A mulher cantada por Marília Mendonça tem voz, libela, protesta, desabafa! Ela vaticina o fim inglório do amante infiel e sua decepção iminente – no mínimo o abandono que ele receberá pela traição e mal infligidos à não-amada

Primeira vez que ouvi a jovem cantora e compositora Marília Mendonça, nascida Marília Dias Mendonça (1995-2021) e tomei conhecimento do neologismo “sofrência” – há cerca de cinco anos – se deu por apresentação de uma amiga, que fora casada com o pai da artista, Mário “Melão” Mendonça, com quem convivi em Palmeiras de Goiás, 1992, durante as eleições municipais daquele ano. Antes do nascimento da artista, portanto, que aconteceria tempos depois, em Cristianópolis, GO, fruto de outro casamento de seu genitor.

Após ouvir meia dezena de músicas de sua autoria, considerei “Sofrência” inadequado para sintetizar o estilo de composição a ela atribuído. De pronto associei o termo a Dolores Duran, que seria, ela sim, a “rainha da sofrência” se o vocábulo existisse há setenta anos. Sem subtrair o título mercadológico que consagrou a talentosa compositora goiana, “sofrência” tem viés negativo, aplicado a mulheres subjugadas, oprimidas, traídas e sem reação. Não é o caso do eu-lírico de Marília Mendonça, nem das personagens de suas canções.

Tanto em composições próprias, quanto em canções de outros compositores por ela interpretadas, a mulher de Marília Mendonça tem voz, libela, protesta, desabafa! Houvera apelo poético das palavras e empatia com o público, sua música seria definida como “desforra”, “vingança”, “revide”, “revanche”, “represália” e outras com sentido similar. A mulher cantada por Marília Mendonça não fica na mesa do bar curtindo fossa e bebendo cerveja, lamentando a própria sorte, somente. Ela vaticina o fim inglório do amante infiel e sua decepção iminente – no mínimo o abandono que ele receberá pela traição e mal infligidos à não-amada.

Noel Rosa

A formação etimológica de “sofrência” se dá por aglutinação das palavras “sofrimento” e “carência” (sofrimento + carência = “sofrência”). Esses dois pungentes sentimentos humanos têm suas raízes dentro da Música Popular Brasileira (MPB) no compositor e cantor carioca Noel Rosa (1910-1937), coincidentemente falecido antes de completar 27 anos, como Marília Mendonça.


Em 1930, o “Poeta da Vila” gravou “Gago Apaixonado”, em que um pobre coitado desenvolve deficiência de fala devido à “sofrência” e desprezo da mulher amada: “Mu-mu-mu-mulher em mim fi-fizeste um estrago/ Eu de nervoso to fi-fi-ficando gago/ Não po-posso su-suportar com a cru-crueldade/ Da saudade/ E que-que-que-que maldade/ Vi-vi-vi-vivo sem afa-fa-fago.

E o infeliz continua seu rosário de lamentações: “Tem pe-pe-pena desse mo-moribundo/ Que já vi-vi-vi-vi-vi-virou vagabundo/ Só-só por ter so-so-so-so-sofri-fri-do/ Tu-tu-tu-tu tens o co-coração fi-fi-fingido”.

Entre paródias e marchas carnavalescas, Noel Rosa gravou um índex com dezenas de composições sofrentes: “Mardade de cabocla” (1931), “Mentiras de mulher” (1931), “Pierrô apaixonado” (1935), “Último Desejo” (1937) e a icônica “Dama do Cabaré”, de 1934, em que expressa seu desalento ao descobrir, por carta, o sentimento que lhe devotava Ceci (Juraci Correia de Araújo), seu amor real: “quem é da boemia/ Usa e abusa da diplomacia/ Mas não gosta de ninguém”, anota Ceci em sua missiva.

Uma das mais célebres composições de Noel Rosa faria chorar os sofrentes desse milênio. Em “Três apitos” (1933), o apaixonado amante não correspondido faz plantão na porta da fábrica em busca da atenção da dissimulada mulher: “Quando o apito da fábrica de tecidos/ Vem ferir os meus ouvidos, eu me lembro de você/ Mas você anda sem dúvida bem zangada/ Ou está interessada em fingir que não me vê//”. […] “Você que atende ao apito de uma chaminé de barro/ Por que não atende ao grito tão aflito da buzina do meu carro?//.” E ainda tem que lidar com o ciúme: “Com os meus olhos você lê como eu sofro cruelmente/ Com ciúmes do gerente impertinente que dá ordens a você”.

Noel Rosa, por ser homem, boêmio, irreverente e ter morrido jovem, escapou do estereótipo “dor de cotovelo” que se aplicaria a Lupicínio Rodrigues e Dolores Duran, vinte anos depois, e prontamente assimilado por Marília Mendonça, quase um século após.

Nessa mesma década (1939), Wilson Batista (1913-1968) e Ataulfo Alves (1909-1969) compuseram “Oh! Seu Oscar”, interpretada por Cyro Monteiro, ganhadora do concurso carnavalesco de 1940. Na canção, um sofrente Seu Oscar chega do trabalho e descobre que fora abandonado pela mulher, saudosa da “orgia”, aqui entendido como festança, ou boemia: “Cheguei cansado do trabalho/ Logo a vizinha me falou/ Oh! Seu Oscar/ Tá fazendo meia hora/ Que a sua mulher foi embora// Um bilhete lhe deixou/ (Meu Deus, que horror!)/ O bilhete assim dizia/ Não posso mais, eu quero é viver na orgia”. Como se vê, a gênese da sofrência na MPB é masculina.

Dolores Duran

A também carioca Dolores Duran, nascida Adiléia Silva da Rocha (1930-1959), assim como Marília Mendonça, faleceu jovem, pouco depois de completar vinte e nove anos. Em que pese as diferenças de estilo e as letras poéticas e bem elaboradas de Duran – e as composições simples, coloquiais de Mendonça – a coincidência entre as duas não se limitaram ao sucesso nas vidas artísticas e às mortes precoces. Ambas compunham, tocavam e cantavam, raridade no contexto em que viveram. A primeira debutou em um ambiente em que apenas homens compunham. A segunda, apesar da pouca idade, estreou como compositora aos 15 anos, em um estilo até então reservado ao público masculino: o sertanejo.

As coincidências param por aí. Enquanto Dolores Duran levou ao máximo o conceito de “dor de cotovelo”, Marília Mendonça – apesar de autodenominar-se “rainha da sofrência” – adotou o estilo confrontador (quase vingativo) de Lupicínio Rodrigues, mesmo que não proposital.

Em “Solidão” (1958), Dolores Duran canta a dor de amar e a felicidade inacessível: “Ai, a solidão vai acabar comigo/ Ai, eu já nem sei o que faço e o que digo/ Vivendo na esperança de encontrar/ Um dia um amor sem sofrimento/ Vivendo para o sonho de esperar/ Alguém que ponha fim ao meu tormento”.

Com Fernando César compôs “Só ficou a saudade”: “O meu amor por você/ Que há tanto tempo nasceu/ Ao ver que foi desprezado/ Há pouco tempo morreu/ Só ficou bem verdade/ A saudade, já e vê/ Ficou somente a saudade/ Do meu amor por você”.

Dolores Duran até ensaiou rebeldia em “Lama”, de 1953: “Se eu quiser fumar eu fumo/ Se eu quiser beber eu bebo/ Não me interessa mais ninguém/ Se o meu passado foi lama/ Hoje quem me difama/ Viveu na lama também” […]. E apresenta seu tênue protesto: “E hoje por ciúme ou por despeito/ Achar-se com o direito de querer me humilhar”. Mas fica nisso.

Duran compôs dezenas de sambas-canção, boleros, jazz, blues, serestas, na maioria das vezes sozinha, outras vezes em parceria com Lúcio Alves, Fernando César, Ribamar, Billy Blanco, Tom Jobim e até Chico Anísio. A maioria no melhor estilo “dor-de-cotovelo” que a caracterizou, hoje denominado “sofrência”.

Parceira do “Maestro Soberano” Tom Jobim nos clássicos “Estrada do Sol”, “Por Causa de Você” e “Se é Por Falta de Adeus”, Dolores Duran faleceu acometida por um infarto fulminante enquanto dormia, enfermidade associada ao vício em cigarros, bebidas alcoólicas e abuso de barbitúricos, segundo os jornais da época.

Após a morte de Dolores, a cantora Marisa Gata Mansa entregou a letra de “O negócio é amar” para ser musicada por Carlos Lyra. Apesar da roupagem alegre do Bossa Novista, a canção, que teve dezenas de intérpretes, como Nelson Gonçalves e Fafá de Belém, não perdeu o lado sofrência: “Tem uns que são fracos e dão pra beber/ Outros fazem samba e adoram sofrer”. […] “Tem amor de raça e amor vira-lata/ Amor com champanhe, amor com cachaça” […]. “Tem homem que briga pela bem-amada/ Tem mulher maluca que atura pancada/ Tem quem ama tanto que até enlouquece/ Tem quem dê a vida por quem não merece”. Houvera um campeonato de sofrência, Dolores Duran seria candidata ao título.

Lupicínio Rodrigues

O gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) foi o precursor de um estilo “ressentido” de composições, que se seguiu a alguns sucessos com o estereótipo de mulher ideal, submissa, despida de vaidade e dedicada ao lar, bem características da passagem das décadas de 1930/1940. Dentre essas canções “Emília” (1941), de Wilson Batista e Haroldo Lobo: “Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar/ Que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar/ Só existe uma/ E sem ela eu não vivo em paz/ Emília, Emília, Emília/ Não posso mais”.

Na mesma linha, “Ai! que saudade da Amélia” (1942), de Mário Lago e Ataulfo Alves, exalta a mulher que não reclama das privações domésticas: “Às vezes passava fome ao meu lado/ E achava bonito não ter o que comer/ E quando me via contrariado dizia/ Meu filho o que se há de fazer?// Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia que era a mulher de verdade”.

Amélia e Emília foram uma compensação machista à mulher de Seu Oscar, já citada, amante hedonista da orgia. À mulher libertária de Seu Oscar reagiu também Lupicínio Rodrigues, ensaiando em suas letras libelos contra a mulher insensível que faz o homem sofrer, a megera que machuca o macho e que se entrega nos braços de outro: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor/ Ter loucura por uma mulher/ E depois encontrar esse amor, meu senhor/ Nos braços de um outro qualquer?/ Você sabe o que é ter um amor, meu senhor/ E por ele quase morrer/ E depois encontrá-lo em um braço/ Que nem um pedaço do meu pode ser?” (“Nervos de aço”, 1947).

Em “Cadeira Vazia”, feita em parceria com Alcides Gonçalves, Lupicínio se regozija com o retorno da amada arrependida, carente de perdão, deparando-se com o desprezo do vingativo macho alfa abandonado: “Voltaste, estás bem/ Estou contente/ Mas me encontraste muito diferente/ Vou te falar de todo coração//. Eu não te darei carinho nem afeto/ Mas pra te abrigar podes ocupar meu teto/ Pra te alimentar podes comer meu pão”. A sofrência de Lupicínio Rodrigues é retaliadora e vingativa.

“Vingança”, por sinal, é o título do samba-canção composto por Lupicínio em 1951 e que, gravado por Linda Batista e pelo Trio de Ouro, trouxe grande projeção ao autor. No clássico, o eu-lírico do compositor se regozija com situação degradante e o sofrimento da ex-amada: “Eu gostei tanto, tanto quando me contaram/ Que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar/ E que quando os amigos do peito por mim perguntaram/ Um soluço cortou sua voz, não lhe deixou falar”.

A última estrofe deixa patente o sentimento pouco nobre que passa a mover o protagonista da canção: “Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar/ Você há de rolar como as pedras/ Que rolam na estrada/ Sem ter nunca um cantinho de seu/ Pra poder descansar”.

O ressentimento permeia a obra de Lupicínio, a ponto de exortar todas as mulheres a só amarem uma vez, sob risco de terminarem a vida na indigência, como “Maria Rosa”, jovem que ousou ter em sua galeria vários amores: “Os trapos de sua veste não é só necessidade/ Cada um para ela representa uma saudade// Ou de um vestido de baile, ou de um presente, talvez/ Que algum dos seus apaixonados lhe fez/ […] Vocês Marias de agora, amem somente uma vez/ Pra que mais tarde esta capa não sirva em vocês”.

No mundo misógino das décadas de Noel Rosa, Wilson Batista, Ataulfo Alves, Dolores Duran e Lupicínio Rodrigues, somente homens podiam viver amores. À mulher cabia amar somente uma vez e perdoar sempre.

Marília Mendonça


Foi em confronto com essa realidade secular da condição feminina na arte de amar que se contrapôs as canções de Marília Mendonça. A jovem cantora, compositora e instrumentista falecida em 5 de novembro deste ano, de politraumatismo advindo de um acidente aéreo em Caratinga, MG, deixou registradas no ECAD 331 composições, dentre as quais 152 gravadas por uma constelação de artistas, sendo 58 músicas escritas por ela mesma. De acordo com o site G1, ainda há 98 canções inéditas de sua autoria ou em parceria, todas feitas entre 2012 e 2016.

Marília Mendonça é dona de voz potente que utiliza em composições que conquistam corações e mentes mundo afora. Se as letras de suas canções não possuem o refinamento das composições de Noel Rosa e de Dolores Duran, os números espantosos alcançados em apenas seis anos de carreira a credenciam ao paralelo estabelecido por este artigo. Foram 13,9 bilhões de visualizações no YouTube – computados até o dia de sua morte – mais de 40 milhões de seguidores no Instagram e 14 bilhões de visualizações no Spotify, campeoníssima como a artista mais ouvida do Brasil em 2019 e 2020.

As composições de Marília Mendonça apresentam mulheres que choram dores de amores mas não se entregam. Vão à luta, como em “Supera”: “Ele tá fazendo de tapete o seu coração/ Promete pra mim que dessa vez você vai falar não/ De mulher pra mulher, supera!”.

A igualdade de condições com o gênero masculino é evocada em “Todo mundo vai sofrer”: “Quem eu quero, não me quer/ Quem me quer, não vou querer/ Ninguém vai sofrer sozinho/ Todo mundo vai sofrer”. Se há sofrência, há que ser para os dois, que no fundo é desforra.

O jogo vira em um dos mais populares hits de Marília, onde a mulher expulsa o “Infiel” de casa e o recomenda aos cuidados da amante: “Hoje ele vai ficar/ No momento deve estar feliz e achando que ganhou/ Não perdi nada, acabei de me livrar//”. […] “O seu prêmio que não vale nada, estou te entregando/ Pus as malas lá fora e ele ainda saiu chorando/ Essa competição por amor só serviu pra me machucar/ Tá na sua mão, você agora vai cuidar de um traidor/ Me faça esse favor”.

E vaticina o triste fim do ex-amor: “Iêêê, infiel/ Eu quero ver você morar num motel/ Estou te expulsando do meu coração/ Assuma as consequências dessa traição//. […] Iêiêiê, infiel/ Agora ela vai fazer o meu papel”.
Os puristas e patrulheiros dirão que utilizar “Motel” em uma letra de música é antipoético, “nonsense” e apelação. Há 90 anos Noel Rosa inseriu “Cabaré” no título e ainda colocou uma dama no script.

 

A mulher das composições de Marília Mendonça é empoderada, cônscia de seus predicados e autoconfiante: “Vi uma foto sua com aquela roupa/ Mas parecia que faltava alguma coisa/ Nos traços do sorriso deu pra perceber/ O que será que tá faltando em você?”. Ela própria dá a resposta: “O que falta em você sou eu!/ Seu sorriso precisa do meu/ Sei que tá morrendo de saudade/ Vem buscar logo a sua metade”. (“O que falta em você sou eu”).

Em “Coração Bandido”, canção não autoral gravada com Maiara e Maraísa, Marília Mendonça faria corar a mulher de Seu Oscar: “Coração bandido esse meu/ Vive traindo você/ Coração ingênuo é o seu/ Todo esse tempo sem perceber// Eu não vou mais te esconder/ Vou contar tudo pra você/ Contar que beijo em outra boca”.
Se isso é “sofrência”, o que será de Seu Oscar?