Primeiro vinho do Cerrado goiano foi produzido por coronel e sabor ainda é um segredo
25 setembro 2022 às 00h00
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O vinho é sinônimo de suavidade que, para muitos, se contrastaria com um ambiente como o Cerrado. A região é árida, caracterizada por solo avermelhado, sem nutrientes e de clima seco. À primeira vista, não apresentava os critérios para albergar videiras. Imagina as mudas trazidas da França, como pinot noir, cabernet sauvignon, syrah e sauvignon blanc. Mas, o pioneiro em desafiar tudo que parecia obstáculos para o cultivo, iniciou os primeiros testes justamente com essas espécies trazidas da Europa para a fazenda, localizada em Planaltina de Goiás, no Entorno do Distrito Federal. Por analogia, toda taça da bebida se remete ao afeto, e foi por amor que José Antonio Pires Gonçalves, um coronel da reserva do Exército, se aventurou na fabricação de vinho em terrenos desconhecidos. Ele queria agradar a esposa, Consuelo – apreciadora de bebidas.
Para o novo empreendimento, uma vez que havia trocado a criação de gado para produzir cachaça e rum, o militar contratou um dos melhores enólogos do país, Marcos Vian. Propôs ao especialista um desafio: o cultivo de uvas da maneira mais natural possível, sem utilização de enxertos e sem agrotóxicos. A produção teve início e a safra lhe rendeu poucas garrafas, que não deram tempo de chegar ao mercado. É que o sonho do fazendeiro foi interrompido pela morte precoce de uma filha. Esse episódio fez com que a família se mudasse para o Rio de Janeiro, levando as bebidas junto. “Ninguém sabe que gosto tinha esse vinho”, revelou Vian, que apesar de ter sido responsável pelo processo de produção, não provou sequer uma gota do vinho.
Assim como ele, alguns chegaram próximo de degustar a bebida do coronel, que na época já era conhecido e premiado pela fabricação de rum. Contudo, apenas restaram promessas, não cumpridas. Certa ocasião, o diretor da Associação Brasileira de Sommeliers do Distrito Federal (ABS-DF), Sérgio Pires, contou que foi convidado pelo viticultor para conhecer o vinho. O encontro aconteceu no apartamento do militar, em Brasília. Naquela época, ele já estava beirando os 80 anos. Na sala, sobre a mesa estavam postas as taças e uma arma. Pasmo, o convidado brevemente citou algumas exigências que um vinho precisa ter para ser classificado como de altíssima qualidade. Não obstante, as palavras foram suficientes para o anfitrião mudar totalmente de ideia, esbravejar que todo sommelier era chato e recusar um cálice da bebida. Anos depois, Gonçalves faleceu, levando consigo o segredo do vinho. Somente após duas décadas a qualidade da produção da bebida no Cerrado começou a ser conhecida.
O que chama a atenção dos nossos vinhos aqui do Cerrado é que muitas vezes ultrapassam 15% de graduação alcoólica e, apesar desse teor bem elevado, há um bom equilíbrio entre os componentes dos vinhos, demonstrando uma vinificação bem criteriosa”
Edna Gomes, Sommelier, gastrônoma, jornalista e poeta
Na mesma época, no fim da década de 1990, Danilo Razia, a esposa, Vanilda Padilha Razia, e toda sua família chegaram ao município de Itaberaí, na região Central de Goiás. Eles deixaram o Rio Grande do Sul, estado com grande concorrência de plantadores de uva e produtores de vinhos para explorar uma nova região. A ideia deu certo. Fundaram a Vinícola Goiás. A fisionomia do Cerrado, capim, cupins e árvores retorcidas passaram a dividir o espaço com grandes vinhedos. Segundo ele, as uvas gostam de calor, da luz do Sol, mas não se dão bem com muita água; que causam muitas doenças, devido ao excesso de umidade, o que não ocorre na região, que tem tempo seco predominantemente. Por conta disso, é possível realizar três colheitas por ciclo, e no Sul apenas uma produção por ano.
Ao traçar o caminho dos vinhedos, em junho de 2007, tendo como cenário a Serra das Galés, no município de Paraúna, no Sul goiano, se iniciou o cultivo de uvas e a produção de vinho, por Sebastião Ferro. “Ele foi em Caxias do Sul, conheceu a gente, acabamos fazendo uma sociedade e construímos a empresa aqui em Paraúna”, recorda Valdir Cristófoli, enólogo da produção. Lá, são fabricados seis tipos da bebida de mesa: a marca Cálice de Pedra, vinho branco, tinto e suave rosado; suaves ou secos. Eles são feitos das uvas do tipo Isabel, Violeta e Cora (tintos), Lorena e Niágara (brancos). Boa parte da produção é vendida dentro do mercado goiano. “Começamos produzindo quatro vinhos de mesa, que são vinhos mais simples, mas populares. Em 2010, a gente lançou o suco de uva integral que é sem adição de conservante e sem adição de açúcar. E, em 2017, lançamos o primeiro vinho fino, elaborado com uvas da espécie de vitivinícolas, que são aqueles vinhos mais complexos e mais caros”, detalha. No local, o empresário rememora que começaram a cultivar a uva syrah e turinga nacional. “Nós já temos seis vinhos finos em linha: Syrah, Tempranillo e Touriga Nacional 100%. Neste ano, iremos lançar nosso primeiro vinho branco, da variedade Riesling Itálico, e vamos lançar o vinho tinto da variedade Sangiovese”, anuncia.
De acordo com ele, o Cerrado possui condições ideais de solo, clima e relevo para o cultivo da fruta. “Aqui tem um clima, que apesar das pessoas acharem que se produz uva, onde tem inverno, isso não é verdade”, diz. Atualmente, são cultivadas mais de 10 mil variedades de espécies de videiras no mundo, sendo que muitas delas, apenas é possível obter a produtividade e maturação nos locais com clima de inverno mais acentuado. “Mas, centenas delas, a gente consegue adaptar a climas tropicais, que é o nosso caso aqui. Aqui, a gente usa a técnica de dupla poda, fazendo a programação das podas, de forma que a uva fica madura agora, no meio do ano, quando não há precipitação, não tem chuva. Nesse período, começamos a colheita da uva para industrializar, em julho e termina fim de setembro, que é quando se consegue uma boa maturação, uma boa produtividade e um estado sanitário perfeito da uva”, descreve. O enólogo acrescenta que a amplitude térmica, a diferença de temperatura do dia para noite, no período, favorece a formação dos polifenóis e dos açúcares do fruto.
Um ano depois da empreitada na região da Serra das Galés, o médico goiano Marcelo de Souza decidiu aplicar a bagagem enófila adquirida na capital paulista, onde fazia uma especialização em otorrinolaringologia. Em Goiás, ele buscou difundir o consumo do produto. Para isso, trocou a literatura de medicina por livros de gastronomia e agronomia. Fez muitas pesquisas, concluindo que o clima seco e a amplitude térmica do planalto goiano eram elementos ideias para a produção em massa de uvas, com amadurecimento no ponto perfeito para resultar em vinhos de excelência. Fundou em 2008 a vinícola dos Pirineus, em Cocalzinho de Goiás, no Entorno do DF. O local fica às margens do Rio Corumbá. “Somos a primeira vinícola de vinhos finos do Brasil em relação a dupla poda, que são os vinhos da onda do Brasil, que são produzidos em Goiás, Minas Gerais e São Paulo”, destaca. A dupla poda ou poda invertida é uma técnica aperfeiçoada por pesquisadores da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), que permite que os produtores colhem a uva no período mais seco e, assim, possam garantir a qualidade dos vinhos. O médico já coleciona os vinhos finos Bandeiras, uma homenagem aos bandeirantes, que descobriram a região, produzido com a uva italiana barbera; e Intrépido, produzido com uvas syrah (85%) e tempranillo (15%). Além desses, há a linha com menos tempo de barrica, a Terroir, com as castas Tempranillo, Syrah e Barbera.
Sommelier, gastrônoma, jornalista e poeta; Edna Gomes explica que os aspectos do Cerrado, como altitude, se tornou uma inovação para a produção da bebida, sendo uma novidade tanto para o mercado interno quanto para o mercado internacional. “Nós temos as mesmas condições climáticas necessárias para o cultivo, semelhantes às regiões tradicionalmente produtoras como o Chile, Argentina e a Califórnia, produtoras de grandes safras”, compara. “Nós temos o clima seco no inverno, na fase de amadurecimento dos frutos. Nós temos a amplitude térmica do local que é grande. Durante o dia chega a 30 graus e à noite, é incrível, cai para 10 graus e quase não chove de maio a agosto. A temperatura é amplificada ainda mais pelo fato de que os vinhedos como a vinícola Pirineus, possam estar em meio ao vale de aproximadamente 900 metros de altitude”, considera.
A enófila chama a atenção para o sabor “mais aveludado” do vinho produzido no Cerrado. Pela característica do ambiente, os frutos concentram maior teor alcoólico, da mesma forma, que possuem alta proporção de açúcar. Essa simetria que diferencia a bebida cerratense das demais, como do Sul do Brasil, Chile e Argentina. “Eu até me atrevo a dizer que alguns vinhos que já degustei, tipo Syrah, Barbera, Tempranillo e Touriga Nacional, da região de Paraúna de Goiás. Onde eles dedicam muito a produção nacional. Os vinhos são feitos à base de uvas mais sobrematuras, que proporcionam teor mais aveludado aos vinhos. O que chama a atenção dos nossos vinhos aqui do Cerrado é que muitas vezes ultrapassam 15% de graduação alcoólica e, apesar desse teor bem elevado, há um bom equilíbrio entre os componentes dos vinhos, demonstrando uma vinificação bem criteriosa”, define. “A gente tem que se orgulhar desses vinhos aqui do Cerrado, porque a nossa condição climática é muito favorável a colheita das uvas com maior concentração de álcool e açúcar, por isso, é um vinho, que mesmo que tenha um nível de álcool maior, é um vinho mais aveludado, por causa da concentração de açúcar”, específica.
Para Edna Gomes, a constante atividade do cultivo de uvas, proporcionado pelas características únicas do Cerrado garantem um produto de extrema qualidade. “Uma das características aqui do Cerrado é que as áreas tropicais, a planta está sempre em atividade, que é diferente do que acontece em clima temperado. Em que a videira entra numa hibernação no período de inverno”, equipara. “A nossa vantagem aqui é que o manejo é permanente da planta e a produção vem no momento desejado. Tem a possibilidade de alcançar produtos com teor alcoólico superior à média brasileira. A média brasileira, como no Sul, fica em torno de 13%, enquanto, em Goiás atinge de 14, às vezes, 16%. Em razão dessa amplitude térmica na finalização da maturação das uvas, o que é muito legal, porque é um diferencial. As noites frias favorecem ainda mais uma coloração muito intensa. Todo esse contexto permite que a casca, a semente e a pomba amadureçam plenamente,” vislumbra.
A especialista salienta que um fato curioso no planalto central brasileiro é que embora a localização seja no hemisfério sul, a safra dos vinhos, por exemplo, da Serra dos Pirineus, acontece em ciclo invertido, coincidido com a mesma época em que ocorre nos vinhedos do Norte do planeta. “Além de ser uma região excelente para produzir vinhos de excelência, pode-se fazer algumas técnicas de colheita, como alguns vinicultores estão fazendo, que é invertendo o ciclo de produção das uvas”, explica. Esse manejo vem permitindo que os produtos colham em estações específicas, o que proporciona melhor sanidade do produto. Outra inovação é durante a fabricação dos vinhos. “O legal é que o processo de maceração, fermentação e maturação do vinho é realizado em algumas vinícolas aqui, em tanques de inox e em barricas de carvalho francês e americano. Esse ritual pode levar mais de um ano. Esse é o capricho que garante um produto com bastante dañinos, estrutura e intensidade do vinho”, avalia.
Vinhos de jabuticaba
Responsável pela vinícola de jabuticaba, em Hidrolândia, na região Metropolitana de Goiânia, Marcos Paulo Batista, conta que a produção começou em 1999. Naquela época, os proprietários fizeram uma parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG). Foram iniciadas pesquisas, para se verificar a viabilidade de produção, como da fermentação da jabuticaba. “Conseguiram chegar na bebida, realizar a fermentação, como é hoje produzido, que é totalmente por meio da jabuticaba. Então tem um fermentado seco, feito licoroso e aguardente”, relembra.
Para ele, o maior desafio da produção de vinho e outras bebidas a partir da jabuticaba é o tempo que se leva para a fermentação e a acidez da jabuticaba. “É uma fruta bastante ácida, se encontra uma acidez bem elevada comparado com a uva”, explica. O que torna o vinho com teor de maior acidez. “Isso é uma dificuldade tremenda quando o cliente compara com o vinho fermentado de uva, porque são frutas totalmente diferentes e características diferentes. São dois produtos que não devem ser comparados, pois possuem características sensoriais organolépticas diferentes um do outro”, pontua.
Embora haja essas particularidades, Batista comemora que o vinho da jabuticaba conquistou o mercado goiano e nacional. “A aceitação é bastante grande e a gente tem uma demanda crescente de clientes, que cada vez mais procura esses produtos, que é diferenciado”, comentando, emendando que são poucas vinícolas que fazem a fermentação 100% da própria jaboticaba, como é feito por eles. “O pessoal gosta bastante da característica sensorial e química da bebida, por ser uma bebida mais forte, mais ácida com teor alcoólico parecida com a de uva, de 11%. Tem um mercado crescente e uma demanda crescente nesse setor”, celebra. Conforme o vinicultor, os pratos que mais combinam com o vinho da jabuticaba são carnes mais gordurosas, como as suínas. “Devido a acidez, harmoniza bastante com esse tipo de carne”, indica. A fruto em si é rica em antioxidante maior do que a encontrada na uva, e isso é transferido ao vinho.
Em que pese, o militar pioneiro, José Antonio Pires Gonçalves, não tenha permitido que ninguém, além dele e a esposa, tenha degustado o primeiro vinho produzido no Cerrado, outras iniciativas transformaram para sempre esse ambiente e tem colocado produtos sofisticados e competitivos no mercado nacional e concorrendo com tradicionais marcas internacionais. O sommelier Sérgio Pires lamenta, o desafio do momento do vinho goiano, não é equilibrar sabores, cheiros e consistência, mas vencer preconceitos em relação a produção de vinhos em Goiás. O especialista relata que quando leva algum vinho produzido no estado para degustações, nota repulsa de convidados. Talvez tenham sido atitudes semelhantes que levaram Gonçalves a manter em segredo a produção de vinho iniciada em Planaltina de Goiás.