Gustavo Corção e o compromisso com o eterno
25 julho 2018 às 16h24

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Há 40 anos, neste mesmo mês de julho (dia 6), morria um dos maiores escritores católicos do Brasil: Gustavo Corção. Quatro décadas passadas, o nome de Corção começa a ter a poeira do silêncio espanada de sua memória, por conta das reedições de sua obra e da discussão que seus temas geram, atraindo uma legião de novos leitores por seu compromisso com o Eterno

Corção permanece, 40 anos depois, como na afirmação de Gilberto Freyre: “Uma alma para quem o tempo imediato, o próprio tempo histórico quase não conta, tantos são seus compromissos com trans-tempo”. E digo: imensos são seus compromissos com o eterno.
Em meio a vários relançamentos das obras de Corção e do debate que se deseja sobre a obra do pensador e romancista católico, há joio e há trigo, como polemiza dom Lourenço Fleichman no artigo intitulado “Falsas Lições sobre Gustavo Corção[i]”.
Polemista em vida, Corção morto torna-se motivo de polêmicas, dono de uma escrita estilística é às vezes massacrado pela garatuja dos que escrevem sobre sua vida. Há dez anos, dom Lourenço escreveu sobre Corção:
“De que nos serviria um Corção para ficar no armário? Qual a utilidade de um Museu Gustavo Corção? Queremos Gustavo Corção vivo, dentro de nós, espada em punho, saindo pelas ruas da cidade, pelas esquinas do mundo, confundindo os traidores da verdade e os inimigos de Deus. Precisamos de leitores que aprendam a pensar com os primeiros livros do mestre, mas que aprendam sobretudo a discernir o tempo presente com a ajuda de “Dois Amores Duas Cidades” e “O Século do Nada”. Aqueles nos servem para o início, estes para o fim. Aqueles agradam a todos, estes só agradam aos combatentes. E por quê?
– Porque não basta conhecermos o que está a nossa volta, aqui, neste ano de 2008. É preciso conhecer as causas que levaram a Civilização Católica Ocidental a desaparecer nos escombros de 500 anos de desvios, de erros filosóficos, de erros quanto aos princípios universais, mas que rapidamente se transformaram em colossais monstros políticos que geraram a carnificina, o genocídio do nome católico, a crueldade do comunismo, a religião do deus feito Estado para usurpar o Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Lembro-me que, em 2010, quando o então candidato a presidente da República José Serra visitava a Federação das Indústrias de Goiás, eu tive a chance de perguntá-lo: por que tanta raiva contra Corção? Foi, certamente, questão que mexeu com uma memória antiga do candidato, que parou para esclarecer que, na função de presidente da União Nacional de Estudantes (UNE) da década de 60, só o Corção fazia oposição ao que ele, Serra, pensava ser o melhor para o Brasil, mas que isso se deu em alto nível e que não guardava mágoas das polêmicas.
O fato é que numa época em o catolicismo no Brasil possuía uma inteligência ativa e politicamente combativa, Corção foi o que o jornalismo da época intitulava de “figura de proa”. Hoje, a inteligência católica combalida não combate, militante é o ateísmo, sob o silêncio de nossos luminares fiéis leigos e religiosos.
Em “Dez Anos[ii]”, livro publicado em 1958 e que reúne suas crônicas de uma década (o prefácio é de 1956), Corção confessa publicamente que “a inveja que tenho da graciosa liberdade dos poetas”, escrevendo sobre Manuel Bandeira na crônica “Um Sábado de Poesia e de Loucura”: “Ousarei confessar-lhe, ó poeta, que não morreu ainda o poeta menos-do-que-menor que não fui?… Só essa poesia segunda, essa poesia de avental, subalterna, engajada, que tenho posto a serviço do meu ciumento Senhor”.
Tudo isso porque Corção sabe que seu ofício é o do combate. “Sou hoje militante. Engajado. Comprometido. Com sete deveres de estado e com um noivado no céu…Não posso mais desatar a mordaça do doido que quer dançar e cantar.”
É sob o julgo suave do que designa de “sete deveres de estado e promessas no céu”, que Corção exercita a crítica, com disciplina, evitando a “nostalgia da disponibilidade” (a crônica amena e insípida): “bem quisera, bem quisera, mas não posso. Sou militante. Mal ou bem, devo trabalhar na distribuição de artigos alimentícios. Devo moer a farinha para as almas”.
Os artigos dele, ditos “nutritivos”, eram provenientes desta farinha para as almas que mistura Léon Bloy, Ortega Y Gasset, seu amigo e antípoda Alceu Amoroso Lima, Osvald de Andrade, Georges Bernanos, Machado de Assis a questões sociais e musicais, de Mozart ao cumprimento das saias, do conserto de automóveis ao suicídio de Getúlio Vargas, tudo com a marca da alta cultura que marcou a passagem de Gustavo Corção pelas letras nacionais.
Lendo Gustavo Corção “…eu pude entrever um pouco daquilo que na eternidade é esplendor”. Seu livro “A Descoberta do Outro” foi um dos responsáveis diretos pela reconversão e minha confirmação (crisma) na Igreja Católica, eu que havia sido criado num lar protestante. Soa-me na consciência a expressão “prisioneiro de Deus” com que encerra a novela da conversão: “E aí está, leitor amigo, como acaba esta história, um pouco no gosto das novelas policiais, estando eu desarmado, inteiramente entregue, hands up, como um prisioneiro de Deus”.
Li este livro de Corção em 2004 e ele acendeu-me na alma a certeza de que “o lar do cristianismo” é um só e daí decidi pelo meu retorno ao lar. Egresso da universidade, sentia-me como que saído de uma lavagem mental que fazem aos jovens brasileiros, para dissipar nas almas todo o senso de pertinência e do atavismo do eterno. Depois que saí da faculdade e tendo já alcançado o que se chama sucesso na vida profissional, ia eu contra o céu, sob o sol abrasante do anti-caçador de borboletas, quando encontrei Corção.
Devo essa preciosa descoberta ao amigo César Miranda, como quase todos os bons autores daquela fase que junto do Corção vieram: G. K. Chesterton, Santo Agostinho, Thomas De Kempis, C. S. Lewis, São João da Cruz, Tomás de Aquino, Santa Teresa D´Ávila, Georges Bernanos, Jacques e Raíssa Maritain, João Paulo II –, todos motivadores de questionamentos e busca da pátria celestial.
“Para nós o fundamento da inteligência não é a dúvida, mas a absoluta certeza. Depois dessa certeza, vem então uma dúvida feita de prudência, vêm os problemas de consciência, as hesitações de que nossa vida está cheia
…
A dúvida cristã não ofende a objetividade, mas se interpõe em nosso caminho obrigando-nos a uma prudência em todas as nossas obras.[iii]
O cristão tem um único contramito, que é o mistério, que não se opõe a cada mito do mundo, mas a todos segundo o absoluto de uma pertencença. É a presença real de uma nova categoria que torna o mistério cristão um contramito absoluto: sai do plano do mundo estando fincado nele; é como a escada de Jacó, que estabelece um nexo entre a terra e o céu; é uma corrente viva entre as realidades do mundo e as realidades sobrenaturais que são excessivas para nossa razão.”
O homem “seco de fé” via-se, graças a um livro de Corção, mais próximo da fonte da água viva. Mas era mister continuar aperfeiçoando o conhecimento e a mirada da obra do católico extraordinário e simples, deste cientista humano, deste romancista-cronista da vida, deste homem que foi vítima, em nosso País, talvez do maior desonesto “acordo de silêncio”, daquela mesma recusa de dar aos jovens suas obras e suas ideias.
Mas isso não surtiu o efeito desejado pelos ideólogos marxistas, a quem Corção se opôs frontalmente, tampouco aos defensores da igreja reformada pelo Concílio Vaticano II, contra o qual Corção também se opôs, continuando a comungar e celebrar no rito Tridentino e o defendendo na revista Permanência.
O fato é que assistimos ao retorno do velho casmurro, do pontualíssimo e profícuo Corção, do cronista-de-capa-e-espada, do valoroso Gustavo Corção, seja pela reedição de suas obras, seja pela polêmica que causa, como no caso do livro de Marta Braga, “Lições de Gustavo Corção”, que ainda não li, mas já se colocou no centro da polêmica com dom Fleichman, na revista fundada por Corção (Permanência), cf. a nota i. nas referências a este artigo.
No website da Editora Vide[iv], o leitor ansioso por conhecer a obra de Gustavo Corção encontrará disponível para aquisição pelo menos seis livros de e sobre o mestre carioca, de quem encerro afirmando o que ele próprio disse sobre G. K. Chesterton[v]: “Se existem livros decisivos, mais próximos e mais fraternais, para cada um de nós, Chesterton [eu digo: Corção!] nos dará uma boa informação a esse respeito, porque sua obra é extraordinariamente comum e extraordinariamente original”.
Gustavo Corção e “Lições de Abismo”, segundo o website da Editora Vide, que relançou o romance este ano (a primeira edição é de 1953): “‘Lições de abismo’ é o único romance do escritor brasileiro Gustavo Corção, considerado por muitos críticos literários como a sua obra-prima. Sobre ele, disse o poeta Menotti del Picchia: ‘Creio, sem temor de exagerar, ter lido o maior livro de ficção que já se escreveu no Brasil'”. O romance também foi responsável pela seguinte declaração de Oswald de Andrade sobre Corção: “Depois de Machado de Assis aparece agora um mestre do romance brasileiro”.
O romance conta os últimos dias de vida do professor José Maria, diagnosticado com uma doença terminal que lhe deixou com cerca de três meses para, como ele mesmo diz, preparar a própria morte. Recluso em seu quarto, na companhia de poucos livros e alguns botões de rosa, José Maria recapitula a vida e elabora sérias reflexões sobre a morte e o porvir.
Gustavo Corção é considerado um dos maiores escritores brasileiros de toda a história da literatura nacional. Nasceu em 17 de dezembro de 1896 no Rio de Janeiro. Fez o curso de Engenharia na antiga Escola Politécnica do Rio de Janeiro, posteriormente lecionou eletrônica aplicada às telecomunicações, trabalhou em astronomia de campo, em serviço de força e luz, em radiocomunicações e em atividades industriais até 1948.
Casou-se em 1924, ficou viúvo e casou-se novamente em 1937. Converteu-se à Igreja Católica em 1939 e publicou seu primeiro livro, “A Descoberta do Outro”, em 1944 (Agir). Foi diretor da revista A Ordem e do Centro Dom Vital, do Rio de Janeiro, colaborador semanal de O Estado de São Paulo, do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, do Correio do Povo de Porto Alegre e de O Globo do Rio de Janeiro. Gustavo Corção morreu em 6 de julho de 1978.
Deixo ao leitor um trecho de “Lições de Abismo”, prometendo voltar a Corção um dia desses aqui mesmo em Destarte:
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“Ora, tudo o que se diz e se faz, de mais ou menos sensato ou mais ou menos absurdo, depende da solução desse enigma. Quem sou eu? Para que a vida tenha sentido, e para que a morte mesma tenha alguma decência, eu preciso saber quem sou, por que vivo, por que morro, por que choro. De que me vale apreender o milhar de relações do mundo exterior, se não consigo apreender a substancial realidade que me diz respeito? Que me adianta medir a distância do sol e analisar a configuração do átomo de urânio, se desconheço a largura, a altura, a profundidade de meu próprio ser? De que me serve ganhar o universo se ando perdido de minha alma?
Seria justo dizer que só hoje, desde os remotos tempos de colégio, me veio à mente uma ideia religiosa? Não; não creio que possa dizê-lo. Essa ideia, que hoje me apareceu com certo realce, sempre esteve em torno de mim. Silenciosa, discreta, ela estava ali, aqui, acolá. Como as coisas a que nosso olhar se habituou – este armário, aquela estante, o relógio, a jarra – assim também, familiar e esquecida, anda em torno de mim a ideia de Deus. E os detalhes dessa ideia. Sim, numa decoração antiga, a que eu já não prestava atenção, cercavam-me os detalhes de Deus: a cruz, os sinos, as velas, as imagens coloridas, os anjos, os santos, e a figura muito velada e muito vestida da Virgem. Nunca me servi dessas coisas, nunca prestei atenção, mas agora, estando a conversar comigo mesmo, propus-me a seguinte experiência: pensar num mundo sem cruzes, sem velas, e sem imagens de Nossa Senhora. E registrei imediatamente o primeiro impulso de minha alma: esse mundo seria horrível.
Que devo pensar dessa reação? Terei eu ainda a mesma fé, mais enraizada do que pensava? Ou estarei a procurar nessas reminiscências um remédio contra o medo da morte que me devora?
Torno a fazer a experiência e pergunto a minha alma: querias viver (ou morrer) num mundo sem os sinais da passagem de Cristo?
Tarda agora a resposta. Minha alma prevenida, crispada, já não sabe se foi sua, bem sua, a reação de minutos atrás. E é isso, precisamente isto que me atormenta: poder distinguir o que é meu, realmente meu, do que tentam inculcar-me, ou melhor, do que vivem todos a se inculcar uns aos outros. Não digo que só possa aceitar as verdades de minha própria fabricação. Houve tempo em que cheguei a considerar-me um deus solitário, um deus exilado; e posso garantir que essa experiência é assaz incômoda. Não: venha do céu ou da terra, o que eu exijo da verdade, para ser minha verdade, é a possibilidade de uma assimilação profunda, de uma união transformante que a faça realmente minha. Quero uma verdade que se transforme em meu sangue, em minha carne; e não uma verdade mecânica e ortopédica. Tenho horror ao objetivismo tranquilo das almas carimbadas.
“Como será que ressoa a fé dentro de alguém, do dr. Aquiles por exemplo? Bem sei que a fé teologal, dom gratuito de Deus, é uma virtude infusa que se esconde nas profundezas da alma como a pérola escondida nas profundezas dos mares. Sei também, como lição decorada, que essa luz tenebrosa, de que fala o místico, muito mal ilumina a superfície de nossa sensibilidade. Mas assim mesmo, escondida e vacilante, alguma presença deve manifestar-se, alguma ressonância deve ser ouvida. Como será? De que modo se manifestará tão extraordinária presença – a presença de um Deus – nos atos, nos gestos, nos pensamentos, nos sonhos do dr. Aquiles?[vi]”.
Adalberto de Queiroz, 63, jornalista e poeta. Autor de “O Rio Incontornável”, Editora Mondrongo, 2017.
[i] FLEICHMAN, Lourenço. Artigo em “Revista Permanência”, link consultado em 21/07/2018, às 12h09. http://www.permanencia.org.br/drupal/node/1890 A revista “Permanência” foi lançada, aos 16/08/1968, por Corção com o objetivo de combater “as confusões e deformações da Igreja no Brasil, introduzidas pela chamada ala progressista do clero. (…)”.
[ii] CORÇÃO, Gustavo. “Des anos: Crônicas”, 2ª. ed., Rio de Janeiro: Agir Editora, 1958. 305 páginas.
[iii] CORÇÃO, Gustavo. “A descoberta do Outro”, 10ª. ed. (revista). Rio de Janeiro: Agir Editora, 2000 – pág. 170 et passim.
[iv] Site da editora Vide, link consultado em 21/08/18: https://videeditorial.com.br/index.php?route=product/search&search=Gustavo%20Corção
[v] CORÇÃO, Gustavo. “Três alqueires e uma vaca”. 3ª. ed., Rio de Janeiro, Agir Editora, 1953; pág.29.
[vi] CORÇÃO, Gustavo. “Lições de abismo”, 9ª. ed., Rio de Janeiro: Agir Editora, 1956; pág. 235-39.