A voz lírica da poeta Kori Bolivia
04 julho 2021 às 00h00
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Escritora se ocupa também de temas sociais e escreve poemas políticos; afinal, o poeta, ser não alienado, está sempre com as antenas ligadas aos acontecimentos cotidianos
João Carlos Taveira
Especial para o Jornal Opção
Terminada a leitura dos poemas de “Palavras Livres” (Thesaurus, 2018), a impressão que tive foi exatamente a mesma que sempre proclamei sobre a autora de “O Orvalho de Tua Voz”, desde a estreia. E, diante dessa constatação, posso repetir, sem medo de errar: Kori Bolivia é uma poetisa lírica que, vez por outra, se ocupa também de temas sociais e escreve poemas de caráter político, porque afinal o poeta não é um ser alienado e está sempre com as antenas ligadas aos acontecimentos cotidianos. Mas isso não quer dizer que Kori se enquadre em qualquer vertente da poesia engajada. Muito pelo contrário. Citemos, “en passant”, o poema
Neste espelho
Este rosto mudo,
murcho, ferido,
já não te pede amor.
É um conto
que traz o vento
de tragédias, mortes,
pretextos miseráveis,
do naufrágio
humano
do coração.
Este rosto calado
em seu desterro
é o espelho
onde não se olha
o tirano.” (Página 149)
O título do livro já diz tudo: “Palavras Livres”, em que os versos, sem nenhuma preocupação formal que os limite, nascem essencialmente da intuição, ao sabor do vento, sob o fluxo da consciência, e se materializam na folha de papel para estabelecer um canal de comunicabilidade entre a autora e seus leitores. Uma das razões por que foram concebidos sem métrica e sem rima, isentos de quaisquer outros tecnicismos delineadores de escolas literárias pretéritas e para alguns poetas modernos também, é bom que se diga. Técnicas essas, repito, hoje já ultrapassadas para muitos poetas, por motivos óbvios: ninguém respeita nem pratica aquilo que não conhece. Tome-se de exemplo o poemeto a seguir:
Suspiro
Para Mabel Plaul
O poeta não caça palavras
para fazer poemas,
e o poema não é pássaro.
É borboleta que pousa sutil
num papel em branco
para salpicar gotas de orvalho.” (Página 59)
Também são encontrados aqui poemas que tratam de metapoesia, como “Suspiro”, transcrito logo acima, “Papel em branco”, “Somos”, “Palavras”, entre muitos outros, bem como poemas epigramáticos, quase haicais, que dão ao volume certa variedade de criação, conveniência às pretensões de quem busca, sem subterfúgios, comunicar-se por intermédio da expressão artística. Senão, vejamos:
Sem grilhões
Não é forçoso
espremer o cérebro
para colher um verso.
Este vem por si
e traz a palavra
sem grilhões
para reter-lhe a alma.” (Página 56)
Kori Bolivia, ao longo dos anos e já com nove títulos na bagagem, tem experiência suficiente neste mister: procura realizar uma poética pessoal, isenta de influências escolásticas, em busca de afirmação estética dentro de um universo o mais amplo possível. Entretanto, mantém-se avessa a recorrentes bandeiras entre feminino e masculino, e fugindo ao controle, sobretudo, dos modismos momentâneos e do corriqueiro e cansativo “slogan” do politicamente correto.
Voltemos ao discurso que predomina neste livro, e que é fonte consabida de morada do eu-lírico da autora de “Despeinando Sueños”. E um bom exemplo encontra-se no seguinte poema:
Ecos do silêncio
Quantas vezes, o vento,
ao meu ouvido, trouxe
tua voz, distante.
E agora no silêncio
de pássaros e ventos,
ainda escuto, vacilante,
os ecos do amor perdido.” (Página 86)
Esta poesia, repito, é livre de atavios, e pode ser comparada, metonimicamente, com o condor que sobrevoa os céus andinos do continente sul-americano, sem nenhuma demonstração de cansaço. E, em razão dessa liberdade, Kori Bolivia quase sempre faz publicar seus poemas conjuntamente nas línguas de Federico García Lorca e Fernando Pessoa. Compromisso e prática que patenteiam o diálogo permanente com o país em que nasceu, Bolívia, e este que escolheu para viver e constituir família.
“Palavras Livres” certamente vem coroar uma trajetória já consolidada entre estes dois mundos, cujos pilares de sustentação se apoiam na solidez de uma raiz comum entre ambos: a latinidade.
Dados biográficos de Kori Bolivia
Filha do pintor Jorge Carrasco Núñez Del Prado e da psicopedagoga Julia Dorado Llosa, Kori Bolivia nasceu na cidade de La Paz, Bolívia. Chegou ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1976 e veio para Brasília no mês de julho do mesmo ano. Estudou na Universidad Mayor de San Andrés, en La Paz, e na Universidade de Brasília (UnB). É licenciada em Letras e mestre em Literatura Brasileira. É expert no ensino de espanhol como língua estrangeira pela Universidade Antonio de Nebrija de Madri. É mestre em Língua e Cultura de Língua Espanhola pela Universidade de Salamanca e tradutora de espanhol e português pela Universidade Gama Filho.
Em 1969 teve uma crônica publicada no Suplemento Feminino do jornal “El Diario” da cidade de La Paz e em 1974 começou a publicar seus poemas nos suplementos literários dos jornais “Presencia”, “El Diario” e na “Revista de Última Hora” da mesma cidade.
Desde 1975 participou de vários congressos, simpósios, seminários nacionais e internacionais na Argentina, na Bolívia, no Brasil, em Cuba, no Equador, no Chile, na Espanha, na China, na Colômbia, no Peru, no Uruguai, e esteve presente no IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, na cidade de Rosário, Argentina, convidada pela Real Academia da Língua Espanhola.
Aos três anos ganhou um concurso de pintura infantil e já na Universidade foi membro do Teatro Universitário de San Andrés e depois do Teatro Alianza Francesa. Publicou várias traduções e versões de poesía e de prosa, bem como artigos sobre arte e cultura publicados no “Correio Braziliense”, inclusive uma tradução sua foi publicada no Boletín de las Naciones Unidas nos anos 1990; participou, com outros poetas brasilienses, da edição bilíngue de “Poetas portugueses y brasileños — de los simbolistas a los modernistas”, obra publicada com o apoio do Instituto Camões da Embaixada de Portugal em Buenos Aires, no ano 2000.
Sua poesia, contos e crônicas estão presentes em várias antologias na Bolívia, no Brasil e em outros países. Também é verbete no “Dicionário de Escritores de Brasília” de Napoleão Valadares, no “Diccionario de la Literatura Boliviana” de Adolfo Cáceres Romero, em “200 Poetas Paceños”, de Elías Blanco Mamani, na “História da Literatura Brasiliense” de Luiz Carlos Guimarães da Costa, na “Enciclopédia Gesta de la Literatura Boliviana”, entre outros.
Seu livro “Palavras Livres” recebeu o prêmio Yvonildo de Souza e medalha pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro) em 2018. Foi premiada por sua poesia em língua espanhola em 2018, no 38.º Congresso Mundial de Escritores realizado na China; recebeu o troféu “Cruz Chacana” como reconhecimento por 50 anos dedicados à Cultura pelo Ministério de Culturas (La Paz, Bolívia) em 2019. Conquistou o primeiro lugar do Prêmio Internacional de Poesia “Mar de Cristal”, Barcelona 2020.
Livros publicados
“Un Grito Callado” (poesia). La Paz, Bolívia: Editorial del Estado, 1981.
“Espuma de los Días” (poesia). La Paz, Bolívia: Editorial del Estado, 1982.
“Poemas en Cuatro Tiempos” (poesia). Brasília: Editora Thesaurus, 1994.
“Despeinando Sueños” (poesia). Brasília: Editora Thesaurus, 1997.
“O Orvalho de Tua Voz” (poesia). Brasília: Editora Thesaurus, 2011.
“La rosa Dormida / A rosa adormecida” (poesia bilíngue). Brasília: Editora Thesaurus, 2013.
“Sabor a Viento” (plaqueta com seus poemas, publicada pela Casa del Poeta Peruano). Lima, Peru: Editora Maribelina, 2016.
“Nocturnidades” (poesia). Brasília: Editora Thesaurus, 2016.
“Palavras Livres” (poesia bilíngue). Brasília: Editora Thesaurus, 2018.
“Partitura del Tiempo / Partitura do Tempo” (poesia bilíngue). Brasília: Editora Outubro, 2020.
João Carlos Taveira, poeta e crítico, é colaborador do Jornal Opção.