“Aqui” e o tempo que não nos pertence
17 novembro 2017 às 18h58
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Livro de Richard McGuire nos atordoa com sua dimensão tão vasta sobre um tema tão obscuro; o autor traça uma linha disforme do tempo, onde o espaço é o mesmo, ainda que não seja mais o mesmo
Ricardo Silva
Especial para o Jornal Opção
No livro “O palácio da memória” (Todavia, 2017), o radialista Nate DiMeo narra a história do fascínio que o pai do rádio, o italiano Guglielmo Marconi, com a ideia de que as vibrações do som propagavam-se eternamente, apenas perdendo um pouco da intensidade com o tempo e que, mesmo assim, captando na frequência certa, seria possível ouvir tudo o que já foi dito no mundo — Shakespeare ensaiando com um ator ou o sermão da montanha tal como fora proclamado por Jesus.
Marconi era defensor da ideia da eternidade do som, da sua perenidade, como se todas as palavras ditas no mundo formassem um palimpsesto sonoro ainda possível de se montar e remontar, e ser ouvido ad infinitum. A história de Marconi evoca esta concepção que encara a passagem do tempo como um acumulador de experiências, onde tudo se constitui e se formata por um eco temporal tal qual um efeito borboleta.
O tempo e sua constituição ainda apresenta-se como um profundo desafio para a filosofia, para literatura, para as artes. É uma projeção intelectual humana? É uma onipresença? É possível controlá-lo? O que é o tempo? Talvez se deduza sua existência por causa de sua influência: pelas rugas que se acumulam nos cantos do rosto, pela memória que vai se subvertendo e alterando a ordem das coisas — “a memória é uma ilha de edição”, diz o poeta Waly Salomão.
O Tempo, este com o T maiúsculo, parece insondável, impenetrável, como um poderoso enigma que torna as palavras insuficientes. Talvez seja curioso — em certa medida, emblemático — que uma das mais significantes obras a se debruçar sobre este mistério quase não faça uso de palavras e, ainda assim, elabore um intenso e profundo projeto reflexivo sobre o tempo.
“Aqui”, do quadrinhista e músico Richard McGuire publicada no Brasil pelo selo Quadrinhos (Companhia das Letras), com tradução de Érico Assis, é este punch que nos atordoa com sua dimensão tão vasta sobre um tema tão obscuro. McGuire era aluno de Art Spielgman — autor do também clássico “Maus”, e escreveu uma curta história de seis páginas que contava, em múltiplos quadros sobrepostos, as transições e transformações que o espaço do canto de uma sala passou através do tempo. A história impressionou Spielgman e foi publicada na “Raw”, revista que absorvia o melhor da produção dos quadrinhos alternativos da época.
A graphic novel de McGuire, na sua versão definitiva, só foi finalizada mais de 25 anos depois, já com um tamanho maior — a versão estendida tem cerca de 300 páginas. É a única obra de quadrinhos longa do americano, e um clássico inconteste no cânone dos romances gráficos, que abriu, com sua subversão técnica, sua estrutura narrativa, as portas para novas possibilidades de contar uma história.
Com maestria, e uma pesquisa muito bem acabada, McGuire traça uma linha disforme do tempo, onde o espaço é o mesmo, ainda que não seja mais o mesmo — como numa interpretação heraclitiana da realidade. Os saltos de tempo que cada quadro dá, apresentam os diferentes momentos daquele espaço na história: de milhares de anos atrás a milhares de anos no futuro.
Nestas transições sobrepostas, acompanhamos alguns acontecimentos banais que se dão naquele canto da sala em diferentes épocas. O que temos ali é um exercício de insinuação. Não existe uma cronologia dos fatos, não existe uma história, não existe encaixe. O que existe é um imenso aglomerado de acontecimentos que evocam a passagem do tempo, como se estivéssemos numa máquina capaz de nos transportar ao passado, nos fincar no presente e nos catapultar ao futuro, mas sem nos deslocar do lugar.
Quase sem palavras, McGuire elabora um dos mais estimulantes quadrinhos a pensar sobre esse mistério insondável que é o Tempo. Vivemos nele ou é ele que vive em nós? Dominá-lo é somente uma ilusão que colocamos no pulso ou na parede; entendê-lo é um desafio intransponível. É sobre o Tempo, é sobre a Vida. Essas nebulosidades da existência. Aqui não é uma leitura qualquer, é uma experiência da vivência do real e suas camadas infinitas.
A obra de McGuire atordoa na sua calmaria, coloca o leitor em xeque, lhe impossibilitando passar incólume a experiência de folhear esse sinuoso caminho do tempo, tornando complexa a tarefa de metabolizar suas possibilidades. É uma provocação, no final das contas. Seja por nos fazer acompanhar a rotina de uma família dos anos 60 aos anos 80, ou em nos transportar a uma tribo de índios Americanos em 1609, ou ainda nos colocar num futuro distópico, “Aqui” nos desvela aquela verdade incômoda: não temos controle sobre nada, tudo é um absurdo caótico repleto de causalidades incontornáveis. O graphic novel de McGuire é sobre o tempo que não nos pertence, nunca pertenceu, nunca pertencerá.
Guglielmo Marconi tinha plena convicção de que o som era eterno, que uma vez dito, feito vibrar o ar, aquela vibração nunca mais se perderia. Tentou dominar o som, não conseguiu. Com o tempo, por muitas vezes tenta-se o mesmo. Talvez Faulkner, no seu poderosíssimo romance “O som e a fúria”, estivesse certo ao escrever: “Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não perca todo o seu fôlego tentando conquistá-lo.”
McGuire sintetizou o insintetizável, condensou aquilo que não tem tamanho, perfurou aquilo que não tem limite para sua profundidade. Tudo isto para nos dizer que é impossível conquistar o deus Cronos, e que só nos resta a ilusão do tic-tac na parede.
Ricardo Silva é graduando em Filosofia pela Universidade do Estado do Amapá (UEAP) e escreve sobre literatura e cinema