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O mais importante no filme é o fato de que a escolha de Athur Fleck-Coringa é pela morte, não pela vida. Essa escolha se dá no começo do filme

Cristiano Pimenta

Especial para o Jornal Opção

O que fazer com o lixo?

Quem é o personagem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) no começo do filme Coringa? É uma pessoa reduzida a ser o “lixo” ou o “rato” da sociedade que é a Gotham City do final dos anos 1970 e início dos 1980. A crise do acúmulo de lixo e a epidemia de ratos em Gotham têm a função de mostrar que pessoas como Arthur Fleck não são outra coisa senão o dejeto. As cenas em que ele aparece em meio a enormes montes de sacos cheios de lixo podem ser lidas assim: ele é apenas mais um saco ou um rato que passeia por ali.

Não poderia haver em Gotham uma greve mais significativa que a “greve dos lixeiros”, a greve daqueles que estão encarregados de evacuar os dejetos. Os ricos e poderosos de Gotham não querem saber de gastar dinheiro com os pobres, nem mesmo com os que fazem a limpeza. O ricaço Thomas Wayne, pai de Bruce Wayne — o futuro Batman —, e candidato a prefeito, chega a dizer que os pobres são “palhaços”, são aquelas pessoas que não conseguiram nada na vida e invejam e até querem matar os ricos que, por uma espécie de meritocracia ou superioridade pessoal, são vencedores.

Não entanto, há um preço a pagar quando não se quer nem mesmo, por assim dizer, construir as tubulações para que o esgoto seja escoado para fora. Não auge de sua crise psicótica, Arthur não terá mais acesso ao tratamento público com a assistente médica de saúde. Tratamento este, aliás, de caráter totalmente adaptativo. Não terá mais como comprar seus comprimidos para que, com eles, possa se suportar e não trazer problemas à comunidade. “Eles não estão nem aí para você, Arthur. E também nem aí para mim”, diz a assistente médica quando informa a Arthur que a verba para esse tipo de assistência social foi cortada. Gotham pratica o mesmo liberalismo radical, contrário a toda e qualquer forma de assistência social — o que se pratica no Brasil atual. A consequência disso será, igualmente, uma elevação ao poder dos milicianos assassinos, o pessoal da bancada da bala e o “baixo clero” de Gotham. No filme esses milicianos são representados pelos “palhaços” revoltosos que impõem o caos nas ruas e têm por lema “Morte aos ricos”. Eles visam uma solução por meio do aniquilamento de seus supostos inimigos. O Coringa será, no fim, quando já tiver se tornado um assassino público, o seu líder admirado.

Sob o domínio da segregação

Mas voltemos à dimensão particular de Arthur no começo do filme. Ele foi demitido de seu subemprego como palhaço, apanhou dos ladrões, etc., está em ruína. No entanto, é preciso observar que, para além de ser considerado pelo Outro, amigos, patrões, e os demais ricos da cidade, como o dejeto que deve ser expelido, Arthur está também identificado com esse lixo social. Isso faz com que os acontecimentos como ser roubado, apanhar dos ladrões, não poder fazer a criança rir no trem, etc., só possam receber dele mesmo uma única significação que corrobora sua identificação de ser o lixo. Digamos que, para que o sujeito seja verdadeiramente dominado pela segregação, para que ele se torne realmente um segregado, é necessário que ambas dimensões, a exterior (a de ser tratado como um dejeto) e a interior (sentir que se é um dejeto) estejam em sintonia. Eis a situação em que Arthur parece se encontrar no começo de “Coringa”. Certamente que tal situação emocional poderia encontrar como solução o suicídio. Mas a solução encontrada por Arthur não será a morte de si mesmo, e sim do outro.

Vale lembrar, contudo, que ser tratado como lixo e se identificar com o lixo são duas coisas muito distintas. Basta lembra de um outro filme, “À Procura da Felicidade” (2006), e fazer o contraste. Lá o personagem principal, Chris Gardner (Will Smith), é um negro e pobre que também vive na sociedade americana dos anos 70. Quase todos o consideram inferior, menos ele mesmo. Chris Gardner não está identificado com um dejeto, ao contrário, se sente capaz, tanto que subverte o destino normal que um negro pobre teria nessa sociedade e se torna rico e bem-sucedido. Já em “Coringa”, a situação de Arthur é muito pior que a de Gardner, ele parece não encontrar em si mesmo nenhum ponto de apoio que lhe permita se distinguir do lixo.

O corpo-lixo-rato

Essa identificação com o lixo ou o rato é de tal modo profunda em Arthur que ela se manifesta ao nível do corpo. Seu corpo é esquelético, certos ossos se projetam para fora, se estufam fazendo predominar o feio, o abjeto. E quando produz sua risada descontrolada e doentia é como se expelisse uma secreção. Poderíamos dizer que seu corpo é o corpo de quem subsiste no esgoto, ou, o corpo-lixo, que provoca repugnância em qualquer um. Neste sentido, não me parece correto dizer, como foi dito por alguns críticos, que Arthur não tem uma existência. Pois, de fato, ele existe como um rato. Diria mais: que, ao nível do real da existência humana, ele se constituiu efetivamente um rato. Sua consistência de “Ser” é dada pelo lugar segregado do lixo e dos ratos e, ao mesmo tempo, é assumida interiormente tal e qual. O que vemos na primeira cena em que Arthur aparece sem camisa, de costas, limpando seus sapatos de palhaço, cheio de hematomas, senão um grande rato, um ratão, ou, como se diz no filme, um “super rato”?

A fissura do desejo

Todavia, o filme não seria tão interessante quanto de fato é se nos apresentasse apenas uma identificação total de Arthur com o objeto resto. Não é assim. Pois há uma fissura nessa identificação. Trata-se da fissura produzida pelo desejo. Arthur sonha em ser apresentador de talk show. Em seus devaneios ele se imagina sendo entrevistado pelo grande e admirado apresentador Murray Franklin (Robert De Niro). E nesse devaneio Arthur não aparece como uma excrescência, mas como alguém engraçado e interessante à audiência. É esse mesmo desejo que leva Arthur a usar o caderno de seu relatório médico e psicológico para criar suas piadas. Ainda que estas sejam escritas em meio a frases mortíferas, pode-se dizer que o desejo está presente, está registrado sob a forma de suas piadas, aguardando o momento de serem apresentadas ao público. Esse momento acontece numa casa de espetáculos esvaziada e escura. Nesta ocasião, Arthur parece se auto-sabotar tendo sua recorrente crise de riso justo no momento em que vai contar suas piadas. Ele, de fato, está nervoso, sabemos que esperou muito por isso.

Todavia, por esses acasos próprios às questões do desejo, Murray se apropria de um registro dessa apresentação e mostra essas cenas em seu programa como exemplo de um péssimo piadista. No entanto, para a surpresa do próprio Murray, as imagens de Arthur fazendo suas piadas fazem tamanho sucesso que ocasionam o convite de entrevista, tão sonhado. Mas o espetáculo que aí será encenado por Arthur não é mais o do piadista de riso estranho, pois neste momento Arthur já tinha escolhido ser o Coringa, ele já tinha se transformado no assassino psicopata. Ele mata Murray ao vivo na TV e, com isso, incentiva o caos e o assassinato na já caótica Gotham City. “Mutatis mutandis” não tão distante do que vivemos na atualidade.

O assassinato como o desabrochar do Coringa 

Assim o que me parece mais importante no filme “Coringa”, do ponto de vista do percurso de vida e de escolhas que faz o personagem Arthur, é o fato de que sua escolha é pela morte, não pela vida. Essa escolha se inicia no começo do filme, no momento em que Arthur recebe de seu colega uma arma para se defender dos ladrões. É então que, no ápice de seus fracassos como palhaço, de sua solidão, etc., ao sofrer mais uma injustiça, a de ser espancado no trem pelos três jovens ricos que molestavam uma bela moça, Arthur reage matando-os. É esse acontecimento crucial que fará sua identificação com um ser impotente cair, ou se modificar profundamente. Desesperado, ele sai do trem correndo e vai parar num banheiro público, onde ele encenará uma espécie de dança macabra de ruptura de seu próprio casulo. Essa passagem ao ato, esse assassinato triplo, esse acontecimento imprevisto, faz nascer nele, por assim dizer, um homem de verdade. Um homem que seria capaz de conquistar a mulher desejada, ainda que tal conquista se dê apenas em seus delírios. Um homem que descobre em si algo que ele não sabia possuir: a capacidade de matar sem que esse ato lhe traga qualquer tipo de culpa ou arrependimento. Vemos aí o nascimento do Coringa, num processo que só estará completado ao final do filme, na cena trágica com Murray. Ali também, antes de entrar no palco, ele fará sua dança macabra.

Mas é o assassinato no trem que, doravante, vai alimentar sua coragem, e será o trunfo que seus inimigos não possuem. É munido desse novo ser que acaba de nascer em si que ele irá fazer as descobertas sobre sua infância, na qual ele foi maltratado, violentado por todos, inclusive pela própria mãe. Mas de que lhe servem tais descobertas? Como ele responde a elas? Elas lhe servem apenas para que ele ponha em ação o novo homem que renasceu das cinzas, o assassino psicopata. Ele mata a própria mãe asfixiada no hospital, também mata o colega que lhe deu a arma. E por fim, no espetáculo final, onde sua transformação em Coringa se consuma por completo, ele mata o apresentador numa transmissão ao vivo pela TV. Ainda há no filme uma morte derradeira, a da assistente médica da prisão. Os mais perspicazes se lembrarão do último assassinato do vilão de “Onde os Fracos Não Têm Vez”. Ao sair da casa de sua derradeira vítima, só sabemos que a matou porque verifica se não há sangue nas solas de suas botas.

Arthur e a escolha forçada

Por outro lado, não é com “À Procura da Felicidade” que esse filme deve ser comparado. Pois nada indica que Gardner (Will Smith) tenha tido uma infância tão desestruturante como a de Arthur. Melhor seria compará-lo com “Preciosa — Uma História de Esperança” (2010). Vivendo na década de 80 em Nova York, no bairro do Harlem, Caireece “Preciosa” Jones (Gabourey Sidibe) é uma adolescente de 16 anos que tinha tudo para dar no pior. Pobre, negra, gorda, violentada pelo pai desde a infância, maltratada pela mãe e com dois filhos do próprio pai, ela cresce sem qualquer tipo de amor. Os traumas se amontoam desde a tenra infância, mas a escolha que Preciosa faz, com muita dificuldade, deve-se dizer, no ponto culminante do filme, é pela vida. Ela não deixa escapar as parcas oportunidades que a vida lhe oferece.

Ao contrário, Arthur se vale do que seria a grande oportunidade de sua vida, a de ser convidado para a entrevista com Murray, para consumar-se como um assassino. Parece que, lá onde todas as portas já haviam se fechado, eis que uma delas se abriu para ele. E é importante notar que essa porta se abriu para o que Arthur tinha de mais singular, a saber, suas piadas sem graça. Se abriu para ele se fazer estrela e brilhar, para agradar, para fazer rir, ou quem sabe fazer refletir rindo, e tudo isso por meio de suas próprias piadas, de sua risada, de seu corpo estranho, enfim, de sua singularidade. Todavia, já era tarde demais para se tornar um apresentador. Pode-se até dizer que não perdeu a oportunidade, apenas fez subir ao palco o assassino psicopata que ele há muito já havia escolhido ser. Mas que tipo de escolha é essa senão aquela que Lacan chamou de “escolha forçada”? Jaques-Alain Miller retoma essa noção para dizer que uma verdadeira escolha é sempre uma escolha forçada. Como negar que Arthur foi forçado por todo tipo sofrimento traumático a se transformar nessa aberração que é o Coringa? Mas isso só pôde se dar se ele fizesse a escolha, se ele, por um ato, assumisse subjetivamente isso que se esboçava desde sua infância. E o filme nos narra essa assunção.

De todo modo, é mais pertinente pensar que o caso de Arthur é muito mais grave que o de “Preciosa”, quem de algum modo conservou em si o apego à vida. É mais coerente pensar que as escolhas de Arthur pela morte já vinham sendo feitas desde muito cedo, de tal modo que suas tendências pela vida, como seus desejos de ser um comediante famoso não passavam de semblantes, baseado em imitações. Ou seja, eles eram por demais inconsistentes. Afinal, Arthur nem sabia o que nas piadas realmente fazia as pessoas rirem. Numa apresentação de um piadista vemos que ele ri quando ninguém ri e fica sério quando todos riem. Assim, dadas sua estrutura psicótica e sua relação com ela, qualquer arranjo subjetivo que conseguisse preservar a vida (sobretudo dos outros que pudessem cruzar seu caminho) seria sempre um arranjo muito frágil. Sua trajetória no filme está mais próxima de um, parafraseando o filósofo alemão Nietzsche: “Tornar-se aquilo que já se é”.

Cristiano Pimenta é psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. É graduado em Filosofia pela USP e é mestre em Psicologia Clínica pela UnB.

Notas bibliográficas

FREUD, S. (1919/1980). O estranho. Rio de Janeiro: Imago.

LACAN, J. (1956/1998), A coisa freudiana. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

MILLER, J.-A. (2003). La experiência de lo real em la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós.