Vítima ou bandido, ninguém merece morrer
25 fevereiro 2017 às 10h42
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Assassinato brutal de garotinha de apenas 7 anos não pode ser combustível para propagar mais violência em uma sociedade que não aguenta mais sofrimento
A morte da pequena Ana Clara Pires Camargo, de 7 anos, causou comoção em todo o Brasil. Ela saiu para ir à casa de uma vizinha, em Goiânia (GO), e desapareceu na sexta-feira, 17. Cinco dias depois, a polícia encontra o corpo às margens de uma rodovia.
Não consigo imaginar o tamanho da dor de uma mãe que esperava a filha voltar para casa e “recebe”, no lugar, um caixão. Não há palavras que consigam minorar o sofrimento deste momento. Uma menina alegre, amável, que tinha um futuro pela frente e que não fez absolutamente nada para acabar a sete palmos da terra. Ana Clara não merecia morrer.
Principal suspeito do crime, o comerciante Luis Carlos Costa Gonçalves, de 36 anos, também acabou morto pela Polícia Militar. Segundo a corporação, ele teria reagido de “forma violenta”, inclusive com disparos, à abordagem dos policiais. O caso será apurado em inquérito instaurado pela Polícia Civil. A despeito dos meandros da ação que culminou na morte de Luis Carlos, é preciso refletir sobre posicionamentos que tomaram as redes sociais nesta semana: centenas de pessoas comemorando o fim de uma vida.
Mais uma vez, é preciso colocar a sociedade no divã para discutir a máxima do “bandido bom é bandido morto”. Insuflada por um sistema de segurança pública falido, a população, revoltada (e com razão), deixa o luto pela perda de uma menina de 7 anos que, repito, nada fez para merecer o que teve, para destilar ódio contra um ser humano — o suspeito, que sequer foi condenado pelo crime. Luis Carlos não merecia morrer.
Ninguém merece morrer.
Nem no meu pior pesadelo imagino encontrar minha irmã, que completa 9 anos em março, estendida em um matagal após sofrer inúmeros abusos. Sinto muitíssimo e, como disse acima, não acredito que haja qualquer palavra que possa consolar a família da vítima. Me solidarizo e me entristeço por mais um crime, mais uma morte, mais uma pessoa que entrará para a contabilidade da violência no Brasil: o país sem guerra com o maior número de assassinatos do mundo. No entanto, a dor e a emoção não me cegam: há algo que não queremos ver, não queremos enfrentar neste caso: matar o suspeito resolveu o problema? Acabaram-se os casos de abusos no país? Nenhuma criança será mais assassinada? Diminuiu-se a criminalidade? “Menos um assassino no mundo” não significa menos violência. Aliás, quando alguém mata um “assassino” o número de assassinos no mundo continua o mesmo.
Não há que se falar em Justiça quando um suspeito de um crime é morto gratuitamente. Na verdade, quando a sociedade deseja (e, por vezes pratica) o linchamento de um (suposto) criminoso, não se trata de “fazer justiça”. Ignorar valores civis básicos, como a dignidade e a própria vida, mesmo daqueles que cometeram graves contravenções, apenas promove mais violência e não é, nem de perto, solução para os problemas criminais do Brasil. É lamentável assistir a pessoas públicas, inescrupulosa e cruelmente, criminalizar os direitos humanos (uma declaração internacional de mais de 70 anos). Não se trata de defender bandido, como tenho certeza que serei acusado, mas de garantir uma sociedade mais justa que possa, enfim, diminuir os índices da violência. “Olho por olho, e o mundo acabará cego”, disse Mahatma Gandhi.
É revoltante, de fato, que a morosidade do Judiciário, bem como as falhas na legislação penal leve processos a comemorar aniversário nas varas de todas as instâncias. A sensação de impunidade é real e todos nós sofremos com isso. Porém, a chamada “justiça popular” nada tem de justa. Trata-se muito mais de uma vingança, de um sentimento animalesco, movido apenas por emoções: as pessoas que comemoraram a morte de Luis Carlos Costa Gonçalves — que sequer foi indiciado e teve, como prevê a Constituição, direito à ampla defesa — não estavam interessadas em vê-lo punido ou julgado à luz da legislação vigente. O queriam sofrendo, mutilado, violentado… Expurgam a revolta e a dor porque é isso que sentem. Só que uma sociedade moderna, democrática e de direito não pode se organizar aos moldes de leis que datam 2 mil anos antes de Cristo. A Justiça não age com o fígado, no calor do momento; é, muito pelo contrário, racional e igualitária.
Levantamento feito pelo Datafolha no final do ano passado a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e publicado no 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que 57% da população do país concorda com a afirmação de que “bandido bom é bandido morto”. O índice subiu 7 pontos percentuais em comparação com 2015, quando metade dos entrevistados se mostrou favorável à ideia. Num país que mata 60 mil pessoas por ano — em 2015, a cada 9 minutos uma pessoa foi assassinada —, é compreensível que as pessoas estejam desacreditadas nas instituições e inconformadas com tamanha violência — que atinge especialmente o pobre, o negro e a mulher. O sentimento de revolta que se instalou em 2013 e se dilatou desde então com a crise econômica e política é uma demonstração que o povo está farto. Não aguenta mais ser mal atendido em postos de saúde, maltratado em repartições públicas, humilhado em ônibus lotados e afugentado dentro de suas próprias casas. De fato, há reformas estruturantes urgentes, mas estas não passam por armar os cidadãos, nem tampouco fuzilar presos.
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A crise penitenciária, que atingiu diversos estados, é prova cabal de que o sistema de segurança do Brasil faliu. Um modelo que, segundo o novo secretário de Segurança Pública e Administração Penitenciária de Goiás, o renomado professor Ricardo Balestreri só existe aqui e em nações como Iraque, Irã, Afeganistão e Paquistão. “Não sou um sujeito com visão romântica do sistema prisional. Precisamos ser mais duros e rigorosos com os criminosos, que representam perigo à sociedade, e mais recuperatórios e dar mais oportunidades de recuperação à grande massa prisional que tem recuperação e que poderia se recuperar, mas não no âmbito prisional atual como o brasileiro. A maior parte dos presos é recuperável”, defendeu durante coletiva de imprensa na sexta-feira, 24, quando foi apresentado pelo governo.
Não vamos diminuir a violência e a criminalidade incentivando o ódio, a intolerância e a morte. Somente com um sistema de proteção à vida, em todos os níveis, que privilegie a educação, a cultura e a prevenção, avançaremos. Como bem disse Balestreri, segurança pública não se faz com os “soluços cotidianos”: a revolta não pode ser a força motriz das reformas que o Brasil tanto precisa. Menos violência, mais educação. Menos mortes, mais direitos humanos — para humanos “direitos”, tortos e de todas as formas.