Nial Ferguson, de Harvard, sugere que Biden “nada” pode fazer contra um país como o Brasil

06 dezembro 2020 às 00h01

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“Bolsonaro não sofrerá com a derrota de Trump. O Brasil não é tão dependente do EUA e é um país tão autossuficiente que se torna um mundo em si”
O escocês Nial Ferguson é um dos mais brilhantes e ousados historiadores da atualidade. Aos 56 anos, deu aulas em Oxford, Cambridge e Stanford e, no momento, é mestre em Harvard e na Universidade Tsinghua (a melhor da China) Um de seus livros mais provocativos é “Império — Como os Ingleses Fizeram o Mundo Moderno” (Crítica, 448 páginas, tradução de Marcelo Musa Cavallari). Suas teses são heterodoxas, mas o pesquisador procura torná-las substantivas, ao arrolar informações e dados para sustentá-las. Uma delas, controversa e pouco aceita no meio acadêmico, é a de que os ingleses teriam lucrado mais se não tivessem adotado a política colonialista. Ao mesmo tempo, postula que o chamado colonialismo modernizou as colônias.

Nial Ferguson escreve e argumenta bem, mas tem seus detratores. Há quem acredite que força os dados para que sua interpretação seja justificada. O historiador não deixa ninguém indiferente. Ao contrário dos que exageram os benefícios das redes sociais, dada uma suposta democratização da informação e uma integração não mediada dos indivíduos, o pesquisador sugere que são uma ameaça à sociedade civil (confira link abaixo).
Nas “Páginas Amarelas”, da revista “Veja”, Nial Ferguson concedeu uma entrevista cujas ideias merecem ser apresentadas e, aqui e ali, discutidas. Ele foi entrevistado pela repórter Luisa Purchio.
De cara, Nial Ferguson contesta a jornalista e frisa que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, do Partido Republicano, não é um político de extrema direita. “A política fiscal sob o seu governo gerou um enorme déficit antes mesmo de a Covid-19 chegar. Trump defendeu o dinheiro fácil e pressionou o Federal Reserve a reduzir as taxas de juros, isso não é um comportamento de um político de direita em questões econômicas. Em assuntos como imigração, ele certamente tinha um posicionamento de direita. Mas não acho que que defender o combate à imigração ilegal nos Estados Unidos seja um posicionamento extremista. Trump representa uma espécie de populista americano tradicional do século 19, não um fascista saído da Europa dos anos 1930.” Certamente por motivo de espaço, não há nenhuma explicação sobre o que é um “populista americano tradicional do século 19”. Abraham Lincoln seria populista, por exemplo?

Joe Biden, Bolsonaro e “blindagem” do Brasil
Preocupada com a suposta vitalidade da extrema direita no mundo, a repórter inquire se a derrota de Trump pode levar a um enfraquecimento dos extremistas de direita pelo mundo. A resposta de Ferguson não é a corriqueira: “Políticos populistas e conservadores não precisam de liderança ou alinhamento internacional, justamente porque o nacionalismo é um pilar de seu modelo de governo. Alguns deles já deixaram claro que vão se dar bem mesmo com Joe Biden no poder”. No Brasil, há, por vezes, a interpretação equivocada de que o Partido Democrata é de esquerda. Não é, claro. Trata-se de um partido liberal em economia e em comportamento. Barack Obama e Joe Biden nem se aproximam dos social-democratas da Suécia, da Noruega e da Dinamarca. O governo de Obama, por exemplo, “salvou” bancos e a indústria automobilística da debacle, o que mostra seu espírito altamente capitalista.
“A derrota de Trump não será muito importante para os países que não dependem muito dos Estados Unidos para apoio econômico ou militar, como é o caso do Brasil. Seria um erro exagerar as consequências internacionais da derrota de Trump”, frisa Nial Ferguson.
O relacionamento entre o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, será difícil, ao menos no início. “Mas minha sensação é que, apesar de eventuais atritos e provocações, Bolsonaro não sofrerá especialmente com a derrota de Trump. O Brasil nos dias de hoje não é tão dependente dos Estados Unidos e em última análise é um país tão autossuficiente que se torna um mundo em si. Mas eu acredito que a derrota de Donald Trump deve levar Bolsonaro a pensar muito sobre como evitar o mesmo destino quando for candidato à reeleição.”

Como não foi perguntado, Nial Ferguson não fala sobre se o fator China fará Joe Biden ser mais moderado em relação ao Brasil. Uma aproximação mais estreita entre os governos brasileiro e chinês não será conveniente para os Estados Unidos. Por isso, apesar dos arroubos iniciais — que a esquerda patropi aprecia —, o político americano não terá como enquadrar o Brasil. A tendência é que, ante o avanço da China, Joe Biden, um realista, acabe por ser enquadrado pela realidade global. Uma coisa é a retórica de quem está “fora” do poder e outra é a retórica de que, “no” poder, precisa resolver problemas reais, e tendo de dialogar, inclusive com quem não se aprecia.
Na contramão do que dizem vários especialistas, inclusive colegas de Harvard, como o historiador Graham Allison, autor do estupendo “A Caminho da Guerra — Os Estados Unidos e a China Conseguirão Escapar da Armadilha de Tucídides?” (Intrínseca, 411 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), que aponta o avanço aparentemente inexorável da China, Nial Ferguson pontua: “Em termos de produto interno bruto, a China está alcançando os Estados Unidos a cada ano, porque a sua economia cresce mais rápido do que a americana. Mas é difícil prever onde estaremos daqui a dez anos. Em algum momento, veremos uma redução na taxa de crescimento chinês. O país tem problemas muito sérios como o envelhecimento de sua população e a grande dívida do setor privado. Não sabemos se os chineses conseguem manter uma taxa de crescimento de cerca de 5% por muito tempo. Minha suspeita é que ficará em torno de 2% a 5% nos próximos anos. As pessoas estão superestimando a sustentabilidade do modo chinês. Isso pode significar que a China nunca alcançará os Estados Unidos”. Graham Allison, por sinal elogiado por Nial Ferguson, sugere o contrário. Os críticos têm errado sobre a questão do crescimento chinês e, mesmo crescendo 5% ao ano, é muito superior ao crescimento da economia da Europa, do Japão e dos Estados Unidos. Graham Allison mostra, com fartos detalhes, que os chineses já superam os americanos em vários campos — inclusive na área de informática. Os supercomputadores mais rápidos são da China, não dos Estados Unidos. A melhor escola de engenharia do planeta fica na China, superando a escola do MIT.
Joe Biden é, digamos, um político de centro-direita e se elegeu porque buscou o apoio de todo o espectro político americano. Bolsonaro está se aproximando do centro, apontado como centrão, e seu objetivo é, para além da governabilidade — a aprovação de projetos no Câmara dos Deputados e no Senado —, a disputa da reeleição em 2022. Sozinho, e com o desgaste de ser governo, e pelo fato de ter administrado mal a questão da pandemia do novo coronavírus, Bolsonaro pode perder o poder para o centro político ou mesmo para a esquerda. O presidente deveria ler o que diz Nial Ferguson, um conservador esclarecido: “A lição desta eleição [Biden versus Trump] é que você não pode vencer apenas com sua base de seguidores fiéis. Você precisa atrair e aglutinar apoios e seguidores ao centro. Biden venceu porque disputou como o Sr. Moderação e transformou Trump em uma bola de demolição. Funcionou”.
Em 2022, Bolsonaro terá como adversários políticos experimentados como João Doria, governador de São Paulo, e Ciro Gomes, ex-governador do Ceará e ex-ministro da Fazenda, e dois outsiders tremendamente perigosos, porque imprevisíveis — Luciano Huck, o conhecidíssimo apresentador da TV Globo, e o ex-ministro da Justiça Sergio Fernando Moro. Uma chapa de centro, com nomes consistentes e a imagem de decentes, terá condições de enfrentar Bolsonaro em igualdade de condições — podendo derrotá-lo. A vacinação em São Paulo, se tudo der certo, vai colocar João Doria em perspectiva nacional, positivamente, como o político que se preocupa com gente. Se os índices de mortalidade caírem no Estado, em decorrência da vacina, o gestor estadual poderá sair consagrado. Já o presidente da “gripezinha” pode chegar a 2022 muito mal, com, talvez, mais de 200 mil mortos devido à Covid-19 — uma das mais letais gripezonas da história do Brasil.
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