O complô político contra uma conquista histórica da sociedade brasileira

15 fevereiro 2025 às 21h20

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No início deste mês, o debate em torno da alteração da Lei da Ficha Limpa ganhou atenção do Congresso Nacional, especificamente, a dedicação relevante de um grupo de deputados de extrema-direita alinhado ao bolsonarismo. A pauta, agora, é encabeçada pelo projeto de lei do deputado federal Bibo Nunes (PL-RS) e tenta alterar a lei reduzindo o período de inelegibilidade de oito anos para apenas dois anos. A mudança acabaria por beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro, que foi condenado à inelegibilidade por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação por utilizar o aparato público para favorecer a si mesmo no processo eleitoral de 2022. O que motivou a ação foi a reunião de Bolsonaro com embaixadores de países estrangeiros no Palácio da Alvorada, no dia 18 de julho de 2022, bem como sua ampla divulgação, pela TV Brasil e suas redes sociais.
A Lei da Ficha Limpa é importante por conta do processo legislativo que a originou. Ela foi um dos poucos projetos de lei que chegaram ao Congresso nacional pela força popular. O texto teve o apoio de mais de um milhão de brasileiros a partir de um esforço montado pelo movimento de combate à corrupção eleitoral e que também teve uma grande mobilização da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O projeto foi aprovado, sancionado e teve a sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A relevância da Lei da Ficha Limpa é inquestionável do ponto de vista de tornar o processo eleitoral melhor e mais eficiente no sentido de garantir candidaturas mais legítimas.
As eleições de 2012, pleito que elegeu prefeitos e vereadores naquele ano, foi a primeira em que a Lei da Ficha Limpa foi aplicada. A Justiça Eleitoral julgou milhares de processos referentes a candidatos apontados como inelegíveis de acordo com a lei. Ao analisar os pedidos de candidatura relativos às Eleições de 2012, a Justiça Eleitoral, com base na norma, impediu que pelo menos 868 candidatos aos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador se candidatassem naquele pleito.
Dos 7.781 processos sobre registros de candidatura relativos às Eleições daquele ano que chegaram ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 3.366 tratavam da aplicação da Lei da Ficha Limpa, o que corresponde a 43% do total.
Um exemplo recente de grande repercussão da aplicação da Lei da Ficha Limpa foi o caso do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos), eleito pelo Paraná. Ele teve seu registro de candidatura cassado por unanimidade pelo colegiado de ministros do TSE. Dallagnol estava ocupando o cargo no Ministério Público e pediu exoneração em novembro de 2021. Paralelamente, 145 procedimentos administrativos contra ele estavam sendo analisados. Se alguma dessas investigações internas fosse convertida em Processo Administrativo Disciplinar, ele estaria sujeito à perda do cargo ou aposentadoria compulsória.
As punições inviabilizaram sua candidatura como deputado no ano seguinte. No julgamento, o TSE entendeu que o pedido de exoneração seria uma forma de contornar a lei, uma vez que depois do pedido, os processos foram arquivados. O TSE considerou que, se esses tivessem prosseguimento, Dallagnon seria considerado inelegível. O primeiro caso da aplicação da lei foi em 2012, quando o então senador Demóstenes Torres foi enquadrado após ter seu mandato cassado pela comissão de ética do Senado.
O eleitor tem a legitimidade absoluta para fazer a escolha de um candidato, porém é importante saber em que condições está sendo feita essa escolha, como por exemplo, qual o nível de informação disponível para ele, quais são os mecanismos de abuso de poder econômico e político que interferem nessas escolhas.
E as emendas no meio disso?
A eleição municipal de 2024 mostrou o poder das emendas parlamentares do Congresso Nacional. De acordo com o levantamento do jornal Folha de S. Paulo, 98% dos prefeitos mais turbinados com emendas parlamentares conseguiram se reeleger. O surgimento do orçamento secreto, através das emendas apelidadas de emendas PIX, de transferência direta e sem transparência, resultou na distribuição de mais de R$ 80 bilhões para as 5.569 cidades brasileiras desde o início das gestões (entre os anos de 2021 e 2024).
A Operação Overclean, deflagrada em dezembro do ano passado pela Polícia Federal, Ministério Público Federal, Receita Federal e Controladoria-Geral da União apurava uma organização criminosa suspeita de fraudes licitatórias, desvios de recursos públicos, corrupção, lavagem de dinheiro e que movimentou cerca de R$ 1,4 bilhão. Parte desse valor era proveniente de emendas parlamentares e contratos firmados com empresas públicas no ano passado. As ações da operação se concentraram na Bahia e em Brasília e envolvia superfaturamentos firmados com o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).
Investigação de desvios de dinheiro também usando emendas parlamentares no Maranhão tiveram como alvo três deputados do PL. Josimar Maranhãozinho, o deputado Pastor Gil e o ex-deputado Bosco Costa, todos do PL, utilizavam emendas parlamentares a que tinham direito para desviar parte dos valores para os próprios bolsos. Eles contavam com assessores parlamentares e comparsas nos municípios para azeitar a máquina do esquema. Nos primeiros meses de 2020, por exemplo, a trinca de deputados fechou o cerco contra o prefeito do município de São José do Ribamar, no Maranhão. Em troca de receber pouco mais de 6,6 milhões de reais em emendas, o político foi pressionado a devolver 1,66 milhão de reais, o equivalente a 25% do montante, em benefício dos próprios deputados.
Tendo casos como esses, explícitos de corrupção, fica nítida a importância da Lei da Ficha Limpa. O deputado Bibo Nunes, autor do projeto que modifica o texto atual, justifica que existe uma incerteza e uma insegurança jurídica na interpretação da Lei da Ficha Limpa. Nos argumentos, ele lista alguns julgamentos na tentativa de criar um quadro de que a Justiça interpreta de formas diferentes, às vezes dando três anos e outras dando oito anos de inelegibilidade. Porém, os julgamentos que ele exemplifica são anteriores à Lei da Ficha Limpa. Desta forma, é natural que as decisões da Justiça fossem outras. Já depois da Ficha Limpa o que se vê é uma uniformidade nas decisões do Judiciário.
A aplicação da inelegibilidade por oito anos garante que haverá impacto do resultado desse impedimento. Se houver a redução do período de inelegibilidade para dois anos, podemos supor que um deputado federal, por exemplo, que foi condenado ele vai poder concorrer novamente quatro anos depois ao mesmo cargo. Por óbvio, dois anos de inelegibilidade não terão nenhum efeito prático para o ambiente político. Esse argumento anula qualquer efetividade da lei que surgiu para punir o corruptor com uma pena que realmente traz um impacto concreto para o ambiente político.
Lei persecutória ou justa?
A Lei da Ficha Limpa já foi muito criticada pela esquerda anos atrás, mas agora está na mira da extrema-direita e do bolsonarismo. O ex-presidente Jair Bolsonaro disse recentemente que a lei só serve para perseguir a direita, e um aliado dele chamou o texto de “imbecilidade de esquerda”. A pauta anticorrupção já mobilizou a direita há cerca de 10 anos atrás e mobilizou também integrantes do bolsonarismo. Hoje ainda se faz uma mobilização mais isolada, mas o que é mais nítido é um alinhamento entre muitos interesses políticos contra legislações como esta que serve de barreira para o retorno de agentes corruptos aos parlamentos dos municípios, estados e também ao Congresso Nacional.
Curioso é saber que o próprio ex-presidente Bolsonaro e também seus filhos já defenderam a Lei da Ficha Limpa, inclusive o próprio Bolsonaro, em 2010, votou a favor da Lei da Ficha Limpa na Câmara dos Deputados. E durante o seu governo, os critérios da Ficha Limpa foram aplicados na contratação de funcionários do Governo Federal.
Do outro lado, a esquerda também já criticou muito o texto quando se discutia a inelegibilidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No final, o que se vê é um movimento classista unido, tanto a direita quanto a esquerda, com o objetivo de acabar com os obstáculos ao retorno ao poder de pessoas que foram condenadas por atos de corrupção e outras irregularidades.
O que mais preocupa diante deste cenário é a desmobilização da sociedade com a defesa de uma lei popular proposta pela sociedade civil organizada e avalizada por milhões de pessoas, e que é uma conquista de todos os brasileiros.
O Jornal Opção mostrou, nessa quinta-feira, 11, que o Brasil caiu no Índice de Percepção da Corrupção (IPC) de 2024, medido pela Transparência Internacional, e atingiu a pior colocação da série histórica. O índice analisa a percepção de especialistas com relação à corrupção no setor público de 180 países por metodologia permanente.
O relatório lista países por meio de pontuação que vai de 0 a 100. Quanto menor a pontuação, pior a percepção de corrupção. Em 2024, o Brasil recebeu 34 pontos, abaixo até mesmo da média para as Américas (42 pontos) e para o Mundo (43 pontos).
Guilherme France, um dos autores do relatório da Transparência Internacional, explicou como é medido o ranking. “A corrupção é muito difícil de medir por se tratar de um fenômeno oculto. A que costumamos ver na imprensa é justamente a que não deu certo, e foi identificada. O ranking mede a percepção de especialistas e, por ter uma metodologia permanente, é possível avaliar, também, a evolução histórica e comparar países”, disse.
De acordo com o relatório, diversos fatores contribuíram para a queda do Brasil no ranking. Entre eles estão o silêncio do Presidente Lula sobre a pauta anticorrupção; renegociação de acordos de leniência para beneficiar empresas envolvidas em macrocorrupção; manutenção no cargo do Ministro das Comunicações, Juscelino Filho, indiciado por organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção passiva; percepção de crescente ingerência política na Petrobras; reiteradas negativas do Governo a pedidos de acesso à informação; falta de avanço em propostas legislativas de potencial impacto positivo sobre a agenda anticorrupção brasileira entre outros.
Em Goiânia, particularmente, essa sensação de aumento da percepção da corrupção e da impunidade é latente mesmo após o fim da última gestão comandada pelo ex-prefeito Rogério Cruz (Solidariedade). No decorrer dos quatro anos de mandato, o que se viu foi o caos na coleta de lixo, na educação, com crianças dormindo no chão em Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI) e também o caos na saúde com a paralisação dos serviços do Sistema de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), além da precariedade da estrutural das unidades de saúde municipais e da gestão de saúde que custou a vida de seis pessoas à espera de um leito de UTI.
Duas operações da Polícia Civil foram deflagradas, uma delas a Endrôminas, que apurava crimes de fraude em licitações, modificação irregular de contratos, peculato, constituição de organização criminosa, corrupção ativa e passiva. O inquérito da investigação foi vazado para imprensa no mesmo dia em que a Prefeitura de Goiânia amanheceu com agentes da polícia cumprindo mandados de busca e apreensão. Outra investigação culminou na Operação Transata, que apurava crimes de fraude em licitações e contratos, corrupção ativa, corrupção passiva, constituição de organização criminosa e lavagem de dinheiro.
Entre os investigados estão o atual secretário da Seinfra, Denes Pereira Alves, e ex-secretário de administração e o ex-superintendente de obras e infraestrutura da pasta, além de um pregoeiro da Secretaria Municipal de Administração (Semad). Há indícios que os investigados, agindo no âmbito de suas atribuições, teriam viabilizado as contratações em benefício das empresas Goiás Led Materiais Elétricos e Construção Ltda, Elétrica Luz Comercial de Materiais Elétricos Ltda, e Elétrica Radiante Materiais Elétricos Ltda, que pertencem a um mesmo grupo empresarial sediado em Goiânia, no qual, se encontra registrado em nome de funcionários. Segundo a PC, a Justiça determinou a suspensão de sete contratos da Prefeitura de Goiânia celebrados com as empresas investigadas. Até o momento, nenhum dos dois inquéritos foi finalizado ou encaminhado para o Poder Judiciário. Logo, não há acusações formais e, tampouco, qualquer condenação.
Alterar a Lei da Ficha Limpa da forma como está sendo proposto pelo projeto de lei vai aumentar mais o nível de percepção de corrupção e também a sensação de impunidade que afeta diretamente a população, que não vê o retorno dos impostos no dia a dia e também não vê a atuação do Legislativo e/ou Executivo direcionado à sociedade.