De que é feita a boa ficção? De quadros ou retalhos da realidade reimaginados por escritores. “Ulysses”, de James Joyce, é uma invenção plenamente literária (sua linguagem, embora filha de tantas outras, inventivas ou não, tem um quê de novo, de avanço), mas o crítico literário e biógrafo Richard Ellmann mapeou a presença ostensiva da realidade — recriada, lógico — neste romance que reinventou a literatura. Na sexta-feira, 14, “O Hoje” e o “Pop” publicaram duas reportagens que, nas mãos de ficcionistas, poderiam resultar em contos de qualidade. Acreditando que estava sendo perseguido por criminosos — traficantes rivais, quem sabe —, Marcos Roberto Gomes Heleno, de 35 anos, dirigiu em alta velocidade, na contramão, desrespeitando as mais elementares regras de trânsito, e refugiou-se no 15º Distrito Policial, no Bairro Goiá, em Goiânia.

Ora, se estava sendo perseguido por bandidos, como alegou, nada mais justo do que buscar proteção numa delegacia de polícia. Agora (provando que o “mal” contém certo humor), o choque da realidade. Os “perseguidores” de Heleno — Homero, por certo, adoraria o nome — eram, na verdade, policiais. Estavam mesmo seguindo o jovem, num automóvel descaracterizado, com o objetivo de prendê-lo. Não precisaram, é claro, porque o criminoso “se prendeu”.

O nome do delegado que trancafiou o possível traficante é Eduardo Prado. Como se sabe, outro Prado, só que Paulo, foi um dos principais mecenas da Semana de Arte Moderna de 1922 e autor do livro “Retrato do Brasil — Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira”. Provando que tem veia de escritor, Eduardo Prado, o delegado, disse a respeito de Heleno: “O rato entrou na ratoeira”.

Não deixa de ser curioso que os títulos de “O Hoje” e do “Pop” sejam os mesmos: “Suspeito se refugia em delegacia”. O PC (ou retranca) do primeiro — “Drogas” — é mais preciso do que o do segundo, “Segurança”.