A intimidade da palavra do escritor Cyl Gallindo
18 julho 2021 às 00h00
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Ele foi impedido por escritores de fazer parte de uma agremiação literária, pelo simples fato de ser considerado autor “ousado” e “pernicioso” para os padrões da época
João Carlos Taveira
Especial para o Jornal Opção
Quando André Gide (1869-1951) recusou os originais de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust (1871-1922), no início do século 20, não imaginava a besteira que estava fazendo, principalmente para a editora Gallimard e para a sua reputação de intelectual sério e respeitado. Algum tempo depois, Proust por fim conseguiu editor para uma das obras máximas da literatura mundial. A verdade é que, além de ficar chupando o dedo, o senhor Gide também teve de engolir sapos inimagináveis. E, o que foi pior, teve de conviver com o atestado de miopia que o acompanhou pelo resto da vida.
Com o escritor Cyl Gallindo (1935-2013), um século depois, aconteceu algo semelhante a Proust: foi impedido por escritores (portanto, seus pares) de fazer parte de uma agremiação literária, pelo simples fato de ser considerado autor muito ousado e pernicioso para os padrões da época. Mas que época era essa, que já permitia casamento entre pessoas do mesmo sexo e, em contrapartida, liberava a mulher para afazeres nem tão feminis assim fora do lar? Aliás, há mais de 30 anos as redes de televisão no Brasil exibem novelas, em reprise, no horário vespertino, repletas de cenas de sexo, que fariam corar até o autor de “Decamerão”. Porém, essa é uma outra história.
Mas nada disso tem importância diante do fato que nos impele a escrever sobre Cyl Gallindo, autor de mais de um grande livro. Trata-se de “A Intimidade da Palavra” (Edições Bagaço, Recife, 2010), reunião de ensaios e artigos sobre Euclides da Cunha, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Óscar Ribas, além de dois textos esplendorosos: “Em defesa da Língua Portuguesa” e “Panorâmica do conto em Pernambuco”. Só o prefácio às 2ª e 3ª edições de “Canudos e Outros Temas” vale por muitos livros de autores estrangeiros traduzidos pelas grandes editoras brasileiras, numa atitude extremamente covarde em favor do sistema imbecilizante que vive de promover a desfiguração da cultura nacional. Ou seja, mostrar o pior para soterrar o melhor, em nome de uma mentira que se propaga e se perpetua desde o descobrimento. E tudo, muitas vezes, com a conivência da imprensa, falada, escrita e televisada.
O livro reúne ensaios, palestras e prefácios, textos de extraordinária força criativa: “Canudos e Outros Temas”, “Lá fui amigo do rei”, “Buíque: geografia literária de Graciliano Ramos”, “Óscar Ribas e Angola, a pátria-mãe dos meus afetos”, e os já citados “Em defesa da Língua Portuguesa” e “Panorâmica do conto em Pernambuco”, em que Cyl Gallindo analisa detidamente cada autor e sua obra e nos dá uma límpida visão da relação de amizade que manteve com alguns desses escritores, ao longo dos anos.
“A Intimidade da Palavra” concentra o melhor do pensamento e da visão crítica do autor de “Um Morto Coberto de Razão”. Ali estão bem definidos certos conceitos sociológicos sobre a nossa brasilidade, em perfeita sintonia com os autores analisados e suas obras. Tem muito da verve de Euclides da Cunha, de Graciliano Ramos, de Manuel Bandeira — artistas que souberam fazer da literatura uma arte encantatória e seminal, sem cair no lugar-comum ou na vala dos facilitarismos vaidosos que geralmente cercam a mediania dos homens. Os autores referidos souberam, antes de tudo, elevar a escrita, tanto a documental e romanesca quanto a poética, ao patamar mais elevado da transcendência de seus significados. Tudo isso acrescido do testemunho sincero e amoroso que Cyl Gallindo dá do grande Óscar Ribas (1909-2004), poeta, ensaísta e jornalista angolano que viajou pelo Brasil e foi morrer em Portugal já com 94 anos de idade, vividos em prol da boa literatura, da liberdade de uma nação e da solidariedade humana.
Para aqueles que não o conheceram, uma ressalva: Cyl Gallindo aportou em Brasília, filha e menina dos olhos de Juscelino Kubitschek, pela primeira vez nos idos de 1960, data de inauguração da cidade. Depois da posse de Jânio Quadros, foi convidado a ficar no Serviço de Assistência aos Municípios, trabalho que recusou. Seu novo contato com a cidade ocorreu em 1968, quando publicou a “Agenda Poética do Recife”, com prefácio do poeta e engenheiro estrutural Joaquim Cardozo (1897-1978), sob o selo da Coordenada Editora de Brasília, de propriedade de Victor Alegria, hoje à frente da conhecida Thesaurus Editora.
Depois de suas andanças pelo mundo, esse filho de Buíque (cidade em que o velho Graça viveu seus primeiros anos e que foi cenário de seu livro “Infância”) fixou residência em Brasília no ano de 1986, onde permaneceu por 16 anos, cinco dos quais trabalhando no Senado, já aposentado de sua repartição de origem. Naquela época, Cyl Gallindo já trazia na bagagem algumas obras suficientes o bastante para torná-lo digno de renome nacional. Mas, de lá para cá, o autor de “A Conservação do Gesto-Grito” e “As Galinhas do Coronel” não parou mais de escrever e de publicar seus livros na área da poesia, da sociologia, do conto e do ensaio.
E aqui sirvo-me do trecho de encerramento da conferência proferida por Cyl Gallindo na Academia Recifense de Letras, intitulada “Em defesa da Língua Portuguesa”:
“Eu tenho uma advertência a fazer a esses usuários de palavras, frases, denominação de estabelecimentos comerciais ou industriais em inglês, cuja pretensão é mostrar que são importantes, eruditos, inteligentes, esnobes: os países de língua inglesa estão cheios de imbecis falando inglês. Nem por isso deixam de ser imbecis.”
Dados biográficos de Cyl Gallindo
Cícero Amorim Gallindo (Cyl Gallindo) nasceu em Buíque (PE), aos 28 de maio de 1935 e faleceu em João Pessoa (PB), no dia 4 de fevereiro de 2013. Foi sociólogo, jornalista, poeta, contista e cronista brasileiro. Morou em Brasília e no Recife.
Obras publicadas
“Agenda Poética do Recife”, 1968
“A Conservação do Grito-Gesto”, 1971
“As Galinhas do Coronel”, 1974
“O Urbanismo na Literatura”, 1976
“Um Morto Coberto de Razão”, 1985
“Contos de Pernambuco”, 1988
“Livro para a Minha Idade – O Menino e o Peixe”, 1989
“Quanto Pesa a Alma de um Homem / Quanto Pesa a Alma de uma Mulher”, 1994
“Os Movimentos”, 1996
“20 poemas escolhidos por Waldemar Lopes”, 1999
“Cadeira de Dinah”, 1999
“Em defesa da Língua Portuguesa”, 2000
“Milagre no Jardim da Casa Grande, 2003.
“Coleção Panorâmica do Conto em Pernambuco” (com Antônio Campos), 2010
Prêmios e comenda
Concurso Nacional de Poesia, Friburgo-RJ, com o poema “A Sobrevivência do Mangue”.
Prêmio Nacional de Ficção, Recife, com o livro “Um Morto Coberto de Razão”.
Medalha José Mariano da Câmara Municipal do Recife.
Instituições culturais
Academia de Letras do Brasil (sede em Brasília)
Associação Nacional dos Escritores – ANE
União Brasileira de Escritores – Seção Pernambuco
Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal – IHGDF
Academia de Letras e Artes do Nordeste – Titular da Cadeira N.º 18
Conselho Municipal de Cultura do Recife – Membro fundador
Academia Pernambucana de Letras – Eleito em 27 de julho de 2009 para a Cadeira N.º 6, tomou posse em 22 de outubro do mesmo ano.
João Carlos Taveira é poeta e crítico, autor de seis livros de poesia, entre os quais “Aceitação do Branco”, “A Flauta em Construção” e “Arquitetura do Homem”. É colaborador do Jornal Opção.