Morre José Aparecido, o árbitro negro que, agredido, “converteu” o Craque Neto

25 junho 2023 às 00h00

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“O juiz que levou a cusparada do Neto”. Essa é a referência para todos aqueles que querem fazer alguém se lembrar de quem foi o árbitro José Aparecido de Oliveira, que morreu na terça-feira, 20. Ele tinha 72 anos e sofreu o rompimento de uma artéria do coração. Havia encerrado sua carreira no apito aos 45, quando foi diagnosticado com câncer no estômago.
José Aparecido foi um dos primeiros brasileiros negros a entrar para os quadros da Fifa. Assim, pôde apitar partidas internacionais. Mas, no meio da trajetória ascendente, foi “podado” pela própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF), depois de, segundo ele, não atender a um pedido indecente de dirigentes da cúpula da entidade: “ajeitar” uma vitória do Brasil sobre o México em um amistoso e “dar uma força” para a Argentina em um jogo na Colômbia pelas Eliminatórias do Mundial de 1994. Apitou conforme sua consciência e, assim, foi cortado do quadro principal da arbitragem. Muito provavelmente, deixou de apitar uma Copa do Mundo por ter sido honesto demais para os padrões dos bastidores da bola.
Mas o que marcou a carreira de Aparecido foi o episódio com o meia Neto, então ídolo do Corinthians, em 1991. Depois de expulsá-lo justamente, em uma partida contra o rival Palmeiras, o jogador reagiu cuspindo no rosto do árbitro.
Hoje um dos principais nomes da imprensa esportiva nacional na TV, Neto sentiu bastante a morte de José Aparecido e novamente – ele já havia feito o pedido público de perdão algumas vezes – afirmou ter se arrependido totalmente de sua atitude. O próprio José Aparecido contou sobre o remorso do hoje comentarista de futebol, em uma entrevista:
Eu fiquei triste [ao ser alvo da cusparada], mas em nenhum momento passou pela minha cabeça reagir. Eu já havia presenciado e já tinha visto atos de alguns jogadores com aquela atitude de cuspir ou no adversário ou no árbitro. E porque eu perdoo o Neto? Dentro de um jogo de futebol você pode esperar tudo de um jogador, dependendo da temperatura dele, do temperamento dele, e até hoje o Neto mesmo fala que se ele tivesse a cabeça que tem hoje, jogando a bola que ele jogava, ele estaria lá na Europa. Então aquilo lá foi um ato do jogo, eu sempre soube que dentro de uma partida de futebol tudo poderia acontecer, e o único que tinha que ter o equilíbrio seria eu. Na realidade foi uma surpresa para mim, uma surpresa para a imprensa e uma surpresa para o público.
Posteriormente ele se encontrou comigo, pediu desculpas, eu não tenho nada contra ele, Acho ele hoje um excelente comentarista, ele fala o que o torcedor, o que o povo quer ouvir, é muito corajoso para dizer o que pensa, coisas que poucos têm. Ele teve a grandeza e a humildade de reconhecer que errou… Pediu desculpas e a vida segue.
O reencontro se deu em 2017, promovido pelo canal ESPN Brasil, mas Neto já havia pedido perdão. Indo para fazer uma surpresa a José Aparecido, em frente ao Pacaembu, Neto disse que deveria ter sido preso pelo que fez. Veja o vídeo:
Antes disso, em 2014, Neto já havia dito que sua punição pela agressão fora pequena. “Eu cuspi na cara de um ser humano. Tomei 120 dias (de suspensão), mas deveria ter tomado um ano. Porque o que fiz foi muito mais sujo e mais grave do que todos aqueles que agrediram com a mão”, disse, no programa Os Donos da Bola, da Band.
Recentemente, em uma entrevista concedida ao cantor e ativista antirracista Mano Brown, no podcast Mano a Mano, o ex-craque afirmou que foi “covarde”, “sujo” e “racista” contra o árbitro.
Tido como temperamental e polêmico em campo, Neto também continuou com posições fortes na imprensa. Ultimamente, tem criticado a falta de atitude dos atletas atuais diante dos inúmeros casos de racismo. Se houve algo de positivo de uma agressão tão baixa, pode ter sido sua “conversão”: o homem José Ferreira Neto passou a enxergar o mundo e as pessoas com um olhar mais profundo e mais humano. Para o jornalismo, ainda que esportivo, isso é essencial.