Agora podem dirigir, mas caminho da liberdade para mulheres sauditas ainda é longo

14 outubro 2017 às 10h30

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Situação econômica da Arábia Saudita está obrigando a integração delas à força de trabalho

Uma semana antes da Arábia Saudita anunciar que, a partir de junho do ano que vem, as mulheres poderão dirigir, o tema estava em discussão no canal de maior audiência do reino. Na bancada, um clérigo saudita explicava porque ele era radicalmente contra a permissão das mulheres ao volante. “Quando uma mulher dirige, sua região pélvica fica em constante vibração e isso faz com que os ovários sejam pressionados. É por esta razão que as mulheres ocidentais conseguem parir apenas dois ou três filhos”, disse o religioso, que ainda complementou: “as mulheres que dirigem podem sofrer vários danos à saúde que podem comprometer até o planejamento familiar”.
Enquanto isso, um estudo oficial sobre a questão, realizado por um professor e também conselheiro do rei afirmava que nos países onde as mulheres podem dirigir, todas estão expostas à prostituição, o mundo das drogas e o adultério. Já em países em que elas estão proibidas de conduzir um veículo, todas estão protegidas e, por isso, menos expostas aos “perigos” do mundo. O conselheiro real só esqueceu de lembrar ao rei que o único país do planeta onde as mulheres não dirigem é a Arábia Saudita.
Nos últimos 20 anos, as mulheres travam uma batalha injusta contra o reino saudita. Muitas já foram presas e até mesmo ameaçadas por outros cidadãos furiosos, que não admitem que elas se atrevam a desobedecer normas sociais há muito estabelecidas. Mesmo assim, não foram dissuadidas nem quando uma delas recebeu uma punição mais pesada. Em 2011, a ativista Manal al-Sharif liderou uma campanha que viralizou na internet. Em um vídeo ela aparecia dirigindo em Ryad, e explicava em inglês um dos absurdos a que as mulheres sauditas são impostas. Ela foi presa e condenada. Mas a campanha atraiu milhares de pessoas, homens e mulheres, no próprio país, que se mostraram a favor da mulher no volante. E foi a partir daí que a sociedade saudita provou que estava preparada para a mudança.
O momento em que as trasformações chegam às areias do deserto saudita também não é uma mera coincidência. Durante décadas, a família real sempre se preocupou com o potencial de reação do establishment religioso, sempre entrincheirado em sua política discriminatória contras as mulheres. Só que em contraste com o passado, quando o interesse religioso estava acima dos do Estado, a atual situação econômica está naturalmente forçando o país e suas lideranças a tomar decisões difíceis, mas necessárias à sobrevivência do reino.
O Vision 2030, plano econômico lançado no ano passado, e que pretenede colocar a Arábia Saudita nos trilhos do século 21, já começou a dar resultados. A prioridade do país é reduzir a dependência econômica atrelada ao petróleo e diversificar, se reinventar. Só que para isso, vai precisar de mão de obra, e é aí que elas entram.
As lideranças sauditas recentemente reconheceram que é a força de trabalho das mulheres que vai pavimentar o caminho para uma nova era. Mas esse desejo esbarra em barreiras culturais e religiosas, seculares, que sempre impediram a integração feminina no mercado de trabalho. A ala mais conservadora alega que isso poderia causar mudanças irreversíveis nos códigos de conduta da sociedade saudita. Mas como o orçamento doméstico passou a ficar pesado no bolso dos homens, a sociedade passou a entender que é hora de integrar as mulheres à força de trabalho.
Só que país onde o transporte público não existe, onde as mulheres são proibidas de entrar num táxi sozinhas, e onde contratar um motorista fica ainda mais caro, a decisão nacional de permitir que elas possam trabalhar e se movimentar livremente deve ser o próximo passo, que deverá causar muita discussão.
Todas essas mudanças são lideradas por uma única personalidade: o filho do rei Salman, Mohamed, que na prática já é a maior autoridade na condução do país. A decisão histórica foi dele, que já provou estar preparado para enfrentar forças internas e externas que tentam minar suas reformas.
As manifestações e celebrações dentro e fora do reino, e nas redes socias, animaram forças liberais que tentam encontrar brechas que possam modificar a triste realidade das mulheres na Arábia Saudita. Só que muitas ainda acreditam que tudo o que está acontecendo ainda é uma ilusão. E talvez até seja. Enquanto as mulheres sauditas forem vistas como criaturas, que precisam ser tratadas e protegidas como uma criança que não consegue distinguir entre o certo e o errado, que precisa da aprovação de algum parente do sexo masculino para tomar qualquer decisão, então essa batalha já está perdida.