Moro no Centro de Goiânia desde 2011. Fui aconselhado por um corretor a comprar “um apartamento mais novo e num local mais valorizado”, pois no Centro, segundo ele, só há prédios velhos. Sua recomendação tinha um propósito: me persuadir na aquisição de um apartamento no Setor Parque Amazonas. A brasa, portanto, não chegou a ir para sua sardinha. Eu estava correndo de distância, e do Parque Amazonas ao meu local de trabalho no Centro demandava um bom tempo no trânsito. Eu não queria, portanto, chegar ao trabalho já entediado nem voltar para casa do mesmo jeito.

Olhei o apartamento. Fui à janela, gostei do que vi: a sede da Academia Goiana de Letras (AGL), o Olimpo, digamos assim, dos nossos insignes imortais. Na hora pensei: “Agora vou poder ver e conversar com o amigo Eurico Barbosa com mais frequência”. E assim aconteceu. Não havia (e ainda não há) prédios impedindo de ver a cor do céu e os pequenos grupos de araras-canindés em voos barulhentos e tingidos de amarelo e azul. E outras aves. Isso pesou na minha compra. Alguns versos de Fernando Pessoa sobre a inconveniência das “grandes casas” (hoje, os grandes prédios perto do meu) também me convenceram: “Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave / Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu…”.

Não tenho “todo o céu”, mas um pedaço significante dele entra na minha janela. Para tê-lo todo, eu precisaria morar numa “casa no cimo de um outeiro” como Pessoa versejou. Ou então, fugindo do bucolismo poético de residir rente ao chão, viver no topo de um arranha-céu que, de tão alto, seja possível chegar ao castelo de um gigante malvado dono de uma galinha que botava ovos de ouro. (Ainda bem que Joãozinho não teve a pança do gigante como destino alimentar e ainda voltou rico da viagem proporcionada pelo pé de feijão que trocou por uma vaca magérrima, que sua mãe viúva e ele possuíam.)

Ando roendo as unhas à espera de uma revitalização do Centro. E para piorar o meu asco, há muito cheiro de urina e cocô de cachorro nas calçadas. A incivilidade dos donos dos cães está demais. Ultimamente ando pelo Centro com um prendedor de roupa no nariz, inclusive sendo motivo de chacota por isso. Quando não é a titica onde o bicho a deixa cair, são os saquinhos plásticos com as merdas jogados nos pés das pobres árvores (vítimas constantes das motosserras famintas da Equatorial ou de moradores malévolos que as matam ou as envenenam de modo furtivo) ou sobre as lixeiras.

Livros de Joaquim de Almeida Leite Moraes e de Mário de Andrade: interpretações do Brasil | Foto: Jornal Opção

Essa revitalização virou cantiga de grilo. Projetos foram muitos ao longo das gestões, mas o sopro da vida não chega à narina deles. O prefeito Rogério ainda tem um resquício de bala na caneta e pode dar início a esse sopro de vida. Ele inclusive prometeu, num evento no Instituto Histórico de Geográfico de Goiás, instalar uma escultura de nossa famosa poeta Cora Coralina no Bosque dos Buritis. Tenho várias testemunhas disso, inclusive uma fotografia minha com o prefeito e as testemunhas. Até já escrevinhei sobre isso por aqui.

Recentemente o governador Ronaldo Caiado deu início à reforma do Colégio Lyceu, que será algo valioso no embelezamento do Centro e a melhoria da educação. Conforme divulgação do governo, tal reforma será a maior que a instituição já recebeu. Fato importante por se tratar de um prédio notável na história da educação da cidade, cuja inauguração na antiga Vila Boa se deu em 1846, e que para Goiânia veio em 1937 trazido por Pedro Ludovico Teixeira.

Essa reforma do Lyceu tem algo a ver com o avô materno do poeta Mário de Andrade, Joaquim de Almeida Leite Moraes, que governou a província de Goiás por quase um ano, isso em 1863. Na sofrida viagem de 30 dias de São Paulo a Goiás (ele tinha problema de hemorroidas), o governador veio acompanhado do tipógrafo e jornalista Carlos Augusto de Andrade para ser seu oficial de gabinete.

Carlos de Andrade nesta época, com 26 anos, nem imaginava que, seis anos depois, se tornaria o pai do poeta ao se casar com Maria Luísa de Almeida Leite Moraes. Em “Macunaíma”, Mário explicita que “Apontamentos de Viagem” — livro do avô contando sua trajetória de viagem (vinda a cavalo e volta de embarcação para São Paulo) e fatos de seu governo — fez parte de sua leitura.

Era uma precariedade só o que JALM encontrou: muitas pessoas com bócio (doença conhecida como papo ou papeira por causa do crescimento exagerado da glândula tireoide), prédio presidencial aos cacarecos, escola ruim, falta de pontes e algumas precisando de reformas.

Mário de Andrade cita a questão das pontes em seu respectivo livro: “Desciam de rodada o Araguaia e, quando Jiguê remava, Maanape manejava o joão-de-pau. Se sentiam marupiaras outra vez. Pois então Macunaíma adestro na proa tomava nota das pontes que carecia construir ou consertar pra facilitar a vida do povo goiano”.

Sobre a escola que encontrou, JALM diz: “(…) funciona numa casa pequena, malconservada, sem as precisas acomodações. Em torno da casa, não há nenhum sinal de enxada, isto é, o mato é o jardim, o pomar e a horta daquela casa de educação!” Após avaliar alguns alunos, conta que eles “pouco ou nada sabem; soletram balbuciando ou repetindo”. O avô de Mário mandou a direção da escola vazar e providenciou substitutos para os exonerados.

JALM elogia, em “Apontamentos de Viagem”, outro presidente da província que governou nove gestões antes da sua: Couto de Magalhães.

Escritor, banqueiro, empresário e poliglota, Couto de Magalhães exerceu outras muitas funções públicas. Ele fala, em seu livro “Viagem ao Araguaia”, dos problemas advindos com o fim do ciclo de ouro em Vila Boa: “A situação de Goiás era bem escolhida quando a Província era aurífera, hoje, que está demonstrado que a criação do gado e da agricultura valem mais do que quanta mina de ouro que há pela Província, continuar a capital aqui é condenar-nos a morrer de inanição…”.

Sinésio Dioliveira é jornalista.