Basileu França reconstrói a beleza inspirada em novela de Mérimée e impulsiona, do teatro para a cidade, as grandes produções

Carmen , ópera em quatro atos: além da valorização da mulher, obra enriquece a vida dos artistas  e a vida artística da capital goiana | Foto: Divulgação/Escola Basileu França
Carmen , ópera em quatro atos: além da valorização da mulher, obra enriquece a vida dos artistas
e a vida artística da capital goiana | Foto: Divulgação/Escola Basileu França

Yago Rodrigues Alvim

Qual a liberdade dum passarinho metido numa gaiola? Ah, amor que ficaria murcho, feito flor sem sol, inundada em água. Escuta? Escuta o silvo da mulher que vem sem trilhos, destruindo a floresta intacta de aristocracia, ciganos –– gitanos, terra d’An­da­luzia e flores francesas, no português do coro grego, um calor africano? Lá vem a mulher de Bizet, vem Carmen. Toma cuidado, é certo se apaixonar!

“O amor é um menino cigano”, já disse. Foi lá e roubou a calma de Don José. Fez-se banquete dionisíaco brindando taças de sangue. Não falemos muito, é bom se calar: há segredos. O que não significa o fim deste texto, que mal se apresentou. Gostou do arredio da cigana. Eis um escarcéu! Pois, o linóleo dum teatro há de se emocionar com as cores, pintar com as vozes, dançar com os sentidos interpretados, ecoar com as danças e malabares: e ainda há orquestra.

É linóleo de Basileu França. É um espetáculo baseado numa das óperas mais encenadas e reconhecidas por fronteiras afora. “Carmen”, de Georges Bizet, baseada na novela de Prosper Mérimée, aplaudida por Wagner e Nietzsche no século XIX, aqui, na capital goiana, é reconstruída pelo olhar de Jonatas Tavares da Silva e representificada nas noites deste final de semana. O diretor viveu 12 anos em Madri, donde, com propriedade, diz do calor da peça. Afinal, “tudo é muito poético, dentro de uma métrica cultural”, disse.

A composição se lança ao que não se pode ver, pois, pela primeira vez em Goiás, a língua recorre ao português para descrever toda a mágica da sexta, 30, a quem vê com os ouvidos. Audiodescrição que será feita no espetáculo que ganhou o título “Carmen y Carmen – Festa, paixão e morte”. Essa é uma das importantes ressalvas. Outra é todo o embaraço que costura a ópera, com regência do maestro Emílio de Cesar, vindo de Brasília. Participam de Carmen y Carmen, alunos das diversas artes da escola, o Centro de Educação em Artes (CEP Basileu).

Cynthia Borges, atriz, e as solistas Débora di Sá e Nataly Brum são as mulheres da música “L’amour Est Un Oiseau Rebelle”, a tão conhecida “Habanera” –– por isso, a gaiola. São moças que dão vida a força da protagonista, seja em canto ou interpretação. São elas presas da loucura à que chega Don José, vivenciado pelo solista Hélenes Lopes e pelo ator Mateus Abreu.

Passarinhos

Entre conversa e outra, um encontro: por envolver orquestra, coro cantado, solistas, artistas circenses, dançarinos de balé clássico, dança contemporânea, atores dramáticos, e outro profissionais, como arte visual e dum processo de pesquisa de figurino, de luz a cenário, os ensaios seguiram num rápido ritmo, um pouco individual e, em sua última semana de preparo, foi se apresentando no todo. Foi mostrando o que é Carmen.

“É divertido e é assustador”, contou Cynthia sobre sua personagem que é escandalosa, não aceita regras. Encantadora, estonteante. “Fora do controle. Fora do que eu imaginava que fosse. Ainda estou descobrindo, pois, como vou honrar esse personagem clássico, que já foi feito tantas vezes?”. Ela é concluinte do curso em Arte Dramática e comentou dos conhecimentos que se dispôs, aprendidos e apreendidos ao longo dos três anos de formação, para compor o feminino de uma mulher que joga com a sedução, numa história que se finda triste. Antes, ah, o antes: ela, Carmen, é a aventura que destrói as regras. Por isso, as críticas que recebeu a peça, quando da primeira encenação, em 1875.

Também é aventura que destrói Don José, o moço Mateus. Veio fora dos planos, foi árvore enlouquecida pelo sem querer do acaso. Fez um teste, ganhou o papel teatral. Começou sua pesquisa externas, pelo texto e vida, e interna. “Ele é um homem bom”, disse com uma certeza na voz, vinda de uma dificuldade dos fatos. A mulher o leva ao extremo. “A razão existe longe de Carmen, porém, quando está perto, só a emoção fala e ele não consegue se conter”, explica, sobre o personagem que vivencia. Ele se perde na impureza desse amor. Não consegue equilibrar os lados.

A lucidez de José vem da moça aristocrata Micaela, sua noiva, vivida por Camila Borges, Maria Rita e pela solista Patrícia Mello. “Di­fe­rente da cigana Carmen, é singela, ro­mântica e idealiza o amor por Don José. É apegada à família. Está sempre buscando esse ho­mem, que foi embora com uma mu­lher diferente dela. Foi noiva, pro­metida e tenta tê-lo de volta”, ca­racterizou Maria. Não é triângulo. É quadrilha, como de Drum­mond. Micaela amava Don José que amava Carmen que morreu de desastre por amar Escamilho, que não tinha entrado na história.

Ele é toureiro, dos bem famosos. Foi daí a dificuldade de Kleber da Silva, que interpreta teatralmente o personagem –– no canto, o solista e professor do CEP Basileu, Júnior Cesar, vive Escamilho. “Ele se sente superior, é metido. É um toureiro, desejado pelas mulheres. Extrovertido e irônico com os outros personagens. Ele se envolve na história, quando encontra Carmen e se apaixona. Não sabe do amor que ela tem com Don José. Surge a rivalidade entre os dois, por ela”, desenrola a história, o estudante Kleber.

Não vale concluir o espetáculo, por mais conhecido que seja. Quem sabe salve o esquecimento, o inesperado da história. A narrativa aqui é para contar um marco goiano. Além da audiodescrição, os efeitos são grandes para cada vida dali e para vida de uma Goiânia longe das grandes produções. Primeiro, para os que têm aquelas paredes laranjas que os oferecem tanta vivência à quem entre elas estuda. O espetáculo não conseguiu apoio da Lei Goyases, tampouco captou recursos, por mais que tenha sido aprovada pela Lei Rouanet.

Gaiola Aberta

O apoio veio por meio da Secretaria de Ciência e Tecnologia (Sectec), do Estado de Goiás. A dificuldade existe, mas não quis falar sobre ela o diretor Jonatas, afinal, “tudo é difícil, tudo é muito complicado”. No ano passado, foi encenado “Carmina Burana”. “Deu muito certo e, por isso, demos continuidade a esse trabalho grandioso, com a ópera” afirmou Adriana Brito, preparadora de atores –– a preparação vocal, do coral e dos solistas é trabalho da professora Volga-Lena Guimarães. Ópera, explicou Jonatas, exige virtuosidade, musical, interpretativa, de cenário e tudo o mais. É mais uma linguagem para que os estudantes experenciem no curso.

Não só essa contribuição, a integração entre as diversas expressões, seja em corpo voz, corpo movimento, nas suas diversas possibilidades –– seja em circo, danças, teatro, no tocar instrumentos –– é algo valioso para quem quer que participe do processo. As turmas em nível técnico do teatro, por exemplo, são pequenas. Estudantes de Formação Inicial Continuada (FIC) participam e ganham essa vivência. Outros que participam são os de Produção Cênica, o novo curso do CEP. Rogério Oliveira participa na produção executiva e produção de cenografia e adereços. Ele diz: “É uma espécie de estágio, pois nos permite associar a teoria com a prática. Oferece crescimento aos estudantes”.

“É bom para aprender a trabalhar em grupo e aprender a admirar a arte do outro. E, no fim, perceber, além do que você faz, a existência de um universo grandioso, que é arte também”, conclui Mateus sobre uma soma que resulta em cerca de 300 artistas, das diferentes áreas. Artistas, esses, que contam histórias. Essa é a intenção. Contam para Goiânia e além-fronteiras. A janela não mostra apenas a escola como paisagem. É para que se veja arte.

“A cidade ainda está construindo um espaço para fazermos arte. É algo moroso e trabalhoso. É cotidiano na cidade. A princípio, essa divulgação da escola. Do empenho das pessoas que trabalham nas diversas linguagens artísticas. De repente, quando acontece um projeto assim, a escola se mostra”, ampliou Cynthia, ensinando que, além das profissões de médico, advogado, empresário, há esse outro lado. Há a arte. E, quem sabe, “de ópera em ópera, a cidade ir desejando, ir pedindo por isso. Querer coisas bonitas”.

Do universo de 60% das mulheres que se chamam Carmen, na Espanha, como trouxe de curiosidade Jonatas, na conversa: a força feminina se espalha através trabalhadoras da fábrica de tabaco, no espetáculo. A cigana, Carmen. Mulher protótipo de liberdade. “Ela ilumina”. Ou apolínea, a Micaela duma beleza pura, que envolve Don José, que envolve o público. Duma nascente renascentista italiana, a ópera. A Carmen. O passarinho cigano-carmim, preso pelas paredes de Basileu, se esvaindo pela fresta, marcando com teu grito o flanco de embarcação goiana: arte, que bate asas, foge: avoou.

“Carmen y Carmen —
Festa, paixão e morte”

 Dias: 30, 31 de maio e 1º de junho
Horário: 20h00
Local: Teatro Escola Basileu França – Av. Universitária, nº 1750, Setor Leste Universitário – Goiânia – GO
 Ingressos: R$ 40,00 (inteira) R$ 20,00 (meia-entrada).
 Mais informações: (62) 3201-4045