Não quero criticar o deus de ninguém, mas a forma como as pessoas usam seu nome pra dominação. Deus deve ser amor, o que não combina com guerra e injustiça

Daniella França

Especial para o Jornal Opção

Eu acredito em Deus. Acredito que ele exista. Acredito que ele seja mesmo um homem, daqueles bem machos, que dizem que não choram nunca e que se acham mais importante que os outros seres vivos.

Se Deus fosse humano, com certeza seria um desses caras que saem por aí com seu carrão do ano, dirigindo acima do limite de velocidade permitido, com o som alto, incomodando todo mundo.

Gravura de William Blake | Foto: Reprodução

Sim, ele se acha mais importante, pois dizem por aí que fez o mundo e faz dele o que quiser. O abandonou à própria sorte e agora espera que os filhos tenham que implorar para serem agraciados com sua bondade. “Se não orar, não vai ser curado de câncer.” Um pai pirracento e narcisista, que só ajuda o filho que ajoelha aos seus pés. Não interessa o quanto seu filho ou filha seja uma boa pessoa, ajude os outros irmãos e faça o bem nessa Terra, se não estiver sempre adulando o pai não lhe serve como filho. E tem mais: se o filho quer um pedacinho de terra como herança, precisa lhe pagar prestações, 10 por cento de seu salário que já não dá nem mesmo para pagar as contas no fim do mês.

Sim, Deus pai existe. Deus pai, não mãe. Deus pai sai por aí engravidando as mulheres e prometendo a elas o paraíso para depois largá-las à própria sorte. O filho nasce e a mãe tem que criar, sozinha, sem pensão nem nada. Se essa mulher quer voltar a ter uma vida, se divertir, ser mulher, ainda é considerada indigna da graça do Pai, do pai. Mãe tem que ser casta, virgem, se vestir com um manto azul cobrindo todo o corpo, enquanto o Pai, o pai, sai por aí sendo Deus, se fazendo de deus. E se O Filho começa a pregar ideias humanistas por aí e acaba sendo prezo e crucificado, com certeza a culpa é dela que não o criou bem.

Gravura de William Blake | Foto: Reprodução

Sim, Deus existe, e podemos ver isso também nos vidros traseiros dos carros de seus filhos onde diz, nos adesivos grudados, “Foi Deus quem me deu”. Querem prova maior de benevolência? Enquanto é pai ausente para alguns, os deixando sem ter o que comer, dá carro para os outros. Deus Pai, pai, cria alguns filhos mimados que tem o carro bonito enquanto deixa os outros filhos sem casa pra morar, sem água potável pra beber, sem nada pra comer. Ter carro é mais importante que ter pão, não é mesmo? E afinal, para conseguir algo do Pai, é preciso ajoelhar!

Agora imaginem só se Deus fosse uma mulher?

Esse Deus aí, conhecido por todos, deu mais uma prova de que prefere uns filhos a outros: gosta mais dos homens, sobretudo os brancos. Quando criou a todos, disse que o homem deveria mandar na mulher e que caberia a nós obedecê-los. Temos que obedecer a Pai, ao pai, ao irmão, ao marido… também ao chefe, ao prefeito, ao presidente… também ao colega de trabalho ou aquele homem que conhecemos na balada e que exige um beijo que não queremos dar. Temos que obedecer, fomos feitas para isso aos olhos do Pai. Deus ainda nomeou um de seus filhos, aquele que chamou de Cristo, outro homem, branco, louro dos olhos azuis, nariz fino, rapaz de porte, para controlar a humanidade em seu nome. Mas algo saiu errado… esse filho se tornou bom, bem diferente do Pai, do pai, se tornando alguém justo e salvando as minorias de serem apedrejadas.

“O ancião dos dias”, de William Blake | Foto: Reprodução

Mas sabe o que ando observando, minha gente? Parece que não basta ajoelharmos para que ele nos ame e nos reconheça como filho, não! Deus é racista, basta olhar para os pobres e miseráveis por aí! Essas pessoas, com seus joelhos feridos de tanto se ajoelhar, ainda vivem nas favelas, nos becos, debaixo das pontes, nas praças, nas ruas. Essas pessoas não têm direito, aos olhos do Pai, à saúde e educação de qualidade, muito menos à cultura e ao lazer. Essas pessoas parecem ser consideradas menos gente e morrem, todos os dias, por não terem sido feitos à imagem e semelhança do Pai.

Pois é… esse pai com traços europeus parece ser xenofóbico também. Não aceita o diferente e incentiva seus filhos a fazerem guerra. Sim, Deus também adora guerras, sabe? Ele pede para que seus filhos matem uns aos outros em seu nome. Parece que ele se sente bem em saber que aqueles que ajoelham aos seus pés exijam que os outros também o façam, mesmo que isso seja só uma desculpa, não é mesmo? Porque, afinal de contas, esses filhos mimados criados pelo Pai querem mesmo é a terra dos outros. Os filhos mimados pelo pai manipulam sua vaidade e usam seu nome para matar os outros filhos vistos como indignos dessa Terra. Para ser digno tem que se ajoelhar! A mensagem é esta, desde que nascemos: se ajoelhe aos pés de Deus, homem, branco, onipotente, que será agraciada.

Agora imaginem só se Deus fosse uma mulher? Deusa Mãe… não lhe soa perfeito? Uma Deusa carinhosa que, mesmo errando, tenta sempre acalmar seus filhos, mostrar que todos tem os mesmos direitos e que os ama de forma igual. Ok, nem precisava ser uma Deusa, mas um Deus que fosse como tantos pais por aí que, mesmo tendo sido criado no meio de um ambiente machista, racista, capacitista e xenofóbico tenta ser um pai melhor, ensinando aos seus filhos como ser alguém mais humano.

Com este texto desabafo, não quero criticar o deus de ninguém, mas a forma como as pessoas usam o nome dele para a dominação política, social e para atender aos próprios interesses. Se Deus existe — e não digo nem que não nem que sim, pois sou cientista e preciso de provas para afirmar algo — ele não é como vocês o descrevem. Deus deve ser amor e amor não combina com guerra e injustiça.

Daniella França é doutora em Biologia. É colaboradora do Jornal Opção.