Então senador da República, o economista e ex-diplomata Roberto Campos teve medo de ser hostilizado por estudantes de esquerda da Universidade de Brasília, em 1990

Roberto Campos (1917-2001) foi um dos principais intelectuais liberais do Brasil | Foto: Fábio Motta/Eestadão Conteúdo/AE/Codigo

Irapuan Costa Junior

No fim de 1990, a Uni­ver­­si­dade de Brasília (UnB) promovia um seminário sobre o Plano Collor. Plano, aliás, já em visível naufrágio. O reitor da UnB era Cristo­vam Buarque, petista empedernido, hoje senador pelo Partido Popular Socialista (PPS). A iniciativa do seminário não era da Reitoria, tampouco de alguém do corpo docente, embora Cristo­vam houvesse abraçado a ideia, como abraçavam os petistas tudo que pudesse servir de petardo contra a administração Collor, que começava, junto com o referido Plano, a capengar. Fernando Collor de Melo não ficaria mais dois anos no poder – seria impichado, tal e qual o foi a presidente Dilma Roussef, em parte por razões diversas, em parte pelas mesmas razões (corrupção, leia-se). Quem promovia o seminário era o Centro Acadêmico da Faculdade de Economia, uma organização diferente de noventa por cento de suas congêneres, na UnB ou em outras universidades.

Esses centros ou diretórios acadêmicos sempre foram, com raras exceções, dominados pelas esquerdas, feudos de estudantes profissionais, que fazem tudo menos estudar. Principalmente fazem política e ideologia. Conheço-os desde meus tempos de Escola de Engenharia no Rio de Janeiro, nos anos 1950. Os presidentes de centros acadêmicos de minha escola, onde o curso era de cinco anos, demoravam dez anos para, mal e mal, se formar. Explica-se: à época, o aluno que repetisse o ano por duas vezes, era desligado da escola. Jubilado, dizia-se. Os dirigentes acadêmicos, então ligados ao Partido Comunista, o Partidão (mais tarde, dado a anexação da União Nacional dos Estudantes (UNE) pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), passariam a ser, quase todos, ligados a este partido), repetiam sempre o ano, e ao final, sofrivelmente, conseguiam passar para o ano seguinte. Alguns ficavam mesmo pelo caminho. Daí os dez anos para se formarem.

O “fantasma Kissinger”

O presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Economia da UnB era Carlos Eduardo Rocha, o “Rochinha”. Figura diferente – nada tinha de estudante profissional. Inteli­gente, estudioso, vinha do Colé­gio Militar, então, como até hoje, instituição de ensino que deveria servir de modelo para as demais. Liberal, o que enfurecia os estudantes de esquerda, resolvera se candidatar contra os eternos dirigentes ligados aos partidos marxistas, e ganhara de lavada as eleições para o Centro Acadêmico. A maioria dos estudantes brasileiros não é de esquerda, mas está ocupada com seus estudos, enquanto os que o são, estão por conta da política e das demonstrações ruidosas e baderneiras. Com “Rochinha”, nada de greves, tumultos, manifestações ou agressões a professores. O Centro Aca­dêmico da Faculdade de Eco­no­mia promovia encontros, discussões, visitas aos órgãos públicos, que estavam todos ali, em Brasília. Estamos aqui para aprender, era seu lema. Ana Carla, minha filha, era Diretora Cultural do Centro, e competia a ela organizar os seminários e encontros com autoridades no campo da Econo­mia, de forma a enriquecer os conhecimentos da turma. Foi daí que surgiu a ideia de um simpósio que esmiuçasse o Plano Collor.

Com o apoio do Reitor, que não era nada simpático a “Rochinha”, mas via, como eu disse, uma oportunidade de golpear Collor, organizou-se o evento, com economistas conhecidos como palestrantes, de dentro e de fora do governo. Foi quando Ana Carla pediu-me que levasse meu colega de Senado, o ex-embaixador Roberto Campos, para o último debate do encontro. Deba­teria também Fernando Hen­rique Cardosos, que já havia aceitado o convite.
Cristovam Buarque também estaria presente. Quando falei com Roberto Campos, ele arrepiou carreira: “Nunca mais vou pisar naquela UnB. Aquilo é um antro de comunistas. Você esqueceu do que fizeram com o Kissinger? E eu mesmo já fui hostilizado em uma visita àquela Universidade”. Ele se referia a um fato ocorrido anos antes, em novembro de 1981. O ex-secretário de Estado americano, Henry Kissinger, havia sido convidado pela Reitoria para uma palestra na UnB. Era ainda a época da Guerra Fria, mas estávamos vivendo a abertura política imposta pelos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, naquela altura executada pelo presidente-general João Figueiredo.

Os partidos de esquerda já adquiriam desenvoltura, e organizaram uma tremenda manifestação contra Kissinger, que entre outras coisas pagava um enorme preço em impopularidade pela Guerra do Vietnã. O fato é que (fato aliás bem relatado pelo jornalista Ricardo Setti, que acompanhava a comitiva) Kissinger, embaixadores, ministros, congressistas e muitas outras autoridades foram alvo de bombardeio com ovos e tomates, e tiveram que ficar retidos no interior da UnB até serem retirados em viaturas policiais. Os estudantes fizeram ainda um enorme barulho com o fato de Kissinger receber quinze mil dólares pela palestra, o que julgavam um escândalo com dinheiro público. Lem­bremo-nos de que Lula cobrou quase dez vezes isso por cada palestra que fez, daquelas pagas pela Odebrecht (dinheiro público?) e cujo conteúdo é desconhecido, mas não se ouviu da UnE nenhuma condenação.

A surpresa

Voltando a Roberto Campos: Só a custo consegui convencê-lo a comparecer ao seminário, garantindo que Rochinha e Ana Carla tinham tudo sob controle, e que eu o acompanharia na ida à UnB. Mas foi um Roberto Campos tenso que entrou comigo no carro que nos conduziu ao seminário. A tensão começou a se aliviar quando encontramos um grupo de estudantes na porta da universidade para dar a ele as boas-vindas.

Formada mesa, Cristovam fez alguns comentários (bastante pobres) sobre o Plano Collor, e falaram os dois expositores, seguindo-se um debate, para um auditório repleto. Muito mais inteligente, arguto, frasista de primeira grandeza, Roberto Cam­pos, agora mais aliviado, exorcizado o fantasma Kissinger, crescia a cada comentário que fazia, a cada pergunta que respondia. O debate ultrapassou o Plano Collor e foi para a Economia e o Brasil, de maneira mais geral. Lembro-me que ficamos até bem tarde da noite no encontro.

Ao final, quando o Centro Acadêmico agradecia aos palestrantes, ouviram-se aplausos quando Fernando Henri­que foi mencionado. Mas quando os agradecimentos se dirigiram a Roberto Campos, o auditório inteiro se levantou e aplaudiu de pé. Creio que só então ele se descontraiu de todo, pois virou-se para mim e disse: “Inacreditável”.

Roberto foi, ao longo de sua carreira, muito combatido, atacado, caluniado e até ridicularizado pelas esquerdas (chamavam-no Bob Fields, como todos devem se lembrar). Só hoje, em seu centenário de nascimento, é aplaudido pela lucidez, pelas previsões certeiras, embora as esquerdas torçam o nariz e não lhe façam justiça, como é de seu feitio. Mas naquele dia, quase trinta anos atrás, estudantes dedicados, jovens não contaminados por um ensino de chavões, o reconheciam e aplaudiam.

Nota do editor: Irapuan Costa Junior assina a coluna Contraponto, no Jornal Opção, e escreveu este depoimento especialmente para o Opção Cultural.