Volkswagen apoiou repressão articulada pela ditadura no Brasil e deve indenizar perseguidos e torturados
03 novembro 2015 às 19h18
COMPARTILHAR
Dezenove depois da queda do nazismo, a Volkswagen já estava apoiando outra ditadura e admitindo que operários de esquerda fossem torturados em suas dependências
A montadora Renault fabricou veículos para o nazismo. A empresa americana IBM contribuiu com o regime de Adolf Hitler. A Volkswagen apoiou a ditadura civil-militar no Brasil e, também, a repressão àqueles que lutavam contra o regime dos generais. Agora, a multinacional alemã admitiu o “erro”. Segundo os repórteres Marcelo Godoy e Cleide Silva, de “O Estado de S. Paulo” (domingo, 1º), “a Volkswagen é a primeira empresa a negociar uma reparação judicialmente por ter financiado ou participado ativamente da repressão à oposição política e ao movimento operário durante a ditadura militar no Brasil”.
A Volkswagen admite assinar um termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público Federal. Um de seus dirigentes disse ao jornal paulista “que a companhia busca um acordo com o órgão”. A base da ação do MPF são as investigações da Comissão Nacional da Verdade.
O diretor do Departamento de Comunicação Histórica do Grupo Volkswagen, Manfred Grieger, esteve no Brasil, em outubro, e disse que pretende “entrar em contato com vítimas da ditadura militar brasileira”. O encontro com promotores do Ministério Público “foi o início de uma discussão sobre como chegar a um acordo a respeito dessa questão” (as reparações judiciais), afirmou o alemão. Em termos de reparações, ninguém supera os alemães. Como sabem os judeus, vítimas do Holocausto, se as perseguições forem comprovadas, com documentos e/ou depoimentos confiáveis, os alemães estão sempre dispostos a pagar indenizações.
Manfred Grieger sugere um memorial: “Uma ideia é talvez desenvolver um conceito de memorial em conjunto com outras instituições brasileiras, como sindicatos, e colocá-lo em prática. Queremos continuar as discussões para explorar os prós e contras a respeito dos próximos passos”. O dirigente da Volkswagen não disse, mas certamente teme-se que, sem um acordo bem definido, comecem a pipocar ações e pressões por indenizações. Que a montadora manteve ligação estreita com a ditadura, de acordo com os documentos, não parece existir nenhuma dúvida. Resta comprovar se participou, de maneira direta e sistemática, das ações repressivas [leia abaixo].
Pedro Antônio de Oliveira Machado, procurador regional dos Direitos do Cidadão, afirma que o Ministério Público Federal quer “fazer um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta). O objetivo é que o dinheiro da reparação seja depositado num Fundo de Interesses Difusos ou usado para a construção de um memorial ou museu sobre o período”.
Dez centrais sindicais, associações, pesquisadores, membros da Comissão Nacional da Verdade, ex-trabalhadores da Volkswagen que foram perseguidos e, até, torturados pela ditadura civil-militar repassaram documentos para o Ministério Público Federal. “Por meio de uma representação, eles” pediram, em setembro deste ano, “a abertura de um inquérito civil público a fim de que se apurasse ‘o quanto objetivamente contribuiu a Volkswagen do Brasil para a consecução das violações de direitos humanos noticiadas na representação’”, relatam os repórteres do “Estadão”.
O jornal sublinha que “os sindicalistas queriam que o MPF apurasse o grau de participação do corpo dirigente da empresa em cada violação, em especial ‘aos crimes de tortura perpetrados no interior de suas plantas industriais’ e a ‘colaboração com os órgãos de segurança estatal, unidades militares e organizações sindicais patronais’”. Eles também querem verificar se a Volkswagen recebeu benefícios “em razão da cumplicidade com o regime”.
Os sindicalistas garantem que a Volkswagen “doou equipamentos” — como Fuscas — “para o Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 2º Exército. Há documentos com o carimbo do Departamento de Segurança Industrial da empresa que foram enviados ao Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops-SP) com detalhes sobre a atuação de operários, descritos como subversivos, em manifestações e greves”.
Torturas de operários e militantes
A segurança da Volkswagen fez 200 boletins de ocorrência sobre operários, em geral militantes sindicais, e enviou cópias para o Dops. “Neles há relatos de operários surpreendidos pela Polícia Militar fazendo piquetes que, em vez de serem levados à delegacia, eram conduzidos pela PM para a fábrica da empresa em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, para serem identificados e interrogados. Há ainda relatos de espancamento e torturas de operários ligados a partidos comunistas ocorridos dentro da empresa”, anota o “Estadão”.
Sebastião Lopes de Oliveira, que participou da Comissão Nacional da Verdade, sugere uma coisa que pode não ser a posição definitiva das vítimas da ditadura: “Não queremos que seja feita uma reparação. Não procuramos acordos individuais, mas uma solução que seja coletiva”. Lopes de Oliveira, que teve acesso à documentação, frisa que “havia uma relação muito íntima entre a segurança da montadora e os órgãos de repressão do regime militar”.
Cleide Silva e Marcelo Godoy recolheram o depoimento de Lúcio Bellentani [foto acima], que, aos 28 anos, era ferramenteiro da Volkswagen em São Bernardo do Campo. Em julho de 1972, o militante do Partido Comunista Brasileiro foi preso, “numa ação acompanhada por seguranças da” montadora. “Outros 12 operários também foram detidos.” O PCB apoiava os movimentos sindicais, mas não era favorável à luta armada, ao contrário do Partido Comunista do Brasil (PC do B), organizador da Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974, nos Estados de Goiás (hoje Tocantins) e Pará.
Numa sala do setor de Recursos Humanos da Volkswagen, Lúcio Bellentani levou socos, chutes e pontapés. Levado para o Dops, foi torturadíssimo: “palmatórias nas mãos, pés e cabeça, pau de arara, choque elétrico e chegou a ser arrastado em um veículo amarrado pelas mãos. Teve dentes arrancados com alicate e, até cinco anos atrás, ‘era banguela, pois não tinha coragem de ir ao dentista’”. “Só em anos mais recentes”, declara o operário aposentado, “criei coragem e fui fazer tratamento”. Aos 71 anos, sublinha que “tem pesadelos” e não fica “em quartos escuros”.
Mesmo pertencendo a um partido comunista moderado, que não confrontava de maneira cruenta os militares, optando por acompanhar a luta democrática do MDB, Lúcio Bellentani ficou um ano e oito meses preso. Ao deixar a cadeia, quase não conseguiu emprego, porque havia uma espécie de “lista negra”. “As empresas trocavam lista de pessoas que não deveriam ser contratadas, mas, como não havia internet, em cidades pequenas era mais fácil conseguir uma vaga.”
Ao “Estadão”, Lúcio Bellentani disse que, além da Volkswagen, outras empresas bancaram, até financeiramente, a repressão à esquerda e mesmo aos grupos democráticos. “Não reivindicamos nenhuma questão de penalidade ou de criminalização. Queremos que a empresa reconheça que fez besteira, e se responsabilize por seus desmandos”, afirma. Uma posição justa.
O curioso é que, 27 depois da queda do nazismo, a Volkswagen já estava envolvida com outra ditadura, em 1972. Considerando a data da prisão de Lúcio Bellentani. Mas, se a data mencionada for a de 1964, quando os militares chegaram ao poder, com o apoio de políticos civis, o nazismo havia sido derrotado há apenas 19 anos. A Volkswagen não se emendara.