O historiador alemão escreveu livros brilhantes sobre cultura e comportamento na Europa, sobretudo no século 19

Pode-se sugerir que o historiador alemão Peter Gay — morto na terça-feira, 12, aos 91 anos em Manhattan — era uma espécie de Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque de Holanda da Alemanha (ou dos Estados Unidos), quer dizer, era um erudito que escrevia como escritor, de maneira legível, com rara clareza, atípica entre acadêmicos. Um de seus livros, “Modernismo — O Fascínio da Heresia: de Baudelaire a Beckett e Mais um Pouco”, publicado pela Companhia das Letras, é representativo de sua cultura enciclopédica — o que não pode ser confundido com superficialidade — e de sua sofisticação intelectual. Consegue analisar períodos longos, notando especificidades e conexões entre autores, detectando os momentos de estagnação, transição e ruptura. Quando lançado no Brasil, devido a uma leitura perfunctória de Marcelo Coelho, na “Folha de S. Paulo”, alguns leitores possivelmente deixaram de lê-lo. Trata-se de um livro que une exposição factual precisa com interpretação qualificada.

Há outros livros de alta qualidade de Peter Gay, como “O Coração Desvelado”, “O Cultivo do Ódio”, “A Educação dos Sentidos — A Experiência Burguesa: da Rainha Vitória a Freud”, “O Século de Schnitzler”, “O Estilo na História — Gibbon, Ranke, Macauly, Burckhardt”, “Represálias Selvagens — Realidade e Ficção na Literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann”.

Mas o livro que o tornou mais conhecido e reputado no Brasil é mesmo “Freud — Uma Vida Para o Nosso Tempo”, publicado pela Companhia das Letras.

Freud ganhou o Prêmio Goethe, porque seu alemão era literário — tanto que o pai da psicanálise tinha a pretensão de ganhar o Nobel de Literatura —, e Peter Gay mostra as qualidades de sua prosa, sua capacidade de raciocinar em várias direções, perscrutando os matizes humanos, até estabelecer, por assim dizer, uma “teoria” decisiva para “compreender” (trata-se, a rigor, de uma auto-compreensão, com mediação do psicanalista) o homem e seus problemas (que são reais mesmo quando imaginários). Na biografia, ao contrário de biógrafos cautelosos, como Ernst Jones e Max Schur, o historiador alemão avança em alguns aspectos, por exemplo sobre a morte do pensador.

Freud tinha câncer (fedia e até espantava seu cachorro, que amava) e morreu em 1939, em Londres, onde se exilara fugindo do nazismo de Adolf Hitler. As biografias dizem que o câncer matou o criador da psicanálise. De fato, estava muito mal. Mas, segundo Peter Gay, Freud convenceu seu médico, Max Schur, com anuência de sua filha Anna Freud, a ministrar-lhe uma dose maior de morfina para que morresse. Não suportava mais o sofrimento duplo: para si e para os parentes mais próximos. Sua morte teria sido, portanto, uma eutanásia — ou, quem sabe, uma espécie de suicídio assistido.

Mas claro que “Freud — Uma Vida Para o Nosso Tempo” não é importante só por mostrar como morreu o cientista-pesquisador que ajudou a compreender — ao menos um pouco mais — o homem. Peter Gay faz uma síntese precisa da psicanálise, de sua criação e avanços, e mostra como Freud se tornou, digamos, Freud.