O líder do PT mostra-se preocupado com a vida. O presidente comporta-se como “mensageiro da morte”. Eleitores estão optando pelo primeiro 

Lula da Silva nasceu em Garanhuns em Pernambuco e menino mudou-se, com a mãe e os irmãos, para São Paulo. No Estado mais rico e populoso do país se tornou metalúrgico, no início apolítico. Depois, como líder sindical — dos mais respeitados, sobretudo por ter um verbo poderoso e ser hábil nas articulações —, foi se aproximando dos políticos e a política foi entrando no seu sangue. Com a fundação do PT, em 1980, se tornou um de seus principais líderes. Era um operário num partido das classes médias, notadamente de intelectuais oriundos de grupos da esquerda, que não queriam mais o agasalho do MDB. Era o símbolo do trabalho num partido que, não sendo marxista, também não era crítico do marxismo — era avesso ao stalinismo. Tanto que, na década de 1980, os comunistas do PC do B — defensores de Stálin — chamavam os petistas de “socialdemocratas” ou, como aos comunistas do Partido Comunista Brasileiro (Partidão, PCB), de “reformistas”. Na época era um “xingamento” terrível. Como havia radicais no PT, não pegava bem. Entretanto, a rigor, o PT sempre foi socialdemocrata, com laivos socialistas, mas nunca foi comunista. De esquerda, sim; comunista, não.

Roberto Jefferson, Lula da Silva e José Dirceu: companheiros de jornada há alguns anos — os três já foram presos | Foto: Reprodução

Erram os que avaliam Lula da Silva como comunista e os que não o consideram de esquerda. O petista pertence à esquerda socialdemocrata e com forte ligação com a Igreja Católica, uma das molas mestras na criação do PT.

Aos poucos, ao mostrar habilidade para articular, agregar e dialogar com forças políticas diversas, Lula da Silva foi se tornando maior do que o PT. É provável que isto, o descolamento dos liderados, ao ser visto como poderoso chefão — superando José Dirceu, o homem dos bastidores —, levou o petista-chefe a se tornar um líder populista. Quase um caudilho.

Muito mais popular do que Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva acabou perdendo duas vezes para o tucano — depois de ser derrotado, em 1989, por Fernando Collor, o Caçador de Marajás (ele próprio se tornou caça, em 1992). Motivo: FHC tinha um legado poderoso: o Plano Real, que estabilizou a economia e praticamente acabou com a inflação.

Em 2002, depois de contratar o marqueteiro Duda Mendonça, e optar por ouvir mais a sociedade, que cobrava moderação, Lula da Silva foi eleito presidente.

Entre 2003 e 2006, apesar do mensalão — corrupção de parte das elites políticas para, supostamente, garantir a governabilidade, uma operação criada por José Dirceu (que estava preparando bases políticas para as eleições de 2010, quando seria candidato a presidente) —, Lula da Silva fez um governo equilibrado, com amplo apoio parlamentar e da sociedade. Realista, nomeou Henrique Meirelles, um banqueiro com experiência internacional, para a presidência do Banco Central e Antônio Palocci, um médico, para o Ministério da Fazenda (surpreendentemente, foi eficiente).

Como a economia estava estabilizada, o governo de Lula da Silva não comprometeu, seguindo os pressupostos do Plano Real. Pelo contrário, o país cresceu e os programas sociais foram ampliados. Mas a corrupção continuou, tanto no segundo governo quanto no seguinte, da petista Dilma Rousseff. Relendo Maquiavel, o filósofo italiano Norberto Bobbio sugeriu que os meios podem corromper os fins. Pois com o PT aconteceu isto. Os líderes decidiram corromper dirigentes políticos de vários partidos, como MDB, PTB, PL e PP, mas, no meio do caminho, petistas também começaram a locupletar-se.

Roberto Jefferson e Jair Bolsonaro: o ex-companheiro de Lula da Silva agora é companheiro do presidente da República | Foto: Reprodução

A rigor, considerando decisão recente do Supremo, que o tornou elegível, pode-se sugerir que Lula da Silva “roubou”? É provável que, a partir de determinado momento, ao perceber como funciona a economia capitalista — com grandes empresários “privatizando” os recursos públicos, mamando nas tetas opulentas do Estado —, o petista tenha decidido, “realista”, colher algumas “migalhas” para si e abrir oportunidade para dois filhos e um sobrinho enriquecerem. Além disso, o ex-presidente não tem como escapar à pecha de corruptor.

Ao tirar da Justiça Federal em Curitiba o direito de julgar Lula da Silva — caracterizando-a como “incompetente” (não é o foro adequado) —, o Supremo Tribunal Federal não lhe deu um atestado de idoneidade. Tão-somente garantiu-lhe elegibilidade. Só o jornalista Reinaldo Azevedo — depois de pego segredando com Andréia Neves, irmã do deputado federal Aécio Neves — parece acreditar que o triplex do Guarujá e o sítio de Atibaia não eram (não são) do ex-presidente.

Se Lula da Silva envolveu-se em corrupção, direta ou indiretamente — alguns empresários e executivos devolveram dinheiro ao Erário e outros recursos foram reconquistados com o apoio do Ministério Público e da Justiça, graças à Operação Lava-Jato —, por que começa a aparecer em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de votos?

O recall como presidente permanece positivo e supera a imagem do político corrupto? Talvez parte significativa dos eleitores veja em Lula certa grandeza, sobretudo na história de um homem que, de origem pobre, se tornou presidente da República. É provável que perceba que tinha preocupação genuína com o povão.

Neste momento, há pessoas que acreditam que Lula da Silva esteja inteiramente livre dos processos. Não está, claro. Mas o fato de ter se tornado elegível sugere certa “limpeza”.

Mas o fator decisivo para a ressurreição de Lula deve ser buscado, diria um expert em dialética, na sua contradição — o presidente Jair Messias Bolsonaro, um outsider que nem filiado a partido político é.

Não há a menor dúvida de que a classe média é a mais moralista da sociedade — os pobres e os ricos, “parecidos”, são mais relaxs com certa amoralidade da vida real, não teorizada — e parte dela parece ou parecia acreditar, até piamente, que, uma vez no poder, Bolsonaro faria um governo “limpo”. Ele passaria uma vassoura — uma serra elétrica — sobre os petistas e sobre os corruptos em geral.

Como a realidade sugere que o indivíduo não muda tão rápido — o que muda numa velocidade espantosa é a tecnologia —, Bolsonaro assumiu e, para garantir a governabilidade, aliou-se com os mesmos companheiros de jornada de Lula da Silva e Dilma Rousseff quando presidentes. A turma do centrão, que “cola” — numa carrapatagem explícita — em todos os governos, já está no cerne do governo. O motivo é prosaico: não dá para trocar pessoas reais por pessoas ideais. “Despertado” pelos generais — que são, mestres da estratégia, realistas — e por aliados políticos, o presidente percebeu que, se quer permanecer no campo institucional, sem golpismo, tem de compor com o que existe e é forte no Congresso, os deputados e senadores do centrão.

Há também o fato de que ao menos um filho de Bolsonaro, Flávio Bolsonaro, está cada vez mais enrolado. Há pouco, comprou uma casa de 6 milhões de reais e não conseguiu explicar a negociação com o máximo de clareza. Afinal, o senador não é a Casa da Moeda, quer dizer, não fabrica dinheiro. O filho Renan Bolsonaro, bem jovem, estaria atuando como lobista. Noutras palavras, a família de Bolsonaro está mais parecida com a de Lula da Silva. Lulinha, digamos, corresponde ao Flavinho, amigo de Fabrício Queiroz.

Bolsonaro está cada vez mais parecido com os membros do centrão, mas os integrantes do centrão não estão parecidos com Bolsonaro. Quem mudou, se é que mudou, foi o presidente, adaptando-se aos novos tempos — o do pragmatismo.

Mas o fator decisivo da “decadência” — ainda relativa, pois não perdeu todo o capital eleitoral — de Bolsonaro é que não soube combater a pandemia do novo coronavírus. Enquanto fazia pilhérias, sugerindo que Covid-19 era uma “gripezinha”, duvidava da ciência, desacreditando o trabalho e sugestões dos pesquisadores e médicos, iam morrendo pessoas — até chegar à espantosa cifra de mais de 370 mil mortos, com várias famílias enlutadas e centenas de órfãos (muitos ainda bebês) de pai e mãe.

Várias pessoas parecem acreditar que Bolsonaro “não gosta” de gente e que parece avaliar que todos são poderosos caubóis de Marlboro — resistentes a tudo, inclusive ao novo coronavírus. Com o ressurgimento de Lula da Silva, com seu crescimento nas pesquisas, Bolsonaro, tomado de certo realismo, trocou o ministro da Saúde e se interessou um pouco mais pela vacinação.

Então, entre o “mensageiro da morte”, Bolsonaro — que priorizou a ideologia à vida —, e o “corrupto”, Lula da Silva, os eleitores, parte substancial deles, estão fazendo uma opção pelo segundo. Por quê? Simples. Todos querem viver. A vida, que é uma só, é mais importante. O Jornal Opção repete sempre: a vida não tem estepe.

Bolsonaro está sangrando mas vivo

Vale sublinhar que pesquisa de intenção de voto revela a circunstância. No momento, Bolsonaro não está bem avaliado, o que leva Lula da Silva a ser bem avaliado, porque é a alternativa real para derrotá-lo (até o ativismo do Supremo é uma tentativa de produzir o anti-Bolsonaro).

Se Bolsonaro começa a sangrar, a um ano e cinco meses das eleições, não significa que está, politicamente, morto. Está “baleado”, mas vivo. Se o governo federal, daqui pra frente, conseguir vacinar a maioria dos brasileiros — criando a chamada imunidade de rebanho, o que vai reduzir, de maneira exponencial, o número de mortes —, é provável que o presidente reconquiste parte de seu capital político? Sim, é possível (o PT poderá perder parte de seu capital político atual), sobretudo se a economia der sinais de recuperação. Há economistas que apostam numa recuperação ampliada, com a população vacinada em massa, e há economistas que avaliam que os efeitos da crise vão perdurar por mais tempo.

Depois do mensalão, os tucanos acreditaram que Lula da Silva iria chegar sangrando em 2006 e, portanto, seria uma presa fácil. “Deu ruim” (aliás, pronunciam com acento: “rúim”), como dizem os jovens, porque o presidente mostrou uma capacidade de recuperação fabulosa e a economia não estava em crise. Com Bolsonaro pode ocorrer o mesmo? Talvez sim. Talvez não. É possível que o capital eleitoral de Bolsonaro, dado representar o conservantismo da sociedade, permaneça mais alto do que registram as pesquisas. Há eleitores do presidente que estão, neste momento, “envergonhados”. Mas estarão em 2022? A bola de cristal do jornalismo é a razão, portanto, não dá para saber. O que se pode dizer é que Bolsonaro está num mau momento, perdendo, digamos, representação.