Putin é o cavaleiro solitário contra o qual se esbraveja, mas que ninguém quer enfrentar. Por que tem petróleo e gás? Sim, mas sobretudo porque tem a bomba atômica

A Rússia não é a nova União Soviética — há analista (e até o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden) que postula que Putin quer recriá-la —, mas, como era a sede do poder, o Kremlin, é vista como a, digamos, República-chefe (até 1991). A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sob o tacão do georgiano Ióssif Stálin, não tinha pudores. Em agosto de 1939, ficou um pacto de não-agressão com o governo nazista de Adolf Hitler e se tornou uma das principais parceiras comerciais da Alemanha. É provável que, sem a aliança, o ditador “germânico” não teria atacado a Polônia, em 1º de setembro de 1939.

Vladimir Putin está testando os limites de sua relação com a Europa e os Estados Unidos: parece ter percebido uma certa fragilidade nos seus possíveis adversários | Foto: Reprodução

Porém, em 1941, Hitler traiu Stálin — por sinal, embora paranoicos, os dois se davam muito bem — e invadiu a União Soviética, causando uma imensa devastação. Para reagir, os comunistas contaram com o apoio maciço da Inglaterra e, sobretudo, dos Estados Unidos. O povo russo, assim como em 1812 — quando expulsou as tropas de Napoleão (história vivamente contada no romance “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói) —, reagiu bravamente ante o invasor alemão, acabando por derrotá-lo em solo soviético. Em seguida, avançou sobre a Alemanha, com um imenso custo de vidas (nenhum país teve tantas mortes quanto a URSS — cerca de 27 milhões, entre civis e militares. Os Estados Unidos perderam 150 mil militares). A vitória dos Aliados na Segunda Guerra, em 1945, se deveu, em larga medida, aos patrícios de Anton Tchékhov. Os Aliados até poderiam ter vencido os alemães, sem parceria com a União Soviética, mas a luta teria durado mais tempo e com um custo de vidas imenso.

Depois da Segunda Guerra Mundial, dois países moldaram o mundo — a União Soviética, do lado comunista, e os Estados Unidos, do lado capitalista. Criaram sistemas bélicos superiores à qualquer época. Com a bomba atômica — cujo “segredo” os soviéticos furtaram dos Estados Unidos —, criou-se, não mais belicismo, e sim uma estabilidade política de amplo espectro. “Guerra” havia, porém, sendo Fria, era localizada, e não mais mundial. E, claro, ninguém usava a energia nuclear. Deu-se um equilíbrio de forças.

Xi Jiping e Joe Biden: o presidente americano luta para manter a hegemonia econômico-tecnológica sobre o país do presidente chinês | Foto: Reprodução

Com uma economia estagnada, a União Soviética manteve-se como um dos principais players mundiais às custas do petróleo e do gás — dos quais praticamente toda a Europa necessita para se mover. Mas, aos poucos, a crise solapou a economia, com as Repúblicas, como a Ucrânia — que não é irmã coisa alguma da Rússia (o Holodomor é a prova de que há um ódio profundo entre as duas nações) —, operando pela independência. Em 1991, depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, o socialismo ruiu por completo, com as Repúblicas se tornando países (Rússia, Ucrânia, Letônia, Lituânia, Estônia, Geórgia, Bielorrússia, entre outras).

A Rússia, senhora do petróleo, do gás e da energia nuclear — simbolizada pela bomba atômica —, continuou poderosa. Mas só ressurgiu de fato como poder “disputante” com a ascensão de Vladimir Putin, um ex-agente do KGB (hoje, FSB). Misto de czar com Stálin, Putin encarna a grandeza da Rússia. Sabendo como poucos como explorar a ideia da “Mãe Rússia”, o presidente russo não quer que ninguém — nem a Otan (cujo símbolo mais forte são Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e França) — cante nos seu terreno. E “seu” terreiro são os países que circundam a Rússia, como a Ucrânia. Se outros países “têm” suas áreas de influência, políticas e econômicas, por que a Rússia não pode ter?

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sugere que Putin quer restaurar a União Soviética. Talvez até queira. Mas o que se quer às vezes não é o que se pode. O que Putin está dizendo que pode, ao atacar a Ucrânia, é que planeja se manter como líder de vários países da região, sem que a Otan esteja à porta, ameaçando-o de retaliação.

Vladimir Putin com Xi Jinping: sem a China, a Rússia não irá para a aventura da Terceira Guerra Mundial | Foto: Mikhail Svetlov/Getty Images

Há de se fazer uma pergunta: por que Putin parece não temer as ameaças de Biden — que, do ponto de vista financeiro (congelamento de ativos, por exemplo), são duras? O presidente russo parece perceber o líder americano como um Argos velho que até late mas não morde dolorido.

É um engano pensar que Biden é mole e que os Estados Unidos perderam sua capacidade de ação e reação. Por causa da idade, 79 anos, Biden parece fragilizado, assim como a economia do país, ante a ameaça da China, começa a perder força global. Dizer isto não é o mesmo que sugerir que os Estados Unidos devem ser considerados como uma nação decadente. É um engano pensar assim.

Seria irracional, da parte de Biden, jogar toda a potência dos Estados Unidos contra a Rússia, que poderia gerar uma guerra mundial, inclusive com a possível atração da China para a peleja (sem a China, frise-se, a Rússia não irá à guerra contra os americanos). Por isso, preferiu a linguagem do que é possível fazer numa democracia, como a americana: o congelamento de ativos financeiros e a criação de dificuldades para os russos negociarem com os Estados Unidos.

Biden teme alguma coisa? Impérios, mesmo democráticos, não temem muitas coisas. Mas, quando se olha para a Rússia, deve-se ver mais coisas, como a China.

Joe Biden e Vladimir Putin:  o russo percebeu uma oportunidade para se mostrar forte ao “sentir” uma possível fragilidade do presidente americano | Foto: Reprodução

No caso de uma guerra mundial, a China tanto pode participar, como parceira da Rússia — está ao seu lado na questão de Ucrânia, até para confrontar os Estados Unidos —, mas também pode ficar neutra (e, como se disse antes, sem a China, a Rússia recuaria e não participaria de uma guerra mundial, porque seria destruída). Se participar, cria uma aliança forte com o país de Putin — ou seja, dois gigantes nucleares. Se não participar, no caso de uma guerra destrutiva, com a possibilidade de a Europa sair arrasada pela força da Rússia, provavelmente sairia como a potência dominante.

Os Estados Unidos “criaram” Donald Trump para enfrentar a China, para impedir que sua economia superasse a americana. Apesar das bravatas do republicano — um político isolacionista, e, a rigor, menos intervencionista do que outros presidentes, inclusive republicanos, como George W. Bush —, Trump não conseguiu conter a China. Com sua política de os Estados Unidos para os americanos, até tentou, mas não conseguiu. O capital não é mais nacional, é apátrida e vai para onde se tornará mais rentável. Por que a Nike está na China? Porque lá a mão de obra é barata, não há pressões sindicais e também há matérias primas fartas e menos caras. À empresa pouco importa discursos nacionalistas ou protecionistas, pois, num mercado altamente disputado, precisa ter preços competitivos.

Niall Ferguson, professor de Stanford: o mestre acredita na força dos EUA | Foto: Reprodução

Como o hard power de Trump não deu certo, a sociedade americana trocou-o por um político mais moderado. De cara, Biden disse que vai lutar para que a China não supere a economia americana em seu governo. É o que, nos Estados Unidos, todos querem ouvir.

Biden retirou as tropas americanas do Afeganistão, enfrentando críticas em todo o mundo. Mas o presidente não se importou, pois avalia que o Estado americano precisa ter recursos disponíveis para investir na própria economia, promovendo uma nova revolução tecnológica que lhe possa garantir a frente sobre a China. O membro do Partido Democrata decidiu também investir cerca de 3 trilhões de dólares na economia interna, para modernizar sua estrutura e torná-la mais produtiva.

O historiador Niall Ferguson aposta que a China não vai superar os Estados Unidos no médio prazo. Porque a economia americana é a mais criativa do mundo, uma espécie de matriz tecnológica de todas as outras, inclusive da China e da Rússia. A China é forte, está se modernizando tecnologicamente, mas ainda não é tão inspiradora quanto os Estados Unidos. Ressalve-se que a melhor escola de Engenharia do mundo fica na China e o país já tem supercomputadores mais rápidos do que os americanos.

Este livro sugere que a grande “batalha” é entre os Estados Unidos e a China

De fato, a capacidade tecnológica dos Estados Unidos, além do fato de que sabem se renovar numa velocidade excepcional, sugere que o país vai se manter na dianteira por mais algum tempo. Mas a China está avançando e a superação da economia americana é uma questão de tempo: 30 anos, 40 anos, 50 anos. Ou talvez menos. (O livro “A Caminho da Guerra — Os Estados Unidos e a China Conseguirão Escapar da Armadilha de Tucídides?”, de Graham Allison, é crucial para entender o que está acontecendo no mundo hoje. Ele frisa que potências emergentes quase sempre foram à guerra, ao longo da história, para tentar superar a potência dominante.)

Se os Estados Unidos se envolverem numa guerra contra a Rússia (agora ou mais tarde), e se a China não se envolver, para proteger seu povo e seu parque tecnológico-industrial, há a possibilidade de o país do mandarim se tornar a potência hegemônica mais cedo do que se imagina. Ao término da batalha, a China teria o que vender e poderia financiar a construção dos países beligerantes (e dos beligerantes, mas atingidos pelas batalhas), como os Estado Unidos fizeram depois da Segunda Guerra Mundial, se tornando a potência tão dominante quanto incontestável.

Dada a racionalidade do governo de Biden — a saída do Afeganistão foi um ato racional, embora interpretado como um ato de fragilidade —, o mais provável é que, fora as sanções político-econômicas, os Estados Unidos vão tolerar os ataques à Ucrânia, sobretudo se, após a violência inicial, os russos não se instalarem no país, como invasores. A tendência é que se mantenha a Ucrânia fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), com apoio financeiro para sua reconstrução, e as coisas, com o tempo, poderão voltar à rotina.

O que diz acima não é uma certeza, e sim uma hipótese. Porque, como Putin percebeu uma fragilidade na Europa — que depende do gás e do petróleo russos —, e os Estados Unidos mais palavroso do que efetivo, a possibilidade de avançar sobre outros países da região é factível. A impressão que se tem é que Putin é aquele cavaleiro solitário contra o qual se esbraveja, mas, no fundo, ninguém que enfrentar. Por que tem petróleo e gás? Também, mas sobretudo porque tem a bomba… atômica.

Uma fotografia e as cicatrizes na alma ucraniana
Mulher ferida na Ucrânia | Foto: Wolfgang Schwan, da Agência Anadolu via Getty Images

Diz-se que, na guerra, a primeira vítima é a verdade. Num sentido retórico, pode até ser, e, de fato, as autoridades políticas e militares “mentem” — o que é visto como tática e estratégia — à farta, não se importando com a opinião pública. Porém, em todas as batalhas, as vítimas reais são soldados, que estão na linha de frente, e civis, que são pegos no meio dos confrontos.

Na semana passada, uma fotografia foi publicada por vários jornais do mundo. A foto, de Wolfgang Schwan, da Agência Anadolu via Getty Images, mostra uma mulher ferida, nas proximidades de um conjunto habitacional, em Chuhuiv, na Ucrânia.

A mulher, que não é jovem — ao menos, não parece ser —, está com o rosto ferido, o que teria sido provocado pelas bombas russas. As contusões são fortes e, por isso, não dá para saber como ela era antes de a Ucrânia ser invadida pela Rússia.

Apesar de uma bandagem emergencial (há muito sangue no rosto) que envolve seu cabelo loiro, quiçá levemente esbranquiçado, percebe-se que é uma mulher bonita. Mas há desalento no seu rosto machucado, como se perguntasse: por que fizeram isto comigo, por que estão fazendo isto com o meu país, que não está agredindo outra nação? Numa das fotografias, fica-se com a impressão de que está rezando aos céus (ou apenas usando um lenço para limpar o rosto), já que seres humanos (homens, em sua maioria), com suas guerras mortais, parecem enlouquecidos.

O drama da mulher, não nominada — pelo menos nas fotos vistas pelo Jornal Opção —, estampado no rosto ferido, ocorreu com várias outras pessoas: homens, mulheres e crianças. A violência da Rússia na Ucrânia é inominável e quem justifica a guerra — que, a rigor, não figura no “manual” das “guerras justas” — compactua, direta ou indiretamente, com seus excessos.

Um dia, a guerra vai acabar. A mulher das fotos certamente se recuperará, em termos corporais, e terá seu rosto bonito de volta, com, talvez, pequenas cicatrizes que serão lembranças eternas. Mas as memórias maiores ficarão como cicatrizes na alma e jamais serão esquecidas. A Ucrânia, que não é amiga da Rússia, possivelmente jamais o será depois do brutal ataque-invasão. No início da década de 1930, o governo totalitário de Ióssif Stálin promoveu uma fome  — uma forte artificial, como política de Estado — e arrasou a Ucrânia. Cerca de 4 milhões de ucranianos morreram de fome — e o país é um dos mais fertéis do mundo. O ditador retirava alimentos e até sementes da República e proibia que os ucranianos migrassem. Ao mesmo tempo, o stalinismo matou quase toda a elite intelectual da terra de Nikolai Gógol, autor do romance “Almas Mortas”. O tempo passa, mas as cicatrizes físicas, morais e históricas ficam.

O que a mulher da fotografia sente? Não se sabe. Talvez queira apenas sobreviver, junto aos seus parentes e amigos — o seu povo. Mas certamente percebe que a Europa — Alemanha, França (que pareceu acreditar em Putin) e Inglaterra — e os Estados Unidos abandonaram os ucranianos ao deus-dará, ou melhor, nas mãos do autocrata Putin.

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