O que vemos no filme é um vacilo da humanidade, que custou tudo. O esforço de manutenção do mundo cessou, e o real irrompeu com seu efeito de despedaçamento

Cristiano Pimenta

Especial para o Jornal Opção

O filme da Netflix “Não Olhe Para Cima” — dirigido por Adam McKay —, lançado na véspera do Natal, e protagonizado por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence nos papeis dos astrônomos Randall Mindy e Kate Dibiasky, discute, por meio da sátira, alguns dos dramas candentes da vida contemporânea. A pesquisadora Kate Dibiasky descobre, através de potentes telescópios, a existência de um novo cometa. Seu orientador de PhD, o Dr. Randall Mindy, faz os cálculos que concluem que há 99,78% de chance desse astro colidir com a Terra e, “em seis meses”, extinguir toda a vida, dado ao seu enorme tamanho. Ambos correm desesperados para informar às autoridades e à mídia sobre a catástrofe iminente.

“Não queremos saber nada sobre isso”

Pois bem, o filme fala de colisões. A primeira delas é a colisão dessa “má notícia” com o mundo da política, da mídia, das redes e também da intimidade de cada um. E o que os pobres cientistas se confrontam é com uma recusa geral, com um “não queremos saber nada sobre isso”, “não queremos olhar para cima”. Trata-se de uma recusa à ciência, que é hoje chamada de negacionismo. Mais precisamente, trata-se da recusa do real que a ciência permite cernir, o real da destruição, que no filme se apresenta sob a forma de um cometa gigante.

Naturalmente, a indiferença das autoridades frente ao cometa serve perfeitamente para representar o descaso que vemos cotidianamente com o desmatamento das florestas, com o aquecimento global, com o negacionismo frente a pandemia, etc. Os comentários na internet sobre “Não Olhe Para Cima” não falam de outra coisa. A microbiologista e pesquisadora Natalia Pasternak, que se tornou conhecida por combater corajosamente muitos negacionistas na pandemia, escreveu um artigo chamado “Don’t Look Up’ retrata a idiotice da modernidade”. Neste artigo Pasternak diz que “se sentiu representada pelos cientistas Randall Mindy e Kate Dibiasky”. Afirma também que “o filme retrata a incapacidade das pessoas, sejam cidadãos comuns ou governantes, de reagir de maneira racional à emergência”. Eu pergunto se essa falta de uma “reação racional” não seria igualmente acompanhada da falta de uma adequada reação “emocional”. O afeto do medo, o medo da morte iminente, parece não produzir nas pessoas a reação que poderíamos esperar.

Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence | Foto: Reprodução
Deglutindo a papinha

Não há dúvida, todavia, de que o filme “retrata” exatamente a falta de tais reações. Mas chama atenção um aspecto a respeito do modo como as cenas foram construídas: a significação de cada uma delas é sempre óbvia. Não há nenhuma cena em que, para se compreender o que está sendo dito, tenhamos que decifrar algum sentido ou alguma verdade escondida nas entrelinhas.

Tomemos alguns exemplos: é óbvio que a presidente dos Estados Unidos (a atriz Meryl Streep) está mais preocupada com a questão da nomeação de um ex-amante para uma vaga na Suprema Corte do que com os perigos do cometa. É óbvio também que essa mesma presidente é uma personagem que representa Donald Trump, mas que também serve para representar Bolsonaro. Ela tem um filho que se mete em todos os assuntos de Estado, tal como Trump e também Bolsonaro.

É evidente que, no filme, a mídia televisiva dá mais importância à reconciliação (ao vivo) da cantora famosa com seu namorado do que à notícia de que o mundo deve acabar. Não há dúvida de que os apresentadores do programa de entrevistas são pessoas fúteis e estão incumbidos de “dourar a pílula” para que as notícias não provoquem grandes estragos nos telespectadores.

Os cientistas e a presidente dos Estados Unidos | Foto: Reprodução

Não há dúvida de que o cometa descoberto por Dibiasky representa o aquecimento global, mas também serve para representar o coronavírus. Seguindo a mesma lógica, alguém duvida que o personagem megamultimilionário, dono da Bash, Peter Irshwell, representa, dentre outros, um Steve Jobs, o donod a Apple, que foi inventor, empresário e magnata no setor da informática? As conclusões a que o filme nos leva são tão óbvias que dizê-las, ou escrevê-las em um artigo, gera sempre o efeito da redundância. Podemos tomar o exemplo do artigo de Natalia Pasternak como sendo redundante e até desnecessário, pois o que ela escreve não acrescenta quase nada ao que o filme diz de modo mais evidente.

Vale dizer que este é o motivo pelo qual muitos amantes do cinema não gostaram do filme. Se o sentido das cenas é sempre óbvio, o espectador, por consequência, é reduzido a um idiota. Essa crítica é verdadeira, mas algo escapa a ela. “Não Olhe Para Cima” não foi feito para atender a critérios rigorosos de um bom filme. Ele se dirige, em primeiro lugar, de forma direta e sem se esquivar, ao eleitor de Trump (e por extensão ao de Bolsonaro, dentre outros). Ele se dirige aos negacionistas. E sua pretensão é produzir um efeito de espelho. É como se o próprio filme dissesse ao negacionista:

“Olhe para esse filme! Ele foi feito para você! Olhe e veja como você é um imbecil! Se a informação foi transformada numa papinha fácil de ser deglutida é porque você não sabe mastigar coisas mais elaboradas. Olhe para a tela, mas também olhe para o lado, seja na sala do cinema ou no reduto do seu lar, estão todos rindo de você! É você que está sendo representado neste filme visto agora por milhares de pessoas! Veja nesse espelho o tanto que você é um imbecil, vazio e sem nenhum compromisso com a vida.”

Visto dessa perspectiva, o filme se revela como uma tentativa de envergonhar aqueles que negam a ciência e desprezam a vida. A vergonha é um afeto importante quando está em jogo o questionamento do gozo de cada um.  Por outro lado, “Não Olhe Para Cima” pretende dar alguma dignidade aos que lutaram bravamente em defesa da vida. Nas últimas cenas vemos a família de Mindy recuperada e reunida, junto dos amigos queridos, num jantar de despedida da vida. É um momento que resgata a dignidade, a leveza e o amor, por meio do não estar só. A cena lembra a ceia que acontece no final do filme “Ensaio Sobre a Cegueira”, que culmina na recuperação da visão por parte de um dos personagens. Trata-se, em “Não olhe para cima”, da ceia daqueles que não se deixaram cegar.

A aliança ciência-capitalismo

De todo modo, é preciso reconhecer que o fenômeno principal discutido no filme, o do negacionismo no mundo contemporâneo, não decorre apenas da má vontade das pessoas. Há uma mudança estrutural na civilização, uma mudança que está na base desse funcionamento que leva as pessoas a negarem verdades irrefutáveis. Quero dizer que a aliança entre capitalismo e ciência (representada no filme por Peter Irshwell, magnata dono da Bash) destruiu a dimensão da alteridade que encarnava um saber verdadeiro e inquestionável. Destruiu esse Outro que seria o portador de uma verdade universal, que valesse para todos, esse Outro que seria “os fatos” (afinal, não se pode duvidar dos fatos), esse Outro que teria ainda alguma autoridade, ou que seria o enunciador de uma Lei universal, enfim, esse Outro cujo representante na tradição foi outrora encarnado pelo Pai, não apenas o Pai do patriarcado, mas a função paterna, o Outro como o Deus Pai.

Pois bem, esse Outro não existe mais em nosso mundo contemporâneo. Ele foi eliminado pelo desenvolvimento hiperbólico do mundo capitalista e pelo desenvolvimento frenético desse novo mundo, que é o mundo que subsiste na rede, nas telas, etc. Esse conluio nos libertou do julgo do patriarcado e da lei do pai. Ele nos deu a liberdade de construirmos as nossas próprias leis. Vale dizer que no mundo contemporâneo cada um funda seu próprio mundo, com suas próprias verdades, com seu público, com seus “likes”, cada um no seu quadrado funda sua alteridade. E esse mundo de cada um é sempre autossuficiente, é uma bolha que, para subsistir, independe de qualquer verdadeira alteridade. Cada bolha — isso é crucial — é uma bolha de gozo, de gozo autista, o que quer dizer que ele sempre reivindica não ser perturbado. E assim, há múltiplos mundos. Se não se está satisfeito com um pode-se migrar para outro, inclusive para o mundo dos pesquisadores acadêmicos. Em “Não Olhe Para Cima” vemos que as verdades científicas se confrontam com o negacionismo a partir da propaganda, do espetáculo midiático. O que quer dizer que tais verdades científicas subsistem, elas também, em suas respectivas bolhas. Não estão mais no lugar de uma exterioridade que se impõe de forma irrefutável.

O despedaçamento do mundo

Pois bem, o cometa em “Não Olhe Para Cima” representa o real que pode explodir as bolhas múltiplas que compõem a vida atual. Nas últimas cenas do filme, vemos o mundo humano, aos pedaços, vagando no espaço. É o mundo tornado peças soltas, amontoadas, dejeto, lixo. Quem permaneceu vivo verá o inferno. A incidência do real tem por efeito o despedaçamento daquilo que subsistia articulado, amarrado, ordenado e compondo um mundo integrado. Isso é, na verdade, um mais além do inferno, se supormos que no inferno ainda subsista alguma ordem.

Se é evidente que o mundo humano tenha sido enriquecido e complexificado pela ciência, é igualmente evidente que ele não é o real, ele é, antes, uma defesa contra o real. É por isso que ele se articula sempre como uma bolha. Uma bolha tem sempre algo de fundamentalmente ilusório, de semblante. Por isso mesmo o mundo humano é essencialmente frágil, na medida em que ele é o resultado de um artifício e de um esforço constante de manutenção. O mundo humano não é natural. Se os humanos vacilarem, esse mundo corre o risco de se esfacelar. O que vemos em “Não Olhe Para Cima” é um vacilo da humanidade, um vacilo que custou tudo. O esforço de manutenção do mundo cessou, e o real irrompeu com seu efeito de despedaçamento. Nesse sentido, o que é realmente real, se me permito a redundância, é o despedaçamento. O estado do ser despedaçado não requer nenhum esforço de manutenção. Algo no cometa tem, portanto, relações íntimas com o real, a saber, a sua capacidade de despedaçamento. A morte, por sua vez, também possui relações íntimas com o real, ela é a anulação de todo e qualquer mundo. Salvo aquele, totalmente imaginário, que o Deus pai reservou para Randall Mindy e Kate Dibiasky, por terem se colocado a altura de se responsabilizarem por seus gozos, e por terem sabido preservar algum vínculo com essa alteridade radical que no filme é encarnada pelo cometa.

O que “Não Olhe Para Cima” consegue produzir em cada espectador é uma certa aproximação ao real traumatizante, ele produz em nós uma colisão, ele faz estremecer algo em nós. Ele nos faz ver que a vida, sobretudo nos tempos atuais, é vivida sempre assim, sob a aproximação de um cometa mortífero. Melhor sabermos, cada um, o que fazer com essa vida que está sempre por um fio.

Cristiano Pimenta é psicanalista membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. É colaborador do Jornal Opção.