Depois de três décadas, “Thriller” continua no topo; lançado em novembro de 1982, o disco é a opus magnum de Michael Jackson e representa um marco decisivo na música pop mundial tanto pela inovação artística quanto pelo sucesso comercial

Faixa-título do álbum, “Thriller” inicia com uma movimentação calculada com um monstro de tocaia em um armário antigo, em um chalé abandonado no meio do nada | Fotos: Divulgação

ANDRÉ LUIZ PACHECO DA SILVA
Especial para o Jornal Opção

Quando se fala em música, existem alguns nomes que são substanciais, imprescindíveis. Entre eles, está Michael Joseph Jackson (1958 – 2009). Seja por intervenção da internet, de uma enciclopédia musical; por influência do pai, da mãe – ou no meu caso, de um tio -, enfim, qualquer experiência de música pop terá o rei como pedra fundamental.

Proponho, portanto, o seguinte: pense em uma música de Michael Jackson. Pensou? Ela provavelmente está no álbum “Thriller” que completou 35 anos no último dia de novembro. Icônico, representa o maior feito na música pop mundial.

Sete das nove músicas que constituem o disco se tornaram singles e emplacaram na lista das dez melhores. Não satisfeito, Michael Jackson faz parte de um seleto grupo de artistas que conseguiram o feito de colocar duas músicas ao mesmo tempo entre as cinco músicas mais tocadas.

Há um tanto de razão quando se constata que a locomotiva da indústria fonográfica mundial recebe muitas críticas pela primazia do comercial sobre o artístico, com diversas acusações de plágio, uso de software para o tratamento de voz de algum intérprete cuja qualidade e extensão vocais são duvidosas – e não raro são desmascaradas nas apresentações ao vivo -, à exceção, claro, daqueles que são realmente talentosos. Principalmente quando as referências e argumentos que embasam esses julgamentos remontam a épocas em que a força motriz era outra, como há mais de três décadas. É nesse contexto que precisamos falar sobre Michael Jackson.

Embora o nome de Michael já fosse conhecido mundialmente por ter se destacado no próspero grupo formado com os irmãos, havia uma cor destoante na tela. O destaque à frente dos irmãos traz em seu bojo um drama. Dividido entre as relações familiares conturbadas e suas vontades íntimas, o artista teve de calar seus instintos e concepções diversas vezes para manter a harmonia entre os Jackson, correspondendo aos inúmeros apelos da diplomática Katherine, a matriarca.

Aprontando alguma coisa

Nesse cenário, tudo indicava que “Thriller” seria o movimento decisivo da emancipação de Michael em relação ao eventual parasitismo coordenado por seu pai, Joseph. Lançar quatro álbuns solo quando ainda era vinculado à gravadora Motown não foi suficiente, e ter lançado o disco “Off The Wall”, em 1979, com um selo diferente dos anteriores, representava apenas o início de uma nova era. Começava a ficar claro que surgia um outro Michael Jackson.

Poucos anos depois, seria mais… mais ousado, mais inquieto, mais ambicioso, mais intenso. Como um caso freudiano, o quarto single e faixa de abertura de “Thriller”, “Wanna Be Startin’ Something”, é sugestiva. Ainda com algumas influências advindas do estilo que havia apresentado em “Off The Wall”, no fim da década de 1970, como se fosse um b-side de “Workin’ Day and Night”, Michael traz na música uma mensagem a ser decifrada, mesmo que fosse apresentada repetidas vezes às marteladas, escancarada aos olhos e ouvidos. Como um ilusionista, Michael Jackson escondeu o impossível de não ser visto no próprio título da faixa. O astro estava “aprontando alguma coisa”.

Depois da primeira parceria no novo projeto, a dupla Michael Jackson e Quincy Jones se juntaram para um novo empreendimento da Epic Records com um orçamento de aproximadamente US$ 750 mil. A partir de uma seleção de trinta músicas, nove foram selecionadas para compor a obra. Nos estúdios, engenheiros, produtores, executivos estavam em êxtase por participarem daquela concepção.

Todos concordavam em uma coisa: o disco seria incrível, ou mais que isso. Certamente foi. E é. Sempre será. A produção do álbum contou com alguns equipamentos queimados por conta da vulcânica empolgação em relação ao trabalho, noites viradas por puro prazer e vários boatos em relação às composições. O resultado foi um disco de sucesso estrondoso que aquele menino humilde de Gary, Indiana, sétimo filho de uma prole de nove, jamais poderia imaginar alcançar e nunca mais foi capaz de ultrapassar.

Amor de Billie Jean

Michael Jackson, The Man, é o único artista a figurar duas vezes entre os dez álbuns mais vendidos de todos os tempos. Tudo isso graças à efervescência de um jovem que apostou em um conceito: “Thriller”.

O primeiro single do disco nasceu de um pedido de Quincy Jones, que solicitou a Michael que escrevesse uma música sobre dois homens disputando o amor de uma mulher. Michael afirma ter tido uma inspiração enquanto dormia que determinou a melodia da música. “The Girl Is Mine” foi gravada em dueto com seu amigo Paul McCartney e lançada em outubro de 1982.

Embora não tenha conseguido chegar à altura do sucesso de “Say Say Say”, outra parceria da dupla gravada para o álbum “Pipes of Peace”, do beatle, o single alcançou a segunda posição na Billboard Top 100, ultrapassando a marca de um milhão de cópias vendidas em 1985.

Já o segundo single é uma de suas músicas mais conhecidas. “Billie Jean” é enigmática. Há diversas teorias sobre o que teria inspirado Michael Jackson a escrevê-la: uma fã ensandecida que teria proposto um duplo suicídio; uma moça que se destacou no meio de um mar de gente aos olhos de Michael; uma imagem condensada a partir de inúmeras tietes desesperadas que marcaram sua carreira.

À época, o produtor Quincy Jones julgou que a música era fraca, insossa e que não valeria a pena incluí-la, mas Michael pensava totalmente diferente, e insistiu para que a faixa figurasse no disco. Segundo o biógrafo Randall Sullivan, para construir uma sonoridade inconfundível, a introdução na bateria foi mixada exaustivamente por 91 vezes. A bateria em compasso quatro por quatro abrindo ecos sutis e o baixo insistente e corpulento se encontram com as funções dominantes do teclado em staccato que dão a cor dramática que serve de base para o desenvolvimento da música.

Michael se conecta à tensa atmosfera em fá sustenido menor ao entrar com seus característicos soluços vocais. Outros instrumentos se apresentam à mesa para ouvir aquela bizarra história de uma suposta paternidade, e expressam suas emoções: uma guitarra tímida e condescendente sussurra algo enquanto os metais curiosos apressam o narrador querendo saber o desfecho da novela.

Gemidos e gritos antecedem a declaração. A guitarra engasga, os violinos se entreolham. O teclado parece se convencer, e acompanha melodicamente o narrador. Os boatos correm, cada timbre apresenta sua versão.

Exótica para o que se fazia de música pop à época, “Billie Jean” é uma excelente produção. São muitos instrumentos incluídos de forma rigorosa, sem pecar pelo excesso, em uma progressão de passo marcado até chegar ao clímax, sem descaracterizar a personalidade da faixa. Além disso, há espaço para Michael expor boa porção de sua extensão vocal, utilizando oitavas mais baixas ou mais altas para marcar contraste ou concordância com outros elementos.

Riff insubordinado

Não satisfeito, Michael Jackson faz parte de um seleto grupo de artistas que conseguiram o feito de colocar duas músicas ao mesmo tempo entre as cinco músicas mais tocadas

Terceiro single, “Beat It” é um desafio de Michael Jackson para ele mesmo. Ávido, queria provar que sua capacidade de criar excelentes obras ia além de fórmulas, rótulos e gêneros. Com um riff insubordinado, “Beat It” também tem a sua identidade sonora distinta.

A temática do bad boy valente que quer mostrar o seu valor a ponto de estar disposto a dar seu sangue para isso é manifestada no solo de Eddie Van Halen ao traduzir em digitações na guitarra a sensação de descargas de adrenalina na corrente sanguínea motivadas pelas provocações, pelo ambiente hostil e iminência de confronto.

A taquicardia, a respiração ofegante, a pupila dilatada, os músculos enrijecidos: um organismo à beira do colapso, precisando extravasar. A resolução consiste em um slide down ao fim do solo. “Beat It” parece uma mensagem inconsciente de Michael para ele mesmo, incitando-o a se posicionar diante das opressões que sofria no ambiente familiar. Como se sentisse que precisava “cair fora” e sair da defensiva. Com toda atitude que o rock permite, ele se retifica.

Por outro lado, o quinto single, “Human Nature” transborda leveza. Com melodia simples, mas cativante – sobretudo quando se capta o xilofone acanhado que acompanha quase em silêncio a voz de Michael -, remete a uma aura de encontros harmônicos, escalas deslizando para a tônica.

Além disso, a qualidade vocal do rei do Pop é posta em evidência na singeleza de sílabas sussurradas, suspiradas, soluçadas, trêmulas… Tudo sob perfeito controle. Qualquer sutil semelhança deste single com a canção “Africa”, do grupo Toto, pode não ser apenas coincidência. Quem assina a música de “Human Nature” é Steve Porcaro, tecladista da banda californiana.

Inúmeros efeitos

Seguindo a sequência de singles do álbum, “P.Y.T. (Pretty Young Thing)” pode representar o resultado do amadurecimento da pegada presente ao longo de quase todo o álbum “Off The Wall” e a época da Motown. Com forte referência ao soul e refrão pegajoso, a faixa é extremamente dançante, com ótimo groove ditado por um contrabaixo preciso que salta aos ouvidos com slaps enchendo o volume enquanto dialoga com uma guitarra funk.

Outro casamento interessante é entre a voz de Michael e do backing vocal, na parte mais melódica da música. A produção da música chama atenção por um sem número de efeitos e soluções rítmicas; beira a perfeição, e é surpreendente pensar que este resultado foi alcançado há mais de trinta anos.

“Baby Be Mine” e “Lady In My Life” são o par de faixas que não foram lançadas como single, mas nem por isso apresentam baixa qualidade. A primeira tem algum parentesco com a excelente “Rock With You” do álbum anterior, desde a abertura com a bateria, passando pela guitarra suingada e pelo ambiente criado por teclados e violinos. Há uma alta carga libidinal na interpretação de Michael que faz peso com sua voz trincada, expulsando gemidos e apelos.

Na segunda metade da música, foi empregado um recurso relativamente comum em música pop, cujo êxito nesta faixa em específico é questionável. A transposição da tonalidade da música para meio tom acima não comporta a eloquência pretendida, soa desengonçada, apenas harmonizando no próximo compasso; meio capenga, um tanto desnecessário.

Sexy e sentimental

Mesmo após sua trágica morte, em 2009, Michael Jackson provou (mais uma vez) ser um fenômeno insuperável: com um faturamento póstumo superior a US$ 160 milhões

A última faixa do disco, “Lady In My Life” é sexy e sentimental. Sem pressa, a voz de Michael Jackson iça suas velas e, como se as notas do contrabaixo fossem toques de brisa, parte da costa em viagem em direção a outro cais. À medida em que toca o mar calmo, sua voz sai vagarosamente. O segundo trecho dessa viagem, encontra algumas ondas no caminho que criam oscilações rítmicas, mais agitadas. O Rei do Pop sensualmente deslaça profusões de notas semitonadas, intensas, criando atmosferas eróticas reforçadas por uma guitarra mínima, slaps no contrabaixo e um teclado soft.

Faixa-título do álbum, a aterrorizante “Thriller” inicia com uma movimentação calculada com um monstro de tocaia em um armário antigo, em um chalé abandonado no meio do nada, sofrendo com uma tempestade, esperando pelo momento certo para dar o bote em alguma presa desprevenida, provavelmente um casal de jovens aventureiros.

O último acorde, um si bemol diminuto é o da preparação… Thrill-er! Grita o teclado, separando as sílabas nos graus “meio-forte” e forte, respectivamente, da função tônica. A sensação que se tem é de um susto, seguido da constatação desse susto; algo intenso que imediatamente se torna ainda mais febril. O compositor Rod Temperton já havia colaborado com Michael em outras gravações como “Off The Wall” e “Rock With You”, mas dessa vez ele criou um monstro sonoro, cuja imagem é construída atrás dos olhos de quem escuta a faixa. O som precede a efígie.

O baixo sintetizado é o que dá a certeza de que ainda se está vivo, pulsando em dó sustenido, enquanto o terror toma conta do resto do corpo. Um êxtase da iminência da morte violenta com a vontade de dançar até morrer. É essa dualidade que se experimenta em “Thriller”, o quase-morto e muito vivo. A guitarra nas músicas dos primeiros álbuns de Michael Jackson na Epic Records – “Off The Wall”, “Thriller” e “Bad” – é bem característica e reiterativa, porém não chega a ser fastidiosa. Em relação às outras cordas, não faltam elementos para criar calafrios apavorantes: sintetizador, teclado e um órgão gótico imbuído em tragicidade.

O famoso videoclipe de catorze minutos de duração que custou meio milhão de dólares mostra todo o ritual sinistro com dança, música e gritos de elação. E quase não saiu, devido a problemas com os líderes de sua igreja, já que Testemunhas de Jeová são bem rigorosos em relação a expressões pagãs e supostamente demoníacas.

No entanto, com apenas um breve aviso adicionado ao início da gravação, o videoclipe saiu, e integra a biblioteca do Congresso americano, com status de tesouro nacional. A voz pesada do ator Vincent Price recitando um poema macabro que parece empurrar o vampiro de volta ao caixão na premência do nascer do dia – garantindo que na noite seguinte o terror surgiria outra vez – é mais uma das marcas registradas vinculadas a esse período de ouro conhecido como Era Thriller.

Imbatível

Quando “Thriller” foi lançado, no início da década de 1980, os Estados Unidos passavam por uma crise econômica e estimava-se que vender 2 milhões de cópias seria um bom marco. O sucesso comercial foi um pouco além disso. Álbum mais vendido de todos os tempos, “Thriller” segue imbatível há décadas. A (larga) estimativa quanto ao volume de vendas gira em torno de 70 a 100 milhões de cópias. Este ano, o disco bateu recorde nos Estados Unidos, ao chegar à marca de 33 milhões de cópias vendidas só em território americano.

Em 1983, o disco saía das lojas a todo momento, batendo a média de quinhentas mil cópias por semana. Apenas com as vendas dos discos, Michael Jackson faturou duzentos milhões de dólares. Na Billboard, se manteve por mais de dois anos nas paradas, ocupando o primeiro lugar por impressionantes 37 semanas. Ganhou oito gramofones de ouro na vigésima sexta edição do Grammy Awards.

O sucesso do disco é surpreendente, mas benemérito. Com sua genialidade, aliada à eficiência de Quincy Jones, Michael Jackson criou um reinado para si. A produção daqueles primeiros anos em uma nova gravadora, a construção de toda uma personalidade sonora, a atitude ousada; o conjunto da obra tem um peso inestimável para a cultura mundial.

Mesmo após sua trágica morte, Michael Jackson provou (mais uma vez) ser um fenômeno: com um faturamento póstumo superior a US$ 160 milhões, encabeça a lista de artistas que mais tiveram sucesso no mercado depois de falecer. Embora sejam números expressivos, o valor da arte de Michael Jackson é inestimável, vai além de números e além da vida. Seu reinado permanece e angaria cada vez mais novos súditos. Por essas e tantas, vida longa ao imortal e imbatível rei do Pop!

André Luiz Pacheco da Silva é estudante de psicologia e psicanálise, escritor e melômano