A equipe de Seth Flaxman, do Imperial College London, sustenta que o lockdown evitou 690 mil mortes na França e 630 mil mortes na Itália

Bill Gates, criador da Microsoft, e Angela Merkel, chanceler da Alemanha: previsões sobre pandemias bem antes do novo coronavírus | Foto: Reprodução

Em artigo publicado no Jornal Opção de 21 a 27 de junho de 2020 comentamos os trágicos desenvolvimentos no Norte da Itália provocados pelo coronavírus. Referimo-nos outrossim ao relapso manejo das ocorrências em Ischgl, nos Alpes da Áustria, que está sendo vista na Europa como o principal foco difusor. Quem fala de Ischgl, pronuncia a palavra com visível desprezo. Certo ou errado? É o que analisaremos, além de outros itens.

As negligências em Ischgl culminaram com a decisão do governo austríaco em cerrar as fronteiras com a Itália e países vizinhos: Suíça, Alemanha, República Tcheca, Hungria, Eslovênia e Eslováquia. Com tal medida, contrária ao Acordo de Schengen, a Áustria isolou-se — permitindo passagem apenas para víveres, produtos vitais e assuntos pessoais de emergência. O baixo número de vítimas no país fala a favor dessa decisão.

Apesar dos rigorosos controles nas fronteiras, o coronavírus ultrapassou os Alpes em direção ao norte, e chegou à Alemanha, geograficamente o centro da Europa. Sabe-se que cerca de 50% dos milhares turistas que passaram o fim do ano em Ischgl eram alemães. Explica-se, desta forma, a disseminação na Alemanha, onde o primeiro foco maciço de infecções ocorreu em Heinsberg, pequena cidade com 42 mil habitantes, no noroeste do país, junto à fronteira com a Holanda. Em seguida a Baviera, que faz divisa com a Áustria, também foi fortemente atingida.

Em 15 de fevereiro, época ainda fria do ano, realizou-se em Heinsberg uma festa de carnaval, em ambiente cerrado, com cerca de 300 pessoas entre as quais um casal portador do vírus. Tal festa é vista como disseminadora do vírus em Heinsberg — onde o número de pessoas infeccionadas em poucos dias tornou-se alarmante. A mídia internacional comentou os acontecimentos e Heinsberg tornou-se a “Wuhan da Alemanha”. Lá, em 9 de março, foram registrados os dois primeiros óbitos.

Seth Flaxman, cientista: o lockdown evitou a morte de 690 mil pessoas na França, 630 mil na Itália, 560 mil na Alemanha e 34 mil na Suécia | Foto: Reprodução

Isso, no entanto, ainda não explica a disseminação pelos demais países europeus. Segundo fatos hoje conhecidos, pode-se concluir que cada país tem sua própria história com respeito a “importação” ou a “imigração” do coronavírus. Virologistas conseguiram, por meio dos primeiros pacientes registrados, encontrar o caminho regressivo ao foco do qual partiram as contaminações.

Na França, país intensamente atingido, os primeiros casos de infecção e óbitos já foram registrados em janeiro de 2020, isto é, um mês antes dos ocorridos na Itália, Áustria e Alemanha. As primeiras ocorrências foram notadas na Alsácia e na região Île-de-France. Em meados de abril, a enfermidade já se propagara por toda a França.

França, Grã-Bretanha, Itália e Espanha somam o maior número de vítimas na Europa. Os casos da Alsácia, região fronteiriça com o sudoeste da Alemanha com substancial intercâmbio bilateral, alarmaram as autoridades em Berlim.

Muitas infecções na França têm origem num encontro de quatro dias de 2 mil pessoas, crentes da igreja livre evangélica Église Porte ouverte chrétienne, realizado em meados de fevereiro em Mulhouse, na Alsácia. Ao mesmo tempo houve contatos entre franceses e pessoas da Lombardia e turistas chineses com franceses.

A França, não a Itália, foi o primeiro país no qual o vírus SARS-CoV-2 foi registrado na Europa e o primeiro país, fora da Ásia, com vítimas fatais. Já em fins de janeiro de 2020 foram diagnosticados três pacientes com a Covid-19 — um dos quais faleceu em 15 de fevereiro. A vítima: um turista octogenário chinês. Na maioria dos países europeus a contaminação efetuou-se não por um, mas por vários canais.

Solomon Hsiang, cientista: lockdown evitou a morte de 530 milhões de pessoas em seis países pesquisados | Foto: Reprodução

A multiplicidade de canais contaminadores é mais evidente na difusão da pandemia na Espanha, outro país severamente atingido. Segundo o Instituto de Salud Carlos III (ISCIII) de Madrid, o coronavírus chegou à Espanha no mínimo por quinze vias e propagou-se pelo país já em princípios de fevereiro. A afirmação está em oposição às informações de Fernando Simón, coordenador para assuntos emergenciais do Ministério da Saúde, que, em 23 de fevereiro, declarou “não existir nenhum caso no país”.

Aparentemente, Simón ignorou as advertências da Itália — onde um jogo de futebol entre o Atalanta e o Valência em 19 de fevereiro, no Estádio San Siro de Milão, é visto como uma das origens da pandemia no país ibérico. Mais de 2500 torcedores do FC Valência assistiram ao jogo em Milão. Desta forma a metrópole italiana, entre outras fontes, contribuiu na propagação do coronavírus na Península Ibérica.

Esses exemplos dão-nos uma ideia de como as vias da disseminação foram e podem ser tortuosas. Perscrutar a “imigração” do vírus nos demais países europeus ultrapassaria os limites desta coluna. Há outros tópicos de relevância e alguns até surpreendentes em relação ao sinistro vírus que mantém o mundo numa camisa de força. Eis alguns exemplos:

Em 20 de maio de 2017 Angela Merkel, chanceler da Alemanha, em encontro com os ministros de saúde dos países do G20 em Berlim, advertiu sobre o “perigo de uma pandemia em qualquer lugar do mundo que poderia disseminar-se e causar enormes problemas à economia mundial. Juntos teremos que aplicar todos os meios para evitar que isto aconteça”.

Dois anos antes da advertência de Angela Merkel, em maio de 2015, na Ted-Talks (conferência anual sobre inovações em Monterey, Califórnia), Bill Gates observou, em sua dissertação verbal: “Se existe algo que nas próximas décadas poderá custar a vida de mais de 10 milhões de pessoas, possivelmente será um vírus altamente contagioso, em vez de uma guerra. Investimos enormes somas na intimidação nuclear, mas muito pouco num sistema que poderia evitar uma epidemia. De modo algum estamos preparados para tal”.

Anthony Fauci, renomado virologista americano, conselheiro do presidente Donald Trump, há anos vem advertindo sobre a possibilidade de uma pandemia.

As observações de Angela Merkel, Bill Gates, Anthony Fauci e outros incitam a pensar e, parafraseando o escritor colombiano Gabriel García Márquez, poderíamos concluir que tudo o que vivenciamos nestes dias poderia muito bem ser a “Crônica de uma Catástrofe Anunciada”.

O coronavírus percorreu seu caminho pela Europa. Os países europeus, sem exceção, tomaram as medidas já adotadas pela Áustria: fecharam as fronteiras. O Acordo de Schengen foi engavetado, pelo menos temporariamente, sem que o acordo em si encerrasse uma cláusula para tal. E Ischgl? Foi, sem dúvida, um foco substancial. Mas não se pode afirmar que tenha sido o pivô de tudo.

A maioria dos governos dos países europeus (exceção foi a Suécia) agiram com rapidez em tomar as medidas restritivas conhecidas para evitar o pior: isolamento, distanciamento social, fechamento de escolas, teatros, cinemas, restaurantes, academias de ginástica, paralisação do comércio, esporte — afinal tudo mais que temos vivido. Uma vivência nunca antes experimentada nesta nossa geração após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Muito foi discutido acerca das vantagens e desvantagens das medidas restritivas que foram rígidas em alguns países e mais brandas em outros. De pessoas envolvidas nas decisões sabemos que a procura para a solução do problema que se apresentava foi extremamente difícil, pois cabia escolher entre salvar vidas ou salvar a economia. Nas duas opções encravou-se uma terceira, de fundo moral e ético. A Europa optou pela terceira, decidiu pelo lockdown e salvou vidas, ciente da parcial destruição econômica de proporções abismais cuja recuperação talvez leve uma década ou até mais.

Segundo um estudo da equipe de Seth Flaxman, do Imperial College London, uma das mais renomadas instituições científicas do mundo, publicado recentemente na revista “Nature”, o lockdown foi medida absolutamente certa. Seth Flaxman analisou a pandemia em onze países europeus. Sua análise estima que nos países analisados o lockdown evitou a morte de 3,1 milhões de pessoas até princípios de maio passado.  Alguns exemplos: só na França seriam 690.000; na Itália 630.000; na Alemanha 560.000 e na Suécia 34.000.

Semelhante estudo, publicado na “Nature” e feito pela equipe de Solomon Hsiang, da University of California em Berkeley (USA), analisou a pandemia em seis países: China, Coreia do Sul, Itália, Irã, França e Estados Unidos.

Solomon Hsiang considerou 1.717 fatores que contribuíram para reduzir o índice de contágio. O resultado de sua pesquisa estima que, até abril passado, o lockdown evitou a morte de 530 milhões de pessoas nos seis países analisados. Ambos os estudos talvez sirvam para terminar com as infindáveis discussões sobre as vantagens ou desvantagens do lockdown.

Os europeus, com exceções, não demonstram descontentamento em relação às medidas restritivas adotados por seus governos. Segundo o Eurobarômetro (pesquisas de opinião pública realizadas regularmente por encargo da Comissão Europeia desde 1973), entre 75 e 100% da população da Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Holanda, Áustria, Grécia e Portugal concordam com as medidas restritivas; na Suécia,  Alemanha e Croácia a concordância se situa entre 60 e 75%; na Bélgica, Itália e Romênia a concordância fica entre 50 e 59%. N fim da escala encontram-se os espanhóis, franceses, poloneses, húngaros e búlgaros — entre 0 e 49%.

O coronavírus continua a incomodar. Ainda não é hora de dar a guerra por vencida. O receio de uma segunda onda paira no ar. Indícios registrados em Pequim, Israel e no norte da Alemanha, onde grandes frigoríficos estão sendo fonte de graves preocupações, demonstram que a continuação das medidas de segurança é estritamente necessária.

Uma pergunta paira no ar: por que alguns países conseguiram melhores resultados do que outros?