“É possível encontrar pianistas tão excepcionais quanto Nelson Freire, mas não melhores”

18 outubro 2022 às 05h41

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Neste 18 de outubro não teremos Nelson Freire presente para comemorar seu aniversário. O pianista que considerava o piano como se fosse uma pessoa, que o acompanhava desde sempre, partiu, há quase um ano, deixando o piano brasileiro desolado.
Artista universalmente consagrado, recebedor de honrarias em muitos países, convidado a tocar nas melhores salas de concerto do planeta, com as orquestras mais prestigiadas e os regentes mais em evidência.
De Nelson Freire (1944-2021) guardamos a lembrança de seu piano magistral. Em cada interpretação iluminava a obra com um inigualável poder de recriação. Sua arte era mesmo transcendental.
Segundo o crítico francês Alain Lompech (1954), “é possível encontrar três ou quatro pianistas tão excepcionais quanto Nelson Freire, mas ninguém encontrará um melhor”.
Tantas honrarias, contudo, não alteraram o caráter do menino nascido na pacata Boa Esperança, nas Minas Gerais. Desde a mais tenra infância já demonstrava incríveis sinais de seu talento musical e sua família, impressionada por suas capacidades, transferiu-se para o Rio de Janeiro quando ele tinha apenas 5 anos de idade, buscando uma educação musical de qualidade para o prodigioso menino.
Neste 18 de outubro não teremos Nelson Freire presente para comemorar seu aniversário. O pianista que considerava o piano como se fosse uma pessoa, que o acompanhava desde sempre, partiu, há quase um ano, deixando o piano brasileiro desolado.

Em entrevista para a revista “Bravo” Nelson Freire assim se posicionou: (…) “aos 5 anos, minha família toda mudou-se para o Rio por minha causa. Foi uma transferência incrível, penso nisso até hoje, pois meus pais já tinham uma certa idade — meu pai tinha 46 anos, era farmacêutico em Boa Esperança e até mudou de profissão, foi ser gerente de banco, deixou a farmácia. Éramos 9 irmãos e havíamos passado a vida inteira numa cidadezinha pequena, agradável, onde todo o mundo se conhecia. Eu causei uma revolução na vida deles, e eles tiveram uma coragem enorme de fazer isso por causa de um menininho de 5 anos, mudar-se para o Rio de Janeiro, que era outro mundo, uma capital da República!”.

No Rio, Freire foi orientado por duas grandes educadoras, a gaúcha Nise Obino (1913-1995) e a paulista Lúcia Branco (1903-1973).

“(…) Comecei muito cedo, e se nesse princípio eu tivesse sido mal orientado, poderia ter sido um menino prodígio explorado por professores” ( Nelson Freire).
Com a professora Nise Obino Freire teve uma relação de amor. Ele era movido pelo amor pelas pessoas e pela música. Nelson repetiu em muitas entrevistas: “Converso com a Nise todos os dias…”.
Aos 12 anos, Nelson Freire foi finalista no I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro (1957), examinado por pianistas como Guiomar Novaes (1894-1979), pianista por ele sempre admirada e que compôs o júri na ocasião.
Após tão importante conquista, Freire recebeu do então presidente Juscelino Kubitschek (1902 – 1976) uma bolsa de estudos que o levou a Viena, onde estudou sob a orientação de Bruno Seidlhofer (1905-1982).

Ao chegar à Europa conheceu a pianista argentina Martha Argerich (1941). Amigos desde 1959, Marta e Nelson eram mais que amigos, eram confidentes, eram irmãos, eram almas gêmeas.

Aos 19 anos conquistou o primeiro prêmio internacional, no Concurso Internacional Vianna da Motta, em Lisboa, que lhe garantiu a representação por uma importante agência de empresários musicais, Conciertos Daniel, com sede em Madri, fase em que tocou em quase todos os países da América Latina e também na Espanha. Foi esse o período da descoberta da virtuose de Freire pela crítica internacional: “O jovem leão do teclado” (Times, Londres).
Nelson Freire se tornou um artista consagrado internacionalmente. Gravou com importantes selos internacionais. Recebeu numerosas condecorações como a de Cidadão Carioca, Cavaleiro da Ordem do Rio Branco, Légion d’Honneur, Comendador des Arts et des Lettres, Medalha Pedro Ernesto, Medalha da Cidade de Paris, Medalha da Cidade de Buenos Aires e o título de doutor honoris causa pela Escola de Música da UFRJ.
Em 2003, o cineasta João Moreira Salles estreou o documentário “Nelson Freire — Um Filme Sobre um Homem e Sua Música”. Ao saber da partida de Nelson Freire, assim falou: “Os documentários que eu vinha fazendo até então tratavam de desordem, de violência e de desagregação. Tive vontade de filmar o contrário daquilo e Nelson foi o caminho. Ele encarnava valores de um humanismo essencial a todo projeto de civilização decente – a transmissão da beleza, o imperativo moral do trabalho bem feito, a recusa de toda vulgaridade e espalhafato. (…) Nelson Freire, o pianista, não o filme, representava e representa – nos discos, nos registros dos concertos, na vida discreta que levou — uma outra face do Brasil, o lado capaz de nos salvar. Seu talento não está ao alcance de maioria de nós, mas a decência, sim.”

Nelson Freire disse: “A música tem esse poder de transmissão universal, talvez por ser etérea, não se pode segurar a música, ela precisa ser ouvida”.
Ouviremos Nelson Freire interpretando Bachianas Brasileiras nº 4 Preludie do compositor Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), gravado no Festival de Inverno de Campos do Jordão – 2009 Transmissão: Programa “Clássicos” da TV Cultura.
Observe a interpretação magistral dessa obra prima de Villa-Lobos. Ouvir Nelson Freire é sempre um ato de amor.