Entrevista: os paradoxos do universo da maternidade e a vida social

24 dezembro 2022 às 11h04

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Ana Carolina Coelho e Vanessa Clemente
Quer uma época melhor para receber presentes que o Natal? Pensando nisso, o Jornal Opção começa essa semana um novo espaço: “Conversas de Mãe”. E, se vocês estão achando que esse é um tema que só interessa às mulheres, pode mudar de ideia. Confira a entrevista realizada pela professora Ana Carolina Coelho, que é feminista, mãe de duas crianças, mulher, escritora, professora, historiadora, poeta e plantadora de árvores. Além disso, a professora também é coordenadora do GT Mulheres Cientistas e Maternidades Plurais FH/UFG/CNPq. Ana Carolina conversa com Vanessa Clemente Cardoso, que é pós-doutoranda em História/UFG e também integra o GT Mulheres Cientistas e Maternidades Plurais FH/UFG/CNPq.
Ana Carolina Coelho – Como a maternidade impactou a sua vida acadêmica?
Vanessa Clemente – Uma das partes mais complicadas da maternidade é perder a ilusão que temos de controle do tempo dentro da nossa rotina pessoal e profissional. No ambiente acadêmico os prazos para entrega de artigos científicos, participação de Congressos e realização de disciplinas são mantidos de modo idêntico para quem é mãe ou pai e para quem não é. Infelizmente, o Brasil ainda não possui um sistema de leis efetivo que aborde a maternidade e suas especificidades no ambiente universitário, deixando as mulheres mães e todos aqueles que exercem funções de cuidado à revelia de interpretações dos departamentos das faculdades sem considerar as especificidades de cada estudante. Manter os prazos e o nível de produtividade acadêmica com uma filha recém-nascida foi muito difícil, em alguns momentos, impossível.
Ana Carolina Coelho – O que você considera que precisa mudar em relação à Universidades brasileiras e o acesso e permanência das discentes mães?
Vanessa Clemente – Atualmente temos um sistema de leis ineficiente e uma ausência do Estado nos debates e avanços sobre a temática “Maternidade e permanência estudantil no ambiente universitário” que intensificam a exclusão e a construção de um ambiente que reflete a sociedade patriarcal, misógina, machista, heteronormativa, capacitista e racista dentro da academia. Mais do que possibilitar o acesso das mulheres mães ao ambiente universitário, é necessário garantir a permanência. Enquanto o Brasil não consegue mudar a realidade das mães, é fundamental que se discutam a criação de leis que sejam efetivas, editais diferenciados para que mães possam acessar cursos universitários mais concorridos e concorrer a vagas em Programas de Pós-Graduação Nacionais e Internacionais, ampliação do auxílio creche e criação de creches com vagas que considere a realidade de pais que só podem estudar no período noturno e que não tem rede de apoio, eventos científicos que tenham espaço kids e que discutam o acesso, permanência, assédio, discriminação, saúde mental, mercado de trabalho e ambiente universitário, fraldários, restaurante universitários que permitam a entrada e alimentação das mães com seus filhos (as), banheiros família, uma sala específica para que cada universidade Brasileira possa ter um Coletivo de Mães com uma estrutura para amamentação, banho e alimentação das crianças junto aos seus pais, ampliação da licença-maternidade e paternidade e criação de ouvidorias nas universidades para que as mães sintam-se mais protegidas ao denunciarem qualquer tipo de discriminação e assédio que envolva a sua realidade de maternagem no ambiente acadêmico.
Ana Carolina Coelho – Como historiadora, o que você considera que houve de transformação histórica na luta materna nos últimos anos?
Vanessa Clemente – Sim, durante a pandemia, o debate acerca da luta pelo acesso e permanência de mulheres mães no ambiente universitário intensificou-se diante do contesto de desigualdades, alto índice de desemprego materno, sobrecarga e evasão no ensino universitário. É importante pensarmos sobre o conceito de evasão utilizado para se referir a desistência das mulheres mães dos cursos de graduação e pós-graduação, pois muitas vezes a desistência se dá justamente pela ausência de políticas públicas, estruturas físicas e psicológicas e um ambiente equitativo. É como se a estrutura na qual se funda o ambiente universitário dissesse a todo instante qual é o lugar da mulher mãe, e esse lugar não é ali. Há uma invisibilidade e apagamento desses grupos no meio científico.
Buscando visibilidade, várias estratégias estão sendo adotadas pelas mães brasileiras, dentre elas as redes sociais que aliadas aos novos recursos tecnológicos têm facilitado a comunicação entre mães discentes e docentes de várias regiões do Brasil, de tal modo que vários coletivos maternos e grupos de pesquisas foram criados nos últimos cinco anos intensificando ações regionais e nacional. Dentre eles, destacam-se o Parent In Science, o GT Mulheres na Ciência (UFF), o GT Mulheres Cientistas e Maternidades Plurais (FH/UFG), o Núcleo Materna (UFRJ), o Núcleo Interseccional em Estudos da Maternidade (NIEM/UFF), o projeto de extensão Maternagem, Mídia e Infância (MMI/UEPE) e o Coletivo Nacional de Mães na Universidade.
Ana Carolina Coelho – “Ser mãe” é uma construção social e histórica. O que essa afirmação significa nos dias atuais?
Vanessa Clemente – A história da maternidade está cruzada com as questões sociais, culturais, políticas, bem como com a história coletiva e individual. O relacionamento entre mães e filhos (as), sofreram alterações ao longo da história assim como os conceitos formulados em torno dessa relação, tal como a ideia de maternidade e maternagem. Pesquisas recentes (Solange Maria Sobottka Rolim de Moura e Mari de Fátima Araújo) mostram que o discurso médico, por meio da medicina e da psicologia, foi fundamental para a naturalização de conceitos e práticas relacionadas à maternidade e o discurso econômico e liberal foi importante para a modificação da atitude da mãe diante do (a) filho (a), reforçando a ideia de que a mulher deveria se ocupar com os cuidados da família.
Durante o século XIX, a devoção da mãe e a vigilância dos filhos aparecem como valores necessário para a preservação da criança. Há uma valorização da figura mulher-mãe no espaço doméstico de modo que coloca o (a) filho (a) como objeto da atenção materna vinculado à ideia de sacrifício. Sem conseguir cumprir os ideais que lhes foram impostos, a mulher sente culpa na medida em que acredita que está contrariando a sua natureza de ser mãe.
As constituições familiares europeias estão relacionadas a formação e organização dos Estados Nacionais Modernos e dos ideais iluministas, tal como o liberalismo econômico. Entretanto, quando pensamos nas ideias de maternidade e família no Brasil, para além das influências europeias, somam-se as culturas indígenas e africanas, ou seja, as constituições e composições familiares no Brasil possuem características específicas de uma país miscigenado, constituído por diversas culturas, marcado pela desigualdade e preconceitos raciais, e por isso a maternidade e cuidados maternos devem ser pensados a partir dessas especificidades. Nesse sentido, as estruturas familiares e suas formas de integração estão relacionadas a estrutura da colonização moderna que deu características regionais e múltiplas a família colonial, e que deixou como herança o modelo patriarcal.
Em 2020, o contexto pandêmico escancarou o modelo patriarcal por meio da exploração das mulheres mães na qual atividades relacionadas ao cuidado são majoritariamente vistas como parte integrante da ideia de “natureza feminina”.
Ana Carolina Coelho – O que eu não perguntei que você gostaria de falar nessa nossa conversa?
Vanessa Clemente – “Não sou mãe ou pai, como posso ajudar?” O debate sobre cuidado não precisa ficar restrito somente ao universo das pessoas que exercem função de cuidado. Você pode ajudar pesquisando a temática, defendendo os direitos maternos e paternos no Brasil, tendo empatia e respeito pelo próximo e promovendo a construção de um ambiente universitário que seja de fato acolhedor, equitativo e plural.