Livro de Andréa Zamorano, brasileira radicada em Portugal há mais de duas décadas, tem como pano de fundo um amor conflituoso e a relação tumultuada com o pai, Virgílio de Sá Vasconcelos, um político alinhado com o regime militar

A história começa com alguém que foi morto e enterrado nas paredes da Casa das Rosas (prédio da Avenida Paulista, que hoje é um centro cultural), e sua voz sufocada direciona a narrativa | Foto: Divulgação

 

Ronaldo Cagiano
Especial para o Jornal Opção

Escritora brasileira radicada em Portugal há mais de duas décadas, Andréa Zamorano  lançou no Brasil seu primeiro romance “A Casa das Rosas” (Ed. Tinta Negra, Rio, 2017), obra cuja edição portuguesa (Ed; Quetzal, 2015) recebeu o prêmio ”Livro do Ano”, da revista “Time Out”.

Em recente visita ao Brasil, Andréa participou de feiras literárias como a Flip e a FliAraxá, tendo ainda realizado lançamentos do livro no Rio de Janeiro, Petrópolis e São Paulo, apresentando ao leitor uma história que, entre a memória e a invenção, compõe uma abordagem caleidoscópica dos fatos que marcaram as últimas décadas do Brasil, num período em que autora e personagens são testemunhas das metamorfoses e transformações políticas, sociais e de valores por que passaram o país e seu povo.

A narrativa que mistura as inquietações íntimas de Eulália com o período das lutas políticas pela redemocratização nacional, tem como pano de fundo um amor conflituoso e a relação tumultuada com o pai, Virgílio de Sá Vasconcelos, político alinhado com o regime militar, separado de sua mulher Cândida, com quem teve uma convivência problemática, tendo ela desaparecido após o nascimento da filha.

Eulália não conheceu a mãe, passou a vida num casarão na Avenida Paulista, que no passado pertenceu a barões do café (e desde 2004 transformada num importante centro cultural e literário, Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos,  que empresta o nome à obra), cenário de toda a trama, onde os acontecimentos se sucedem, muitas vezes enevoados no mistério, o que culmina numa prosa que oscila entre a realidade tangível e o nonsense.

Degredo
A história começa com alguém que foi morto e enterrado dentro das paredes da casa, e essa voz sufocada (que ao final, vai ser desvendada) direciona a narrativa e a catapulta para atmosferas que incorporam elementos do realismo fantástico. Essa personagem viveu privada de sua própria liberdade, pouco desfrutando da cidade, tendo o pai como um herói que o tempo vai cuidar de destronar, pois em seu autoritarismo impunha um imenso degredo à filha.

Submissa como a mãe (que conseguiu se rebelar e fugir), Eulália foi acossada pelos caprichos de Virgílio, que lhe impunha rigor e obediência. Foi cursar Direito na USP por sua imposição, vivia encerrada numa solidão e angústia sem limites (só ia para a faculdade acompanhada do motorista), tendo apenas como interlocutores o jardineiro Raimundo e a cozinheira Cesária, espécies em surdina de alívio para suas confissões.

Conhecendo pouco do mundo e das relações, cria fantasias em torno de si, como por exemplo a paixão por um personagem de Roberto Bolaño, o poeta Juan García Moreno, entidade que vai abastecer suas ilusões e com quem realmente realiza seus diálogos e seus trânsitos oníricos.

Num ritmo em que a alucinação e o insólito desencadeiam situações bizarras, chega o dia do seu aniversário de dezoito anos, quando recebe de presente do pai um vestido de noiva para casar-se com ele e incorporar, nesse caso, o papel da própria mãe, Cândida. Rejeitando essa condição, empreende sua própria fuga com a conivência de Koi, um sagui que aparece diante de sua casa e passa a segui-la e ser fiel escudeiro nas deambulações pela cidade.

Desse modo, por um tempo passa a viver na rua, junto com seu alegórico animal, sendo ora Ana, ora Maria, e nesse tempo começam uma busca sobre seu paradeiro, com investigadores em seu encalço, em lances enigmáticos típicos dos melhores romances policiais.

Entre dois mundos
Essa experiência é transformadora e revela aspectos de seu passado e da sua mãe. Esse é um sumiço, tanto físico quanto emocional, da realidade claustrofóbica que a agredia, uma tentativa também de purgar o asco que começa a sentir pelo pai, esse homem que traveste-se também num ser atormentado e confuso, que vê a ex-mulher em todo o canto e dialoga com ela como se falasse com um fantasma.

Após esse exílio pelas ruas, dormindo em marquises ou dentro de monumentos públicos, sempre acompanhada de macaco falante e onisciente, a personagem retorna à casa e parece haver uma confusão de personas: Eulália, Maria e Ana habitando uma só, num entrechoque entre os mundos territorial, íntimo e ficcional.

O passado político recente do país está muito presente na história, pois a luta pela redemocratização, com o emblemático 24 de abril de 1984, dia em que o sonho das Diretas Já foi enterrado com a derrota da emenda Dante de Oliveira, embute não só uma discussão sobre os destinos de um povo, como dos próprios personagens. Pois é uma obra de pura reflexão, que carrega essa carga simbólica da transição e metaforiza as vidas arrevesadas de uma nação e dos próprios personagens, todos perdidos em seus labirintos geográficos, afetivos e emocionais.

Entre a verdade e o delírio que percorrem a trajetória de Eulália e no confronto de realidades, em que passado e presente se (con)fundem, a arquitetura sutil e imagética da história cuida de amalgamar o discurso utilizado em “A Casa das Rosas” e expõe os espíritos conflagrados de um tempo de escalonamento de valores em nosso País.

Resulta de um delicado labor da autora que confere um frescor à trama, em que ressonâncias de seu inconsciente e da memória histórico-político-social afloram para destacar a transitoriedade entre mundos reais e fictícios, entre tempos históricos e psicológicos, quando o apelo da fantasia muitas vezes é o verniz com que o ser enfrenta os paradoxos e perplexidades de uma trajetória comum.

As experiências individuais e coletivas são sempre permeadas de um hálito de mistério e recorrências metafísicas, e a autora soube bem representar em Eulália essa condição, como fiel estuário dessas reflexões e questionamentos emulados pela autora.

Ritos de passagem
Vale ressaltar que a fantasmagoria que envolve toda a história foi um poderoso recurso utilizado para espelhar os momentos dramáticos que moldam a vida de uma pessoa ou de um país, quando os contrários se encontram num mesmo cenário para enfrentar ou reagir às tensões imantes.

Eulália, com sua coragem revolucionária e o pai, o político contrário às lutas pela democratização, sem vontade de alterar o status quo vigente, simbolizam esse embate dialético em que cada qual, à sua maneira, vai usando suas armas para fazer suas catarses. A filha, pela fantasia delirante de um contato com um personagem literário que estaria por paginar a obra futura de um autor chileno. O pai, pela afronta a qualquer tentativa de liberdade, exercendo seu papel castrador, cortando as asas de um voo reivindicatório de toda uma geração.

“A Casa das Rosas” é, em suma, um livro sobre os ritos de passagem, alegoria sobre um passado de muitos espinhos e cujos espíritos ainda nos atormentam. De uma personagem que rompe com seu status opressivo; e de um país que enfrenta e afronta a opressão e luta para estabelecer em definitivo o estatuto da democracia e das liberdades. Dois personagens, Eulália e o Brasil, em completa ebulição, que explodem interna e externamente diante do horror que vivem, para implodir a asfixia e a pusilanimidade que os algemam e humilham.

Eis um livro denso e tenso, mas crucialmente poético sobre nossa precariedade e nossos dilemas, obra que anda nas trilhas especulares de Borges, deixando ao leitor pistas que se desvelam como em palimpsestos, cabendo ao leitor lançar suas próprias luzes sobre os assombros de um tempo.

Seu estilo envolto em suspense e mistério, peculiarizado por um percurso intertextual, conferindo estreito e sofisticado diálogo com outras vertentes e tradições da língua e da literatura, sugerem uma autora em pleno e versátil domínio da arte narrativa, com sua dicção envolvente e finamente elaborada, que desemboca num final surpreendente e com um acento marcadamente labiríntico e cortazariano.l

Ronaldo Cagiano é um escritor brasileiro que reside em Portugal; é autor de “Eles Não Moram Mais Aqui” (Ed. Patuá – Prêmio Jabuti 2016), entre outros

A Casa das rosas
Autor: Andréa Zamorano
Editora: Tinta Negra (Rio, 2017, 176 páginas)
Preço: R$ 41,00