Como desistir de gravar disco na Califórnia rendeu a músico goiano o David Russell Guitar Prize
21 outubro 2018 às 00h00
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Vitor Noah viveu um dilema em 2014: ir ao deserto de Joshua Tree, nos Estados Unidos, e fazer parte do segundo álbum de estúdio dos Hellbenders ou estudar violão clássico
Vitor Noah é um goianense de 26 anos, graduado em Música pela Universidade Federal de Goiás (UFG), estudou nos Estados Unidos, Espanha, fez mestrado na Áustria e segue em seu segundo mestrado na Roal Academy of Music, em Londres, na Inglaterra. Toda a dedicação violão clássico rendeu em junho o primeiro lugar no David Russell Guitar Prize, uma premiação do professor e vencedor do Grammy de melhor performance instrumental de solista sem orquestra em 2005, David Russell, que garimpa novos talentos na universidade londrina.
Mas até chegar ao prêmio David Russell, Vitor viveu diferentes ligações com o violão e a música desde a infância. Nas conversas com o Jornal Opção, que começaram poucos dias antes do aniversário de 26 anos do músico, no dia 26 de setembro, e se estenderam até 2 de outubro, o goianiense lembrou da infância, quando a mãe, Adriana de Moraes, hoje com 51 anos, tocava MPB no violão. “Desde que eu me entendo por gente eu roubava o violão dela pra brincar”, se recorda Vitor.
Só por volta dos 12 anos, entre 2004 e 2005, que o adolescente passou a se envolver mais com a música. Vitor se juntou aos melhores amigo da escola e formou suas primeiras bandas, a Tcholas e a Gloom. O melhor de tudo é como o músico descreve os dois grupos: “Uma banda de punk juvenil tosco e a outra de emo que depois virou indie e uma trenhêra doida”. Seu primeiro contato com o violão clássico veio com as aulas do professor Rodrigo Carvalho nas Oficinas de Música da UFG quando Vitor tinha 15 anos.
Foi justamente nessa época que veio seu primeiro prêmio com a melhor colocação no concurso Souza Lima, em São Paulo. “O professor Rodrigo Carvalho que me convenceu de alguma forma que música clássica era a coisa mais legal do mundo e que valia a pena me dedicar a isso”, agradece Vitor. As coisas começaram a acontecer todas juntas na vida do adolescente, que se juntou aos amigos Diogo Fleury (vocal e guitarra), Braz Torres (vocal e guitarra) e Rodrigo Andrade (bateria) para montar a banda Hellbenders.
Como baixista dos Hellbenders, Vitor passou cerca de sete anos de sua vida dedicados à banda, mesmo período em que cursava o bacharelado em violão clássico com professor doutor Eduardo Meirinhos na Escola de Música e Artes Cênicas da UFG. Durante a graduação em música e as atividades do grupo de stoner rock, o jovem foi selecionado para um programa de intercâmbio estudantil na Marshall University, em Huntington, na Virgínia Ocidental (Estados Unidos), com bolsa integral oferecida pelos institutos Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], do Brasil, e Fipse [Fund for the Improvement of Postsecondary Education], norte-americano, programa atualmente desativado.
Já no primeiro disco da banda, o falecido produtor musical Carlos Miranda vem a Goiânia trabalhar com Vitor e seus amigos. O álbum “Brand New Fear” é lançado em 2013 e o quarteto começa a viajar o Brasil para tocar. Em 2014, o baixista conclui seu bacharelado em violão clássico pela UFG e recebe a oportunidade de estudar na Universidade de Alicante, na Espanha. Ao mesmo tempo, a Hellbenders é convidada para gravar seu segundo disco no estúdio Rancho de la Luna, em Joshua Tree, no deserto da Califórnia, nos Estados Unidos.
Para quem gosta de rock, Rancho de la Luna é o lugar pelo qual já passaram bandas como Artic Monkeys, Foo Fighters, Kyuss e Queens Of The Stone Age. “Enfim… Tive que escolher pelo violão clássico.” No lugar de Vitor, os amigos colocam Augusto Scartezini, o Chita, no baixo. Chita e Vitor… Que nada! Chita e Moita, como Vitor era conhecido nos tempos de banda em Goiânia, eram amigos. Tanto que os outros integrantes da Hellbenders, quando anunciaram a saída do baixista, disseram que ele seria um “membro eterno”.
Vitor não parou na Espanha. Em abril de 2015, os amigos da Hellbenders postaram em sua página no Facebook: “Voe alto que Brasil, Alemanha e Espanha logo ficam pequenos pra você, meu querido”. Da Universidade de Alicante o goianiense partiu para o primeiro mestrado na Áustria. Dos tempos que ficava encantado com a mão tocando MPB no violão em festas na casa em que morava na capital goiana quando criança até chegar à Universidade de Graz, Vitor, por um tempo, ainda imaginava a banda que estava deixando para trás e o disco que poderia ter gravado nos Estados Unidos. “Até hoje penso que rumo minha vida teria tomado se eu tivesse optado por permanecer no rock e sinto muitas saudades da minha juventude roqueira, mas não me arrependo da minha decisão.”
Durante a entrevista, Vitor descreve de forma detalhada o momento em que deixou a Hellbenders para continuar os estudos de violão clássico na Europa: “Foi difícil demais. Depois de sete anos ralando e se divertindo muito, a possibilidade da ida do Hellbenders para os Estados Unidos representava pra mim um reconhecimento por todos esses anos de trabalho. Tínhamos lançado álbum com o Miranda, feito algumas boas turnês pelo Brasil e a gente estava super afiado e entrosado. Nos sentíamos preparados para dar um próximo passo na carreira da banda”.
O violonista clássico lembra de que, “quando surgiu a oportunidade de ir para a Espanha”, sabia que a decisão que tomasse seria definitiva para sua vida. “Estava abrindo mão de uma oportunidade única de viver uma experiência com a qual eu sonhava, gravar as músicas que fiz com meus amigos de infância, no mesmo estúdio que vários dos meus ídolos já gravaram”, observa.
Dos que passaram pelo Rancho de la Luna, onde não foi gravar com a banda, começou a ter aula com os ídolos do violão clássico na Espanha. “Hellbenders foi a minha escola de vida e base da minha formação musical, informalmente influenciou muito o meu entendimento de arte e comunicação humana em geral. Se não fosse pelo rock com certeza eu não seria a pessoa e o músico que eu sou hoje. Inclusive acho que o meu diferencial em relação a maioria dos músicos clássicos é justamente tudo que eu trago da escola roqueira goiana”, descreve e brinca ao mesmo tempo Vitor.
O curso na Espanha, que é chamado de mestrado, apesar de não ser reconhecido como tal, durou seis meses. “É um curso super respeitado, com um time de professores super famosos, realmente algo especial, mas não é um mestrado”, explica. Na Áustria, veio o que Vitor chama de “mestrado de verdade”, antes de ir para Londres se dedicar ao segundo mestrado na Royal Academy of Music.
“De fato representou para mim uma entrada na vida adulta e também uma mudança na minha relação com a música. Comecei a ter um senso de responsabilidade em relação a minha arte que é realmente a minha grande motivação pra continuar fazendo música clássica apesar de tudo.” As considerações do músico goianiense encerram as lembranças na entrevista sobre a fase saudosista aos tempos de banda, dos quais nem tocar mais em um baixo, que na verdade é um contrabaixo, não aconteceu mais.
Sobre a rotina de estudos na Europa, Vitor descreve o foco de seus mestrados em violão clássico na Áustria e Inglaterra como dedicados à performance do instrumento. “O último ainda não defini exatamente o tema da tese, mas será em cima da minha colaboração com o compositor Rafael Marino Arcaro. Trabalhamos no meu mestrado na Áustria em uma série de prelúdios que ele dedicou para mim. Possivelmente farei esse mestrado aqui em Londres baseado em um concerto para violão e orquestra.”
Vitor e Rafael Arcaro se conheceram em São Paulo em um concurso que participaram em 2012, os dois no violão. O goianiense ganhou a disputa e o outro violonista não passou da primeira fase. “Anos depois nos encontramos novamente em São Paulo e ele me pediu para gravar algumas músicas que tinha composto. A intenção era mandar essas gravações para a Royal Academy. Mesmo o Rafael não tendo passado, gravamos outras peças, com as quais ele foi aprovado na Roal Academy enquanto eu fazia meu mestrado em Graz sobre as composições dele”, conta.
Os dois moram hoje em Londres, onde Rafael concluiu o mestrado em composição. “Estamos fazendo uma nova colaboração neste novo concerto para violão e orquestra.” Ao falar sobre o David Russell Guitar Prize, prêmio que recebeu em junho, Vitor diz que o professor David Russell é uma referência em técnica de violão moderno pela limpeza na execução, precisão e profissionalismo. “Conheci David Russell em Alicante, quando acabei não tocando muito bem para ele. Inclusive quando me reencontrou aqui em Londres comentou ‘você não tocou muito bem em Alicante’ e ficou impressionado desta vez, o que me rendeu o prêmio, que é disputado entre os alunos da Royal Academy.”
Segundo Vitor, o prêmio serve como uma espécie de apadrinhamento, que o goianiense considera como importante ter alguém com a técnica de Russell acompanhando sua evolução nos estudos do violão clássico. “Mais do que o dinheiro, cerca de 500 pounds (libras esterlinas, o que daria hoje R$ 2,4 mil), o prêmio traz um prestígio muito forte pelo alto nível dos alunos da instituição”, afirma.
Durante a entrevista, Vitor revela a ansiedade que vivia na semana do dia 2 de outubro. Seria seu primeiro concerto pago no sábado 6 – um dia antes da eleição do primeiro turno das eleições brasileiras – em Cambridge, na Inglaterra. Até o primeiro concerto que o goiano foi convidado a fazer, ele só havia se apresentado na Royal Academy, em Londres. “Fui convidado também a dar um workshop sobre os 12 estudos para violão de Heitor Villa-Lobos.”
Estudar no Reino Unido é algo muito caro. “Só consigo porque tenho bolsa integral, que inclui os estudos, hospedagem e alimentação.” Como mora e faz mestrado sem custos em Londres, Vitor decidiu seguir os estudos na Royal Academy of Music. Mas confessa que gostaria muito de ter conseguido a bolsa do violonista clássico inglês Juian Bream, de 85 anos, considerado um dos músicos mais influentes no instrumento que Vitor toca. “Bream é a minha grande referência, o meu violonista preferido”, diz.
Vitor ainda não viveu a vida de não estudante na música clássica. A primeira experiência, fora aulas esporádicas para crianças ainda em Goiânia, como professor foi mesmo a de Cambridge no dia 6 de outubro. “Estou começando agora a minha carreira de professor, que na verdade é a carreira de todo músico na Europa e em qualquer lugar do mundo. Não conheço ninguém que vive só de dar concerto no mundo do violão clássico a não ser o David Russell e esses grandes nomes. Mesmo nos outros instrumentos também acho muito difícil.”
O músico diz que enquanto puder viverá de bolsa de estudos porque, segundo Vitor, ainda tem muito a aprender sobre violão clássico. Brasileiro e sem cidadania europeia, o goiano diz que é extremamente difícil passar em um concurso para dar aula em uma grande universidade do continente em que vive. “Para dar aula particular, eu teria de ter muitos alunos para me manter.” Mas diz que o custo do Reino Unido não é o mesmo da Áustria, onde pagava 700 euros por semestre (quase R$ 3 mil). Se tivesse de custear do próprio bolso o mestrado na Royal Academy, teria de desembolsar mais de 10 mil libras esterlinas por ano (acima de R$ 48,5 mil).
Vitor se vê no futuro como professor universitário, o que requer um doutorado, e se apresentando em concertos, mas não muitos, e com gravações dos seus trabalhos. A rotina de prêmios começou com um concurso de jovens talentos em 2008 com uma menção honrosa na UFG. Depois veio o Souza Lima, em São Paulo, outros em Brasília, na Associação Brasiliense de Violão (Bravio), o Concurso Villa-Lobos e a competição de violão do Masp. Conquistou o segundo lugar na competição internacional de violão de Villa de Aranda, na Espanha, e o J. S. Bach, em Reisbach, na Alemanha, entre outros, antes do David Russell Guitar Prize.
O goianiense apresentou concertos para violão de Villa-Lobos, com o maestro Júlio Medaglia, em 2014, no ano seguinte na série Movimento Violão, na SescTV, ao lado de Josias Mueller. Vitor participou de festivais de música e seminários, nos quais trabalhou, entre alguns dos violonistas, David Russell, Manuel Barrueco, Pepe Romero, Zoran Dukic, Pablo Márquez, Eduardo Isaac, Fabio Zanon, Paul Galbraith, Roberto Aussel, Eduardo Fernandez e Paul O’Dette.
A tese de mestrado apresentada em 2017 na Universidade de Graz, “L’Imagerié de nos Pensées – R. Marino Arcaro”, que recebeu nota máxima, é sobre o trabalho realizado em colaboração com o compositor e amigo Rafael Arcaro, especificamente seu livro de dez prelúdios para violão solo “L’Imagerié de nos Pensées”. Na introdução, Vitor descreve que desde o primeiro momento que teve contato com as composições de Rafael teve a certeza de que poderia mostrar para todo mundo o quão maravilhoso era o trabalho daquele compositor. “Eu poderia dizer que me sinto muito sortudo e honrado por ter sido o primeiro músico a ter contato com a arte de Arcaro e, desde então, acreditou e deu apoio a esse músico com a mesma paixão que ainda o faz.”
Os dois prelúdios de Rafael gravados por Vitor estão disponíveis na conta do compositor no YouTube: “Para Poder Parar o Tempo” e “Le Bateaux-Mouches Vides à Minuit”. “Eu pedir a ele para compor uma peça mais rápida e animada. Pouco tempo depois, ele me enviou ‘A Musician’s Feverish Mind’ e ‘Dadá e o Diabo Louro’, a última carinhosamente dedicada a mim. Gravamos estes prelúdios para incluir no portfólio de Rafael para seu teste na Royal Academy of Music e outros conservatórios como Peabody Institute e, de novo, Conservatoire Supérieur de Musique et Dance de Paris. Ele conseguiu uma bolsa de estudo e vaga no programa de mestrado da Royal Academy”, descreve em seu mestrado.
Vitor continua a contar na introdução de sua tese aprovada que a relação profissional entre os dois foi se tornando cada vez mais próxima e foram chegando mais peças compostas por Rafael para o músico. “Aos poucos eu me senti livre para fazer pequenas mudanças em alguns prelúdios, assumindo o papel de revisor não oficial. O último prelúdio, “Emotionless”, foi inspirado em algumas improvisações que fiz.” Assim como a amizade crescia, Vitor sugeriu a Rafael que dedicasse toda a peça a ele ao invés de um só prelúdio. “Felizmente, ele gentilmente aceitou meu pedido.”