O corpo no cinema: do Coringa de Joaquin Phoenix à “voz” de Scarlett Johansson no filme “Ela”
08 dezembro 2019 às 00h01
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O filme “Coringa” mostra que todo superpoder, quando confrontado ao real da morte, não passa de uma fantasia. E a paixão no filme “Ela”
Cristiano Pimenta
Especial para o Jornal Opção
Quem viu o filme “Coringa” não deixou de se impressionar com o corpo de Joaquin Phoenix, o qual ele emprestou ao personagem do Coringa, Arthur Fleck. Excessivamente magro, rosto enrugado e envelhecido, ossos sobressaindo sob a pele — esse corpo se apresenta, no contexto do filme, como um dejeto. Como escrevi num artigo recente para o Jornal Opção, esse corpo, ao qual Arthur Fleck está identificado, representa o esgoto da cidade de Gothan City, ou, ainda, os “big rats” que nela proliferam sob a forma de epidemia.
Entre a magreza e o corpo musculoso
É fato que hoje os atores preparam sobremaneira o corpo para emprestá-lo aos personagens. Ouvi dizer que o ator Robert Pattinson (o vampiro em Crepúsculo (2008), que representará o “Batman” na próxima edição do filme, está tendo dificuldades em ganhar os músculos necessários ao personagem. É evidente que reina em Hollywood a convicção de que o poder, seja do herói, seja do vilão, sua força, sua maldade, sua capacidade de fazer proezas, etc., são uma decorrência de um corpo musculoso. E essa correlação é de tal modo imperativa que a postura e o modo de caminhar até mesmo de um King Kong (2017) e de um Predador (2018) são idênticas aos dos “marombeiros” de academias de musculação. Estes, logo que deixam os alteres depois de uma série a mais, se sentem mais poderosos, sentem que seus músculos estão maiores e mais visíveis.
Em contraste com isso, como não lembrar dos poderosos, mas magrelos, lutadores e lutadoras de “kung fu” do cinema chinês, como no filme “O Grande Mestre” (2008), ou “O clã das Adagas Voadoras” (2003), capazes das proezas mais inusitadas. Aí já estamos no terreno da fantasia. Bruce Lee, por seu lado, tirou o quimono para mostrar um pouquinho de musculatura dos seus heróis ingênuos (que perambulavam com um quimono que os deixavam ainda mais magrelos), mas nada que não fizesse rir qualquer marombeiro de periferia regado a “whey protein”.
Aqui encontramos outro mérito do Coringa e de Joaquin Phoenix, que nos apresenta um vilão magricelo, mas capaz de amedrontar qualquer um. Mais ainda, de modo geral, Coringa é o vilão que ri da inépcia dos músculos e dos apetrechos tecnológicos do Batman, incapaz este, por exemplo, de salvar sua amada Rachel (Maggie Gyllenhaal) de explodir junto com os barris de gasolina em “Batman — O Cavaleiro das Trevas” (2008), com o ator Health Ledger no papel de Batman. Coringa nos mostra que todo superpoder, quando confrontado ao real da morte, não passa de uma fantasia.
De uma perspectiva reveladora, veremos que o super-herói é, via de regra, uma construção imaginária que vem responder à impotência do ser humano normal, ou mesmo, à sua fragilidade. Peter Parker é um adolescente pobre sem pai e sem mãe, cuja moça desejada é namorada do colega de faculdade rico. Clark Kent é o jornalista tímido que se apaga diante da mulher desejada. Ambos, ao se transformarem em seus respectivos super-heróis (Homem Aranha e Super Homem), sentem-se capazes de se aproximar da mulher desejada (respectivamente, Mary Jane e Lois Lane). Vale lembrar que, no dia seguinte à mordida da aranha em “Homem Aranha” (2002), Peter Parker se vê mais musculoso no espelho.
A voz pertence ao corpo
A voz de Arthur Fleck, o Coringa, é tímida, caricata, que sempre se intercala com seu riso que não é nada agradável. A voz é parte do corpo, no sentido de que não há voz propriamente humana sem um corpo que possa emiti-la. Nossa voz está vinculada aos nossos sentimentos. Se estamos tristes, alegres ou com raiva, isso se expressa na voz, salvo quando tentamos disfarçar o que se passa conosco. Um grito de pânico, por exemplo, é carregado de uma intensa emoção, uma máquina poderia imitá-lo, mas jamais produzi-lo espontaneamente já que ela não sente medo. Uma máquina (seja um computador ou um sintetizador) pode produzir os sons mais variados, pode simular uma voz, mas não pode, evidentemente, reger as articulações, inflexões e frequências desses sons pelos sentimentos experimentados no corpo, não pode pelo simples fato de não possuir um corpo vivo onde esses sentimentos seriam produzidos. A voz de uma máquina, por si só, estará sempre condenada a ser artificial e sem espontaneidade, salvo quando, por ex., um artista lhe injeta a emoção.
“Her”, a ficção da máquina que sente
Quanto à voz em sua relação com o corpo, há um filme importante que fez sucesso e recebeu importantes premiações, dentre elas o Oscar de melhor roteiro: “Ela” (“Her”, de 2013). Trata-se de um drama com uma pitada de comédia e de ficção científica dirigido por Spike Jonze e protagonizado pelo mesmo Joaquin Phoenix. O enredo conta a história de Theodore (Joaquin Phoenix), que vive o luto de uma separação da sua amada namorada. Solitário e triste, ele se envolve com Samantha (voz de Scarlett Johansson), uma espécie de aplicativo (como o “Siri” do IOS) que consegue simular tudo o que um verdadeiro parceiro amoroso diria, responderia e até faria.
É nessa capacidade fenomenal que tem Samantha de aprender e produzir as respostas mais humanas, mais femininas (ou masculinas, se necessário for), que reside o que há de ficção científica no filme. Samantha é capaz de viver com Theodore (e este com ela), não apenas aquilo que a era da internet fez proliferar, a saber, o gozo sexual, as fantasias sexuais, etc., mas, pasme (!), um verdadeiro amor. O que ocorre entre Samantha e Theodore é um autêntico relacionamento amoroso no qual ela, a máquina, e ele, o ser humano, “sentem” o amor, o ciúme, a possessão, o desejo sexual, o pertencimento, a distância e até a traição.
Assim, no filme, Samantha é uma mulher perfeita, exceto por não possuir um corpo. Neste ponto, lançamos uma desconfiança, pois este filme parece ocultar ou esconder o fato de que Samantha só poderia agir e ser como é se tivesse um corpo. Nossa desconfiança está ligada ao fato de que tudo o que ela relata ser um “aprendizado” vem sempre, como ela mesma diz, do que ela “sente”. Não é por acaso que as palavras mais ditas por ela no filme é “estou sentido…”. Apenas a título de exemplo, vemos, no ápice de uma cena picante em que ambos chegam ao orgasmo, ela se manifestar assim: “Estou sentindo você dentro de mim”! Aqui já estamos na comédia.
Ora, sendo assim, vejamos se é possível postular a existência, em “Ela”, do corpo de Samantha, uma vez que esta personagem só poderia se sustentar enquanto um objeto de amor, enquanto “objeto causa de desejo” para Theodore (e também para o espectador) na medida em ela tiver um corpo. De imediato teríamos que admitir que esse corpo de Samantha tem a característica de não aparecer na cena, é um corpo que não se vê, encontra-se escondido pela magia da ficção científica, é um corpo que se passa por máquina para que sejamos levados a acreditar que é uma máquina que está falando com Theodore.
A voz que vivifica o desejo
No entanto, Samantha possui uma voz, e essa é uma voz real, pertencente a atriz Scarlett Johansson. Eis aí uma pista que nos leva ao que há de real nesse corpo: o que em psicanálise chamamos “o objeto voz”. Na teoria lacaniana a voz é um dos objetos da pulsão (Freud), ela encarna o que resta de vivo no corpo, uma vez que este foi inserido na linguagem. A linguagem mortifica o corpo, mas deixa ainda vivo alguns restos, algumas partes desse corpo. Tal como a boca, a voz é, assim, uma das fontes de estímulo da pulsão. Por isso mesmo, a voz é o índice da carne, tal como vemos nas imagens estranhas de uma voz sendo produzida pelo ar passando pelas “pregas” das cordas vocais.
A voz de Scarlett, por seu lado, possui características singulares. Ela está longe de ser uma voz cristalina, estável, formal, tipo a que ouvimos nos aeroportos. Ao contrário, a voz da musa de Woody Allen e de muitos outros diretores é levemente rouca e falha, pelo menos quando, no calor da emoção, ela atinge frequências mais agudas.
No fundo, a voz humana é como uma digital, nunca é idêntica a qualquer outra. Sendo assim, não parece um exagero — já que passamos todo o filme ouvindo a voz da musa da sensualidade do cinema americano — postular que, sob o efeito da voz real de Scarlett, nós (e também Theodore), consciente ou inconscientemente, sejamos levados a pensar nas formas imaginárias de seu corpo. Ainda que não pensemos exatamente em Scarlett, o importante é que, sob o efeito da voz real, inventemos um corpo imaginário desejável.
Dito de outro modo, o objeto voz, índice do corpo vivo, é necessário para vivificar o desejo, é necessário para que a fantasia de cada um seja tocada. A fantasia de Theodore precisa ser tocada para que ele se apaixone por Samantha. A nossa, igualmente, para que nos interessemos pelo filme. Isso nos permite, por outro lado, esclarecer um efeito curioso que esse filme produz: embora o corpo de Scarlett não apareça na cena nós o sentimos excessivamente próximo, sobretudo quando a voz é mais humana, nos momentos de sussurros, gemidos, orgasmo, vacilações, risos, etc.
A voz que mortifica o desejo
Assim, o copo vivo se presentifica pela voz (e pelos demais objetos da pulsão), que pode vivificar o desejo. Mas a voz pode também ter o efeito contrário, pode servir para mortificar o desejo. A psicanalista Suzanne Hommel, que viveu quando criança o nazismo na Alemanha de Hitler, escreveu um pequeno artigo às vésperas das últimas eleições presidenciais na França. Ela, junto com os psicanalistas da hoje chamada rede Zadig (zero abjeção à democracia), ligada ao Campo Freudiano, combateu a candidata francesa de ultradireita Marine Le Pen nas eleições. Concluo este artigo citando Susanne Hommel no ponto em que ela localiza na voz de Marine Le Pen — não a pulsão de vida que é a causa de desejo —, mas o seu eterno oponente, a pulsão de morte:
“Ligo a televisão. Marine Le Pen fala e os gritos de Adolf Hitler, que ouvi menininha, retornam em minha lembrança. Não é a mesma voz, mas me lembra o mesmo som que ressoou nas palavras de Hitler que eu ouvia nos velhos rádios de madeira e no alto-falante coberto de tecido marrom. A voz de Hitler estava sempre vociferando, berrando. A voz de Marine Le Pen é diferente. Ela não conhece modulação, ritmo nem musicalidade. É linear, metálica, sem tremores, sem hesitação. Não é uma voz objeto (a) causa de desejo. Não causa desejo, antes o interdita, proíbe o pensamento, mas, por outro lado, exige o gozo, e por isso é um instrumento do ‘superego’ freudiano que diz: ‘Goza!’ Como Lacan disse em seu ‘Seminário XX, Encore’: ‘Nada força ninguém a gozar, exceto o superego. O superego é o imperativo do gozo — goza!’”²
Cristiano Pimenta é psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. É graduado em Filosofia pela USP e é mestre em Psicologia Clínica pela UnB. É colaborador do Jornal Opção.
Notas
¹ Crítica do filme Coringa
² Artigo de Susanne Hommel