A Ordem dos Advogados do Brasil é uma “casa” de todos, não é um “edifício” ideológico das esquerdas

Jair Bolsonaro e Brilhante Ustra: o deputado revisa a história e defende o coronel do Exército, que é apontado como torturador
Jair Bolsonaro e Brilhante Ustra: o deputado revisa a história e defende o coronel do Exército, que é apontado como torturador

É consenso entre pesquisadores, ideológicos ou não, que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o doutor Tibiriçá, comandou parte dos grupos de tortura na ditadura civil-militar.

Independentemente do fato de que esquerdistas — terroristas, no dizer dos militares — não queriam implantar uma democracia no Brasil, pugnavam por outra ditadura, a do proletariado, portanto havia uma guerra entre forças políticas e militares, a tortura é execrável. Há quem diga que, na guerra, vale tudo — menos perder. Os militares, para combater a guerrilha, que queria derrubar o governo, precisavam de informações rápidas — para prender novos militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), as maiores organizações da luta armada; daí a lógica da tortura. O presidente-general Ernesto Geisel chegou a dizer: “Acho que a tortura, em certos casos, torna-se necessária para obter confissões”. O capitão esquerdista Carlos Lamarca e seus camaradas mataram um militar friamente, a coronhadas, quando poderiam tê-lo deixado amarrado. Em fuga, temiam ser descobertos.

  1. Livros de história, e se está falando dos mais equilibrados, e depoimentos sugerem que muitos presos foram torturados e, vários, mortos quando não tinham mais nada a revelar que pudesse ajudar no combate à guerrilha. A partir de certo momento, a ordem, de cima, era para torturar e matar. Era cortar o “mal” pela raiz. Fala-se em porões da ditadura, locais onde guerrilheiros eram torturados e não raro mortos, quando, na verdade, não eram bem porões, porque a cúpula do governo sabia o que estava acontecendo nas suas dependências. Os porões eram, por assim dizer, extensões das áreas oficiais — eram para-oficiais. A tortura, por si, é grave. Trata-se de um crime, mesmo na guerra. As mortes em combate, com trocas de tiros de ambos os lados, têm sua justificativa. Fala-se, com alguma propriedade, que chumbo trocado não dói. Mas as mortes nas prisões, oficiais ou não, como na Casa da Morte, em Petrópolis, ferem as próprias convenções dos soldados que se combatem. O preso é um ser indefeso e, como tal, deve ser protegido. Quem diz isto é ingênuo? Pode até ser. Mas precisa-se, mesmo em circunstâncias difíceis, de limites. Sem regras de contenção, os homens, militares ou não, tendem à barbárie. O delegado Sérgio Paranhos Fleury, tido como besta-fera dos porões, era uma espécie de James Bond da ditadura civil-militar. Não se pode esquecer de que um dos chefes da ALN, Carlos Eugênio Sarmento Paz, comandou o assassinato de Márcio Toledo única e exclusivamente porque ele queria deixar a guerrilha. É uma morte que clama por lembrança e, até, condenação.

Se a tortura é um crime, na ou fora da guerra, pode-se e deve-se criticá-la. Alinho-me entre seus críticos, embora condene o projeto da esquerda, que, de fato, planejava destronar os ditadores militares para instituir outra ditadura no país, a de partido único. Na Rússia e em Cuba, para citar dois países, as esquerdas inicialmente eram multifacetadas, com vários grupos políticos. Aos poucos, prevaleceu a hegemonia do Partido Comunista, que absorveu ou, quando não foi possível, massacrou as demais correntes — torturando e matando sem nenhuma contemplação. Curiosa ou sintomaticamente, parte da esquerda que desanca Brilhante Ustra defende (ou defendeu) Stálin, o brutal assassino de mais de 20 milhões de soviéticos.

Porém, se condeno a tortura, se a considero uma prática anti-humanista, próxima da barbárie, devo propor censura àqueles que defendem a ditadura civil-militar e até torturadores, como Brilhante Ustra? Não estou entre os que propõem que o deputado federal Jair Bolsonaro, do PSC do Rio de Janeiro, deve perder o mandato porque elogia a ditadura e o coronel Brilhante Ustra. Ele que elogie quem quiser. Entendo, inclusive, que a condenação acerba ao coronel-torturador tem o objetivo de uma condenação geral aos militares, a uma espécie de demonização dos que vestem farda.

A sociedade democrática permite que uma pessoa, deputado ou não, possa elogiar o quê e quem quiser. O elogio de Jair Bolsonaro à ditadura e a Brilhante Ustra não afeta em nada a democracia — para melhor ou para pior. Portanto, não deixa de ser risível o propósito de a OAB do Rio de Janeiro propor a cassação de seu mandato. A ação da casa representante dos advogados é uma forma de censura, é uma tentativa descabida de interferência na vida de um indivíduo, de um parlamentar.

A ação da OAB é tão despropositada que nem parece ter saído do cérebro de um advogado, quer dizer, de um legalista, e sim da mente de um político que, totalitário, quer excluir o pensamento divergente. No caso, o mais adequado é que o debate circunscreva-se à exposição do pensamento de Jair Bolsonaro e à crítica de seus adversários. O debate pode ser agressivo, com palavras candentes e até cusparadas mal educadas — como a dada pelo deputado federal Jean Wyllys em Jair Bolsonaro —, mas morre aí. O jogo democrático é duro, por vezes, e os contendores não precisam acatar e nem mesmo respeitar as ideias de seus adversários. Mas não devem tentar proibi-las. A OAB, ao propor a cassação do parlamentar carioca, está passando ao largo da questão democrática e apresentando uma faceta autoritária. O que é uma pena, porque o legalismo da OAB é importante para a democracia, para a defesa da liberdade dos indivíduos.

Jair Bolsonaro seria preocupante para a OAB se, como deputado federal, estivesse propondo leis, ainda que isto seja absurdo, que contribuíssem para a “volta” da ditadura. Não há notícia de que o parlamentar esteja apresentando projetos que contrariem a tenra democracia do país. Não se tem informação de que está organizando milícias paramilitares com o objetivo de “restaurar” a ditadura civil-militar. Suas palavras, por mais que doam em algumas pessoas, sobretudo na sensível pele dos esquerdistas — muitos, por sinal, apaixonados pelo comunismo de Cuba e pelo híbrido capitalismo-socialismo de Estado da China —, e por mais que sejam ofensivas para seus rivais, no e fora do Congresso Nacional, são inofensivas para a democracia.

Na sociedade do espetáculo, em que muitos se tornam midiáticos, mesmo quando não querem, Jean Wyllys e Jair Bolsonaro ganham espaço, por causa de palavrões e cusparada, mas têm menos importância do que às vezes imaginamos. A democracia, com ou sem cuspe, com palavras delicadas ou grosseiras, permanece intocada. É o que importa. O resto é filigrana. A OAB, muito mais importante que os dois deputados, não deve se envolver em questiúnculas sem nenhuma importância. A OAB não pode se tornar uma casa ideológica, ou melhor, não deve ser transformada numa célula da esquerda ou de qualquer outra corrente política. A OAB é a casa da liberdade e, como tal, não deve se tornar instrumento ideológico de alguns de seus integrantes.