O advogado, que morreu na semana passada, atuou de graça para dezenas de presos políticos, e conseguiu libertar (e salvar a vida de) vários deles

Modesto da Silveira em dois tempos: mais jovem, atuante em defesa dos presos políticos e chegou a se tornar deputado federal; mais tarde, envelhecido, continuou sua defesa dos direitos humanos. Era o advogado-soldado
Ditaduras, de direita ou de esquerda são nefandas. Mesmo quando supostamente ditabrandas, não são aceitáveis. O caos da democracia é mais civilizatório e legítimo do que qualquer ordem autoritária ou totalitária. Nas ditaduras nazista, na Alemanha, e comunista, na União Soviética, só havia um poder de fato, o Executivo, ao qual o Legislativo e o Judiciário eram subordinados. Presos políticos eram julgados e condenados à prisão ou à morte sem que advogados pudessem mover qualquer ação para defendê-los. Na ditadura brasileira, de 1964 a 1985, que era militar sem deixar de ser civil — é provável que o colaboracionismo de civis, como Pedro Aleixo, Milton Campos, Bilac Pinto, Delfim Netto, Roberto Campos, Leitão de Abreu e Petrônio Portella, tenha contribuído para torná-la menos cruenta —, advogados puderam atuar, ainda que sob pressão e até sequestros, quase livremente. Entre os grandes advogados que defenderam presos políticos estava Antônio Modesto da Silveira, que morreu na terça-feira, 22, no Rio de Janeiro. Faria 90 anos em janeiro.
O mineiro Modesto da Silveira merece uma biografia alentada. A sua é uma grande história. Enquanto não é escrita, vale a leitura do livro “Os Advogados e a Ditadura de 1964 — A Defesa dos Perseguidos Políticos no Brasil” (Editora PUC-Rio, 279 páginas), organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, com prefácio de d. Paulo Evaristo Arns. O texto “Modesto da Silveira: um soldado do humano”, da advogada Fernanda Machado Moreira, conta, em 34 páginas, a vida deste advogado notável, que dizia: “Onde precisarem de mim eu vou, eu sou um soldado”.
Nascido no distrito de Ponte Alta, próximo a Uberaba, Modesto da Silveira, “aos 5 anos, já cuidava de uma pequena lavoura”. Era filho de lavradores pobres. No primário, estudando ao lado da futura telenovelista Janete Clair, “aprendeu a ler e a escrever em poucos meses”. Mas, ao contrário de outros meninos, trabalhava numa pedreira e por isso parou de estudar ao completar o segundo ano do primário. Benedito Marra da Fonseca, um professor cego, percebeu que o adolescente de 16 anos era inteligente, só precisava de um empurrão e decidiu ajudá-lo.
Modesto da Silveira foi aprovado em primeiro lugar no exame de admissão e ganhou uma bolsa no Ginásio Oswaldo Cruz. “Foi o primeiro aluno de sua classe do primeiro ao último ano.” Em 1945, Luiz Carlos Prestes esteve em Uberlândia, então chamada de a “Moscouzinha Brasileira”, e o estudante católico decidiu ouvi-lo. Ficou impressionado com sua simplicidade e com suas ideias de igualdade. Fernando Machado Moreira anota que Prestes era “socialista e humanista”. Socialista, sim; humanista, talvez não (comunistas, notadamente os “filhos de Stálin”, como Prestes, raramente são humanistas).

Advogados lutaram contra a ditadura em defesa da liberdade
Com a abertura política ocorrida depois da queda de Getúlio Vargas, Modesto da Silveira, aos 18 anos, votou em Prestes e em “outros candidatos de esquerda”. No Rio de Janeiro, fez concurso para a Marinha Mercante, tendo sido aprovado em primeiro lugar. “Como praticante, viajou pelo mundo [América Latina, Europa, Estados Unidos] pela Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro.” Pela Frota Nacional de Petroleiros (Fronape), “passou quase sete anos navegando pelo mundo, de 1950 a 1957”. Passou seis meses em Glasgow, na Escócia. Em seguida, trabalhou como revisor e tradutor no jornal “O Globo”.
Em 1958, começou a estudar Direito na UEG (hoje Uerj). Estagiou no escritório de Bonfim Calheiros, na área de Direito do Trabalho, e, apoiado por Roberto Lyra, na Defensoria Pública junto ao 2º Tribunal do Júri. Pretendia ser criminalista. Ele e Luiz Werneck Viana filiaram-se ao Partido Comunista Brasileiro, o Partidão. Formou-se em Direito em 1962.
Com o golpe civil-militar de 1964, Modesto da Silveira começou a ser procurado por familiares de pessoas que estavam presas, como o líder bancário Antônio Pereira Filho, o “Pereirinha”, e Oton Canedo Lopes, vice-presidente da CGT. No Dops, não deixaram Sobral Pinto entrar para obter informações sobre os presos. Os dois advogados conversaram e decidiram que era necessário apresentar habeas corpus. “Tudo isso já no 1º de abril de 1964.”
Arrastado pela “cachoeira dos fatos” — a expressão é sua —, “Modesto mergulhou rapidamente na defesa dos presos políticos”. “Sua motivação era eminentemente a sensibilidade humana aliada a uma ideologia humanizadora e à sensibilidade jurídica de defesa da lei, do Direito, sobretudo dos direitos individuais, dos direitos humanos.”
Segundo a biógrafa, Modesto da Silveira “não falava em dinheiro com os clientes”. Ao advogar para presos políticos, deixava de ganhar dinheiro. Para economizar, chegou a deixar de fumar.
Hora do AI-5
Antes do Ato Institucional nº 5, “era mais fácil para os advogados conseguir soltar os presos políticos com alguma rapidez, porque a maioria das prisões era ilegal, não preenchia os requisitos obrigatórios. A maioria das vítimas era levada aos quartéis por meio de sequestros, e não prisões propriamente ditas”. Porém, ao eliminar o habeas corpus, o AI-5 dificultou a ação dos advogados. Oswaldo Mendonça disse a Modesto da Silveira que não havia mais como advogar para presos políticos.
Depois de ouvir o colega, Modesto da Silveira frisou que não deveriam desistir e que era preciso “criar” uma nova forma de habeas corpus, começando pela denúncia pública das prisões e torturas. Era preciso ser mais criativo. “Como o direito de petição não fora exterminado pelo AI-5, já que não podiam mais apresentar petições de habeas corpus, os advogados apresentavam petições simples, sob outro título, com fundamentação sólida e argumentação persuasiva, levando o juiz auditor a consultar o promotor de justiça encarregado do IPM e requisitar informações às autoridades pertinentes para saber se os dados trazidos pelos advogados eram verdadeiros. (…) O juiz geralmente dava uma decisão ponderada, de modo que tais petições praticamente tinham efeito de habeas corpus, fosse pela soltura, fosse para, pelo menos, garantir a vida do preso. (…) Não obstante todo o esquema adverso armado na Justiça Militar, em regra os advogados sensibilizavam o juiz togado, e os próprios militares que eventualmente vacilassem não tinham como resistir diante das provas de nulidade flagrantes. A grande maioria era absolvida na primeira instância, às vezes até por unanimidade de votos, quando não era absolvida no STM ou mesmo no STF.” O exposto sugere que a ditadura, mesmo com o AI-5, abria brechas para o império da lei.
Pressionando sempre, advogados, como Modesto Silveira, conseguiram salvar várias vidas, como a de Gildásio Westin Consenza. O advogado procurou o delegado Brayner, do Dops, e falou sobre Consenza. Inicialmente, o policial desconversou, mas, ao perceber que o “adversário” sabia que o esquerdista estava preso e deveria ser morto, recuou e admitiu que estava preso.
Sob pressão da ala dura, os advogados de presos políticos começaram a ser presos e sequestrados. Sobral Pinto foi preso em Goiânia. Evaristo de Moraes Filho foi detido na Ilha das Flores, ao visitar um cliente. George Tavares, Augusto Sussekind e Heleno Fragoso foram sequestrados, sem nenhuma acusação formal. Modesto da Silveira foi sequestrado em 1970.
Mesmo pressionado pelos militares, Modesto da Silveira não se intimidou. Evaristo Moraes Filho e George Tavares conseguiram libertá-lo. A OAB, antes omissa, decidiu se posicionar.
A tigrada do DOI-Codi sequestrou o ex-deputado Affonso Celso Nogueira Monteiro, com o objetivo de matá-lo, mas Modesto da Silveira conseguiu libertá-lo. O advogado também defendeu Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dodora. Torturadíssima, mais tarde, ela se matou no exílio, na Alemanha.
Modesto da Silveira conta que, numa visita a Recife, advogou para um jovem que foi preso, provavelmente porque estava com um livro do poeta Maiakóvski. O estudante levou uns tabefes para revelar “quem era aquele espião russo”. O supervisor dos agentes criticou um de seus subordinados, que seria ignorante: “Seu burro, são dois espiões — um brasileiro, ‘Maia’, e um russo, ‘Kovski’”.
Eleito deputado, convocado para votar a Lei da Anistia, ficou-se sabendo que estava hospitalizado. Deixou o hospital, em cadeira de rodas, e compareceu no Congresso. Não era a melhor Anistia, admitiu Modesto da Silveira. Mas, segundo o advogado, “foi graças àquela lei que conseguimos tirar muita gente da cadeia e fazer voltar, se não todos, quase todos os exilados e perseguidos políticos que estavam em toda parte do mundo, sobretudo na Europa”.
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