“Aqui jaz o corpo apenas
Do marquês de Maricá:
Quem quiser saber-lhe da alma
Nos seus livros a achará.”

Augusto Costa do Nascimento parou do outro lado da porta da lanchonete em que eu e minha amiga Ângela Lobo estávamos tomando café. Isso na manhã de segunda-feira, 24. Sua cadeira de rodas estava repleta de sacos plásticos com material reciclável. Sua parada foi justamente para verificar se havia algum produto aproveitável nos sacos de lixo ao lado do tronco de uma sibipiruna.

Augusto Costa: recolhendo lixo reciclável | Foto: Sinésio Dioliveira

Ângela e eu falávamos de uma máxima específica do Marquês de Maricá, cujo nome verdadeiro é Mariano José Pereira da Fonseca (1773-1848), que foi ministro da Fazenda, senador, antiescravagista. Era formado em filosofia e matemática pela Universidade de Coimbra. Ficou três anos de cana por suposto envolvimento na Inconfidência Mineira, que pegou Tiradentes para Cristo: além de enforcado, teve seu corpo esquartejado em quatro partes.

Essa máxima é a 91 — “A ambição sujeita os homens a maior servilismo do que a fome e a pobreza” —, conforme consta na edição “Máximas, Pensamentos e Reflexões do Marquês de Maricá”, lançada em 1958 pela Fundação Casa de Rui Barbosa, a qual está disponível gratuitamente na Internet e possui 4188 frases e há no seu final até um epitáfio, que usei como epígrafe desta crônica, insípida como chupar laranja depois de escovar os dentes. Em vida, Maricá já as tinha publicado em coletâneas.

Augusto Costa: malabarismo para sobreviver | Foto: Sinésio Dioliveira

Do servilismo inerente à ambição, nosso assunto deu um salto longo para trás e caímos nas palavras de Nicolau Maquiavel e Erasmo de Roterdã sobre os bajuladores, alguns até com doutorado em mestria do servilismo. Ambos, numa diferença de três, definiram os bajuladores como “praga”.

Maquiavel foi o primeiro, o que consta em seu famoso livro “O Príncipe”, terminado em 1513 e lançado em 1532, cinco anos após a morte do autor, que então se encontrava comendo o pão amassado pelo rabo do diabo e quilometricamente afastado do poder. O livro é uma espécie de manual de ensinamentos a príncipe em como ser resoluto, dissimulado, sagaz, cruel.

Roterdã, por sua, vez, em “A Educação a um Príncipe Cristão”, disse que bajulador é uma “praga que tem um certo veneno atraente”. Conforme o tempo vai passando e surgindo novos tipos de governo, as pragas vão aprimorando seu servilismo; hoje há muitos que até aprenderam a fazer escova nos pentelhos dos príncipes.

Voltando a Augusto, que é o cerne desse punhado de palavras e mais importante do que filosofadas: sua pobreza é “honrosa (se se pode fizer assim), e ela não lhe permite se sujeitar a nenhum tipo servilismo (o de viver acarrapatado nas entranhas do poder é algo fora da órbita de sua vida). Humilhar-se, usando sua condição de cadeirante para pedir esmola pelas ruas, é algo que ele não é capaz. Tem 57 anos, suas pernas estão imobilizadas, e por isso tem de se locomover numa cadeira de rodas.

Baiano de Camacã, aos 22 anos estava em Ilhéus trabalhando de peão quando um angico de um caminhão cheio de troncos de tal árvore caiu em suas pernas. Na época, recebeu ajuda para ir a Brasília em busca de tratamento no Hospital Sarah Kubitschek. Houve muitas idas ao hospital, até que numa delas conseguiu ser atendido. Mas o essencial não aconteceu: ele voltar a andar. Suas pernas do joelho para baixo são bem finas.

Num período de dois anos em que viveu em Brasília, a cabeça de Augusto serviu de morada ao diabo: consumia droga o dia inteiro. “Eu estava mergulhado no inferno, fui preso por alguns meses ao ser encontrado com duas latinhas de merla”, diz. O policial que o prendeu queria por tudo o nome do vendedor da droga, mas Augusto preferiu ir para a cadeia, pois, se revelasse a origem da droga, seria morto. Em 1996 veio para Goiânia. Da mesma maneira que o encontrei da primeira vez, isso em 2012, aconteceu em nosso segundo encontro: ele com sua cadeira de rodas carregada de materiais recicláveis.

Deixei Ângela na mesa e fui até Augusto. Conversamos alguns instantes. Após relatar-lhe como se deu nosso primeiro encontro (na porta de um bar no Setor Bueno recolhendo algumas latinhas de alumínio na lixeira), ele se lembrou de mim. Quando o vi manobrando sua cadeira para acomodar o material reciclável, fiquei admirado com sua ação de sacrifício para sobreviver. Eu estava num lado da avenida, fiz contorno e fui até ele: “Cara, desculpa por me dirigir a você, mas seu gesto me comoveu, pois você poderia estar num sinaleiro ou numa esquina pedindo esmola (coisa que muita gente sã faz) e, em vez disso, está trabalhando”. Sua resposta foi simples: “Minha honra não me deixa pedir esmolas, enquanto eu tiver força, vou fazendo assim para sobreviver”.

Nos despedimos, e Augusto prosseguiu em seu caminho com a cadeira de roda repleta de material reciclável e ouvindo uma música sertaneja de raiz num rádio pequeno sobre suas pernas, envolto num pano encardido. Mas, antes de partir e ligar seu rádio, me disse confiar muito em Deus e me disse o Salmo 91 na íntegra. Apesar das pernas imobilizadas, Augusto certamente encontrará uma maneira de pisar o leão e a cobra… Voltei à mesa e contei a Ângela quem era a pessoa com a qual conversei.

Sinésio Dioliveira é jornalista