A história da música popular brasileira é rica em momenantos emblemáticos, mas poucos eventos são tão simbólicos quanto a execução do “Corta-Jaca” no Palácio do Catete, em 26 de outubro de 1914. Composta por Chiquinha Gonzaga, uma das mais importantes figuras da música brasileira, esta peça, originalmente chamada “Gaúcho”, representa muito mais do que uma simples melodia. Ela marca a transição do Brasil Império para a República, colocando em evidência a tensão entre a elite conservadora e as manifestações culturais populares.

Chiquinha Gonzaga foi uma pioneira em muitos aspectos. Primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, ela desafiou os papéis tradicionais de gênero e se firmou como uma compositora de destaque. O “Corta-Jaca”, ou “maxixe”, como era conhecido na época,  mesclava influências africanas e europeias, refletindo a complexa realidade social do país. Com suas melodias cativantes e ritmo sincopado, a música capturou a alma do povo brasileiro, tornando-se um ícone da música popular.

Palácio do Catete | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

A inclusão do “Corta-Jaca” na recepção oficial do Catete foi uma decisão ousada da primeira-dama, Nair de Teffé, esposa do Marechal Hermes da Fonseca, uma mulher à frente de seu tempo. Artista, caricaturista e entusiasta da cultura popular, Nair utilizou a ocasião para promover o maxixe, um gênero que enfrentava resistência dos setores mais conservadores da sociedade, especialmente da Igreja, que via na dança uma ameaça aos “bons costumes’. A execução do “Corta-Jaca” pela própria primeira-dama, em violão solo, foi um ato de provocação cultural, que trouxe à tona a divisão entre o gosto popular e as normas sociais da elite.

O impacto foi imediato. A imprensa, sempre vigilante e crítica, especialmente os jornais oposicionistas, não perdeu a oportunidade de satirizar o evento. A recepção, que deveria ser uma formalidade diplomática, transformou-se em um símbolo da resistência cultural. A crítica mais famosa veio do senador Ruy Barbosa, que, em um discurso inflamado no Senado, denunciou o que ele considerava uma degradação da moralidade e do gosto público. Para Ruy:

“A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!”

Hermes da Fonseca e Nair de Teffé 09 de dezembro de 1913 | Foto: Acervo Museu da República

No entanto, o que Ruy Barbosa via como uma afronta, o povo interpretou como um triunfo. A popularização do maxixe e de outros gêneros musicais de origem popular nas décadas seguintes demonstrou que a música brasileira estava mudando, se afastando das influências europeias e abraçando suas raízes mestiças. O “Corta-Jaca” no Catete foi mais do que uma simples apresentação; foi uma afirmação do valor da cultura popular, um momento em que a música transcendeu as barreiras sociais e se afirmou como um elemento central da identidade nacional.

Chiquinha Gonzaga, com sua maestria e sensibilidade, compôs uma obra que não apenas encantou gerações, mas também desafiou as convenções de seu tempo. Naquela noite de outubro de 1914, no Palácio do Catete, o “Corta-Jaca” não só fez história, mas também elevou a música popular brasileira a um patamar de prestígio que ela tanto merecia. Foi uma noite em que a cultura popular triunfou sobre a resistência das elites.

Ouviremos o “Corta Jaca” de Chiquinha Gonzaga interpretado pelas “Choronas”, grupo de choro formado por musicistas paulistas, com Gabriela Machado na flauta transversal, Ana Cláudia César no cavaquinho, Paola Picherzky no violão de 7 cordas e Roseli Câmara na percussão.

Observe como as “Choronas” capturam com maestria as nuances e o espírito que fizeram da música de Chiquinha Gonzaga um marco na história cultural do Brasil.