O amor de Calligaris
18 novembro 2017 às 10h38
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Psicanalista italiano, radicado no Brasil, relança obra que escreveu para desvendar os mistérios da nação por quem ele caiu de amores e estranhamento, quando pisou em seu solo pela primeira vez na década de 1980
Ler Contardo Calligaris, colunista da “Folha de S. Paulo”, é interessante porque, além de psicanalista, ele é um cidadão do mundo, com pelo menos quatro cidades incríveis girando em sua alma: Milão, Paris, São Paulo e Nova York. São, portanto quatro países, quatro línguas, quatro culturas, com todos os tipos desfilando em seu imaginário, de onde ele tira experiências e relatos para analisar situações. Não é interessante?
Em “Hello, Brasil! e outros ensaios: psicanálise da estranha civilização brasileira”, segunda edição do livro publicado originalmente em 1991, agora saindo pela Três Estrelas (2017, 296 páginas), com acréscimo de alguns novos textos, ele parte da ideia de conhecer o Brasil pela psicanálise. Vai tentando compreender por que se prendeu à nação tupiniquim, tão estranha e atraente, desde que pôs o primeiro pé em seu solo, a partir do primeiro encontro, do primeiro choque e toques melífluos.
Faz isso olhando ao redor, ou seja, comparando culturas, conjugando línguas, sacando as armas das referências, as técnicas psicanalíticas, como se tivesse um sujeito no divã. E não é difícil imaginar tal figura, afinal, a letra do Hino Nacional Brasileiro já coloca o país como um cabra gigante, e meio preguiçoso, “deitado eternamente em berço esplêndido”, pronto para mergulhar no ouvido de um psicanalista.
E eis que surge Calligaris, formado, nos anos 1970, na Escola Freudiana de Paris (que, apesar do nome, o nome do Pai, é “a escola de Lacan”, conforme lembra o autor).
Colono e colonizador
Nos 18 textos publicados neste livro (contando o prefácio extremamente elucidativo), Calligaris analisa o Brasil a partir de elementos fulcrais como a escravidão, a imigração, o modo como se trata a infância, o gozo, a figura do pai (tema caro à psicanálise), a violência, a discriminação social, e uma série de termos do ofício.
Trata-se de uma jornada intelectual a partir do olhar, do ouvido, do sentir de um estrangeiro, que hoje não seria capaz de falar tal como o fez naqueles tempos porque já se sente um entre nós. Seu primeiro texto, “Este país não presta”, dá o tom da conversa, dividindo a personalidade brasileira em duas características basais: a do colono e a do colonizador.
Segundo Calligaris, o colonizador “é aquele que veio impor sua língua a uma nova terra”, e, longe do pai, sentiu-se no direito de fazer o que bem entendesse com essa terra, manejando-a “como se possuísse o corpo de uma mulher e gritasse ‘goza, Brasil’, esperando seu próprio gozo em que a mulher, esgotada, se apagará em suas mãos – prova definitiva da potência do estuprador.”
O colono é “quem, vindo para o Brasil, viajou para outra língua, abandonando a sua língua materna” (mesmo os portugueses), que já não o reconhecia como sujeito, e vem à procura de uma nova pátria. O colono é quem deixou a velha identidade para trás e não consegue se construir como novo sujeito numa terra dominada pela selvageria da elite estupradora.
Essa desconjuntura de alma é o Brasil. E não é o tipo de coisa que muda de uma década para outra. É uma observação psicanalítica à luz da história. Essa metáfora está com todas as portas abertas, e podemos entrar nela para ver de perto o que ocorre. Ainda hoje, quando alguém deixa de ser ‘colono’ e vira ‘colonizador’, transforma-se numa espécie de estuprador.
Os criminosos presos na Operação Lava-Jato (empresários e políticos) são exemplos disso. Os que eram pobres ou da classe média ganharam muito dinheiro assaltando os cofres públicos (estuprando a nação), mas sempre ignoraram as ferramentas políticas que transformariam a sociedade como um todo.
Os que já nasceram ricos, laboram, conspiram, corrompem para ficar mais ricos, instrumentalizando o Estado. Quem um dia se atrever a escrever a história do enriquecimento no Brasil, não se surpreenderá ao perceber que as grandes fortunas foram construídas sempre coladinhas à máquina do Estado, sem contrapartida alguma aos que lhe servem na base da pirâmide.
Outro exemplo é o de quem é da periferia (colono), ganha dinheiro e vai para o centro (colonizador), e passa a ter horror da periferia. Um país assim, com essa dupla personalidade, não muda nunca. Até na sensível discussão racial, vemos negros (colonos absolutos, arrastados à força para o cativeiro passado) que, ajoelhados emocionalmente diante do cinismo racista, porque quer se aliar à elite branca, racista (colonizadora), ou já se aliou, nega a existência do racismo. Haja divã.
No longo prefácio para a nova edição, Calligaris já deixa claro que entender o Brasil, por meio do que ouvia, via, lia e sentia dos cidadãos e do modus vivendi, era também uma maneira de entender a si mesmo. Era um modo de compreender em que mundo se encaixava e como se estruturava esse mundo que ele queria para si.
Ele queria talvez entender a razão mais profunda de sua vontade de deixar Paris, onde morava e tinha consultório, e vir para o Brasil, em 1989, onde passou a viver (com um hiato de dez anos entre 2004 e 2014, quando viveu em Nova York).
Segundo Calligaris, “para quem fala mais de uma língua, cada uma delas talvez permita uma neurose diferente”, e “mudar de língua e de país pode ser um jeito, não de se curar, mas de mudar de neurose.”
Talvez essa observação tenha saído dos manuais de psicanálise, mas talvez o autor tenha compreendido isso ao analisar o Brasil, ou no processo de criação do livro, propriamente, revendo conceitos, evocando memórias, aprimorando o conhecimento de si mesmo. Afinal, ele próprio diz: “Este foi o livro em que me analisei na hora em que decidi me mudar para o Brasil.”
Neste sentido, a terapia serviu mais para o terapeuta, pois o amor se manteve. Talvez o livro de Calligaris mereça ser lido com mais atenção. Talvez no corpo do texto haja uma resposta para a seguinte pergunta: como se insere o eu calligariano interessado nesse corpo estuprado, violado, abusado? Por que o ama de paixão, em vez de sentir pena?