro Messias, o mentor do demônio Verkhovenski?

Carlos Russo Jr. é escritor.