John Updike é o Balzac da classe média americana
10 maio 2014 às 10h55
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Este artigo foi publicado no Jornal Opção em fevereiro de 2009, quando John Updike morreu.
Os críticos mais reticentes à prosa de Updike são aqueles que também são reticentes aos Estados Unidos. Porque, de certo modo, Updike é um “biógrafo”, crítico e compreensivo, do modo de vida americano. A crítica certamente, ao não negar o capitalismo, não agrada os críticos de esquerda, dominantes nos cadernos culturais. Updike queria compreender criticamente, mas não destruir, não era um revolucionário. Era “apenas” um escritor
O escritor norte-americano John Updike era um polímata, mas, curiosamente, não acadêmico. É possível compará-lo ao crítico americano Edmund Wilson. O autor de “Rumo à Estação Finlândia” e responsável por firmar a reputação de Scott Fitzgerald (cuja prosa o surpreendia) e Ernest Hemingway (notando, com perspicácia, que era filho da prosa enxuta de Abraham Lincoln, Mark Twain e dos manuais de redação de jornais. O artigo figura no livro “Onze Ensaios”, com tradução de José Paulo Paes e seleção e prefácio de Paulo Francis) era um crítico brilhante (o que provam as análises à quente de Proust e Joyce em “O Castelo de Axel”, com tradução de José Paulo Paes) e, ao mesmo tempo, escreveu prosa. Sua prosa não é propriamente ruim, mas não tem o nível da literatura de Fitzgerald, Hemingway, Ralph Ellison, Faulkner, Saul Bellow, Philip Roth e John Updike. As 416 páginas do romance “Memórias do Condado de Hecate” são de uma chatice ariano-suassuniana, o que prova que o crítico notável apenas eventualmente se torna prosador relevante. Como nota George Steiner, a crítica sempre fica degraus abaixo da literatura. É uma tarefa menor. Updike, como Wilson, era um grande crítico, mas, diferentemente do tutor literário de uma geração, era também um escritor do primeiro time. Updike morreu na terça-feira, 27, de um câncer no pulmão. Tinha 76 anos e publicou mais de 50 livros (romances, contos, poesias, crítica literária, crítica de artes plásticas). Com uma qualidade acima da média.
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Os obituários de Updike, o americano tranqüilo, foram no geral generosos. Poucos destacaram sua crítica literária pertinaz e amorosa. Pelo menos um sugeriu que seus romances são superficiais (sem explicar devidamente por quê). Outros lembraram que era o cronista das pequenas cidades americanas — o próprio Updike dava-se esse rótulo (ligeiramente enganoso, por assim dizer). No Brasil, saiu apenas uma coletânea de sua crítica atenta, mas nada sensacionalista ou corrosiva. “Bem Perto da Costa — Ensaios e Crítica” (Companhia das Letras, tradução de Carlos Afonso Malferrari, 1991). Um dos bons momentos é a resenha da correspondência entre Edmund Wilson e Vladimir Nabokov. Os dois foram amigos e se tornaram inimigos por conta “da tradução que Nabokov fez de ‘Eugene Onegín’ (1964)”, de Púchkin. “Uma amizade que viveu pela linguagem morreu também pela linguagem. Não foi a política que criou entre ambos uma animosidade duradoura; não foi sequer a divergência de opiniões sobre [Thomas] Mann e [Maksim] Górki; foram sim palavras russas como ‘netu’, ‘vse’, ‘zloy’ e ‘pochuya’, todas as quais figuram no grande debate de Onegín” (“Edmund Wilson — Uma Biografia”, de Jeffrey Meyers, relata mais extensamente as razões da polêmica).
Num ensaio memorável sobre Walt Whitman, no qual destaca todo o talento do poeta americano, Updike tem a coragem de dizer, com acerto, que “os versos da reclusa Emily Dickinson mostram mais apetite pelos detalhes e sutilezas da psicologia humana do que os peãs de Whitman”. Nem Harold Bloom, um crítico abusado, ousou tanto.
Joyce e Memórias — Ao comentar as cartas de James Joyce (organizadas pelo indefectível Richard Ellmann), na resenha “O singelo Jim”, Updike nos oferece uma síntese precisa da literatura do Homero irlandês. Os textos sobre Hawthorne e Melville, resultados de palestras, John Cheever, Anne Tyler (ótima, mas subestimada no Brasil), Samuel Beckett, Flann O´Brien, Céline, Milan Kundera (“‘O Livro do Riso e do Esquecimento’ é brilhante e original, escrito com uma pureza e uma sagacidade que nos convidam a entrar de imediato.
Mas é também um livro estranho, de uma estranheza que nos tranca do lado de fora”), Gunter Grass e Auden são deliciosos. Vale a pena ler o artigo sobre a atriz e cantora Doris Day. Updike escrevia sobre ficção como crítico e, evidentemente, prosador. Por isso, não destruía seus pares (tudo indica que evitava publicar resenhas sobre livros ruins. A “New Yorker” certamente o liberava do tormento). Como Susan Sontag, escreveu, encantado, sobre a literatura de Machado de Assis.
As memórias de John Updike, “Consciência à Flor da Pele” (Companhia das Letras, tradução de José Antônio Arantes, 1989), não alcançaram grande repercussão no Brasil. Acredito que tenha a ver com sua defesa, intransigente, da Guerra do Vietnã. Num ensaio percuciente e corajoso, “Sobre não ser um dove”, Updike explica seu apoio ao governo americano. “Eu era liberal” — é assim que Updike resume seu credo. “Penso o seguinte: a paz depende da ameaça da violência. A ameaça não pode ser sempre vã. Em particular e em conjunto, atravessamos a vida à flor da pele, e quando nos roubam esta flor temos de lutar. (…) A paz não é algo a que temos direito, mas um descanso ilusório que obtemos.”
Nas memórias, Updike escreve uma carta aos netos Anoff e Kwame. Recentemente, aconselhou o presidente americano Barack Obama a ler o romance “O Golpe”, sobre uma ditadura africana, mas o líder do Partido Democrata está mais interessado nas sugestões do livro “Time de Rivais — A Política e o Gênio de Abraham Lincoln”, da jornalista e historiadora Doris Kearns Goodwin. Só uma mente cultivada e inteligente como a de Lincoln podia fazer um governo funcionar com uma equipe de rivais (o governo Henrique Santillo, formatado com santillistas e “aliados” iristas, não funcionou. Santillo era inteligente, mas era pouco político e não tinha paciência). Obama segue a mesma estratégia. Veremos se, com ele, funciona. Ah, sim os netos de Updike são filhos de sua filha branca com um “negro puro da África Ocidental” (lembram os netos de Chico Buarque, filhos de Carlinhos Brown e de uma de suas filhas).
Por que Updike se tornou escritor? Por conta de uma doença, psoríase, que adquiriu ainda criança e levou-o ao isolamento. “Por conta de minha pele, excluí qualquer emprego — vendedor, professor, financista, ator de cinema — que exigisse boa aparência. Por que me casei tão cedo? Porque, tendo uma vez encontrado uma mulher graciosa que relevou minha pele, não me arrisquei a perdê-la e a tentar encontrar outra.” A saída foi se tornar escritor, depois de estudar em Harvard e Oxford.
Updike admite, nas memórias, que foi grandemente influenciado por Chesterton, Kierkegaard, Karl Barth, entre outros. “… Senti-me livre para descrever a vida com a maior precisão de que era capaz, com especial atenção para traições e desgastes humanos. A pouca fé que tenho deu-me a coragem artística que tenho. Minha teoria era a de que Deus já sabe de tudo e não se escandaliza. E só a verdade tem serventia. Só a verdade pode ser edificada. De um ponto de vista inumano, mais elevado, só a verdade, por mais áspera, é sagrada. A verdade fabricada da poesia e da ficção cria um abrigo onde sinto-me seguro, abrigado no interior das plausibilidades entretecidas na imagem de um mundo real pelo qual não sou responsável. Tal maneira de escrever é, em essência, pura. A partir de uma vida agitada e aviltada, apurei meus livros. Eles são aparados, vivos, claros, particularmente quando acabam de chegar da gráfica em uma caixa de papelão, antes de os resenhistas deixaram neles suas máculas e de eu descobrir, como uma florzinha que insiste em desabrochar em uma superfície plana, uniforme e brilhante de sal, o primeiro erro tipográfico. No entanto, a ficção, como a vida, é uma coisa injusta; discrição e bom gosto desempenham nela um pequeno papel”. Sobre a fama: “A fama é uma máscara que corrói o rosto”.
O Updike mais famoso não é o crítico ou o memorialista, e sim o romancista profundo da vida americana, aquele que tem o olho clínico para o detalhe (“Uma voz fala no tom agudo que se usa para falar com animais de estimação” — em “Coelho Cai”), para aquilo que, de tão corriqueiro, não nos incomoda nem chama a nossa atenção. Nos obituários, talvez por falta de uma leitura atenta, disseram que Updike é melhor contista (o mesmo se diz de Hemingway) e que seus romances são superficiais. Não adianta: contos são importantes. São importantíssimos. Mas, quando se diz que os contos de um escritor são melhores que seus romances, o crítico está, sim, diminuindo a importância do prosador. Porque nenhum autor de romances se julga melhor como contista, porque o romance é a forma mais aceita e, portanto, admirada (o que explica Hemingway não ter se contentado em ser contista). Updike, embora grande contista, não era romancista superficial. Era um prosador que acertava tanto como contista (“Confie em Mim” contém contos muito bons. “S”é um romance, embora tenha sido apresentado, num jornal, como livro de contos) quanto como romancista. Percebo que os críticos mais reticentes à prosa de Updike são aqueles que também são reticentes aos Estados Unidos. Porque, de certo modo, Updike é um “biógrafo”, crítico e compreensivo (até certo ponto), do modo de vida americano. A crítica certamente, ao não negar o capitalismo, não agrada os críticos de esquerda, dominantes nos cadernos culturais (infestados por citadores de teóricos). Updike queria compreender criticamente, mas não destruir, não era um revolucionário. Era “apenas” um escritor.
Há pouco tempo, Philip Roth disse à “Folha de S. Paulo” que o americano é menos puritano do que pensam os estrangeiros. Tem razão. Na série “Coelho”, com 1.860 páginas, Updike traça um painel balzaquiano da vida americana — e não apenas das cidadezinhas (“Cidadezinhas” é o título de seu último romance publicado no Brasil), porque, no fundo, as cidadezinhas, pouco a pouco integradas, reproduzem, ainda que com menos agudeza e mais flexibilidade (há mais calma, menos apreço pelo progresso a qualquer custo. “Os que vivem correndo na frente não veem o que os mais lerdos percebem”, anota o narrador, em “Coelho em Crise”), a vida das médias e grandes cidades.
O sociólogo-escritor — A série “Coelho” é uma tetralogia que, em 2000, ganhou a novela “Coelho se Cala” para completá-la. “Coelho Corre” (1960), “Coelho em Crise” (1971), “Coelho Cresce” (1981) e “Coelho Cai” (1990), traduzidos com mestria pelo poeta Paulo Henriques Britto (surpreendentemente, em “Coelho em Crise”, ele usa linguagem de rua: “E aí, tem afogado o ganso?” É o negro Buchanan que faz pergunta ao branco Harry), relatam a história de Harry Angstrom, o Coelho (jogador de basquete frustrado), e de sua família. Harry é casado com Janice. Típico casamento de classe média da cidadezinha de Mt. Judge: “Mas quando [Harry] abre a porta vê sua esposa sentada numa poltrona, um coquetel a seu lado, vendo televisão, o volume bem baixo”. Rebelado, Harry deixa o emprego de vendedor, se torna jardineiro e toma por amante uma mulher gorda, Ruth (ela pergunta: “Você é rico?” Coelho responde: “Não, pobre”. O pai de Harry é tipógrafo. Ruth esconde de Harry que teve uma filha com ele). A rebelião dura dois meses. Ele volta para casa e diz: “Feliz por estar finalmente do lado certo”. Nas conversas, fala-se muito dos preços das coisas (carros, comida, televisor). O lema de Harry é: “A pessoa não tem que gostar de trabalhar. Se gostasse, então não seria trabalho”. A opinião de Harry sobre as mulheres: “A gente vive se desentendendo com as mulheres, porque o que elas querem é diferente, elas são de uma raça diferente.Ou elas cedem, como uma planta, ou arranham, como uma pedra. Em todo esse mundo verde, nada é melhor do que uma mulher de bom gênio”. O ideário da classe média? Talvez o ideário da maioria dos homens.
Numa cidade do interior da Pensilvânia, Coelho não deixa de ver filmes, como “Gigi”, “Sortilégio de Amor”, “A Morada da Sexta Felicidade”, “O Cão Felpudo” (talvez precursor de “Marley”, que tanto agrada a classe média, e não só, é claro). Janice viu “Quanto Mais Quente Melhor”, de Billy Wilder. O primeiro romance refere-se à segunda metade da década de 1950.
O romance esgota-se em si mesmo. Não precisa dos outros. Mas a leitura dos seguintes permite-nos entender que Updike está traçando um amplo painel da vida de indivíduos que subiram a ladeira social nos Estados Unidos. Indivíduos que são jogados para cima, na escola social, por intermédio de trabalho, casamento e investimentos. Pessoas que, de pobres, se tornaram integrantes de uma desesperada classe média. A classe média é a mais insegura, porque teme descer e tenta, desesperadamente, subir ainda mais. Talvez seja a classe social que mais se cobra, que mais se castiga e, por isso, lota os consultórios de psicólogos, psiquiatras e terapeutas alternativos.
“Coelho em Crise”, publicado em 1971, nos Estados Unidos, é um dos melhores da série, senão o mais bem-construído. Harry-Coelho, com “o nariz pequeno e o lábio superior ligeiramente levantado, que no passado valeram-lhe o apelido de Coelho”, reaparece como funcionário da Verity Press, até ser demitido por conta da modernização do setor gráfico, que aboliu a figura do linotipista. Está com 36 anos. Ele e o pai, Earl (dono de uma dentadura frouxa; crítico do partido de George W. Bush, diz: “Os republicanos não fazem nada pro povo”), andam de ônibus. Coelho bebe cerveja e está casado com Janice, aos trancos e barrancos, há 14 anos.
A família de Janice tem mais posses, pois é dona de uma concessionária, a Springer Motors, que vende veículos da Toyota. A mãe de Janice diz sobre o genro: “Ele não é mau não, mas senso moral nele é manga de colete”. Antes, Harry punha cornos na mulher; agora, pelo contrário, ganha um belo par de chifres. Janice o trai com Charlie Stavros, funcionário de seu pai na empresa. O marido diz: “… quem ia querer aquela boboca? Apaixonada pelo pai e pronto”. Ocorre que a “boboca” abandonou a vida de doméstica, empregou-se na concessionária do pai e foi morar com o amante. Ajudinha do narrador às suas personagens: “Uma das vantagens de ter um amante é que a gente vê tudo por um ângulo novo. O resto da sua vida vira uma espécie de filme, irreal, até engraçado”.
Janice parece perceber as mudanças comportamentais de modo mais arguto do que Harry: “Acho que ele [Coelho] voltou para mim, para mim e pro Nelson [filho do casal], pelos motivos tradicionais, e quer viver uma vida tradicional, mas ninguém mais vive assim, e ele sabe disso. Ele organizou a vida dele em termos de umas regras que ele sente que agora estão se dissolvendo. Quer dizer, sei que ele acha que está ficando defasado, vive lendo o jornal e assistindo ao noticiário da tevê” (Janice está falando da primeira separação, quando Coelho saiu de casa, deixando-a com o filho Nelson). O narrador faz a ponte, ampliando o entendimento de como a classe média se vê na história: “… a história está acontecendo mas não é tão importante quanto dizem os jornais não, a menos que a gente termine envolvida”.
Mais: “… a verdade vai acabar passando, é grande demais”. Janice, revolvendo o sentimento feminino — as mulheres vivem à procura não do príncipe encantado, e sim de homens que as despertem —, diz (ou melhor, o narrador pensa por ou com Janice): “Nós temos cordas que só as outras pessoas podem fazer soar”. A “filósofa” Janice acrescenta: “As mulheres gostam de mentira; a vida fica mais divertida”.
O narrador é tão cruel quanto Janice e constata: “Ele [Coelho] não consegue se apegar a nenhuma idéia e dar-lhe sentido: deve ser exaustão” (“Qualquer coisa, só para preencher o vazio com uma felicidade, para servir-se dela mais tarde”). A crítica, dura, é suavizada pela tese da exaustão. Coelho, pois, não é muito diferente da classe média brasileira, que detesta idéias e tem paixão por cerveja, churrasco e automóvel (recentemente, um garoto de 18 anos atirou numa garota, em Goiânia, para roubar o som e as rodas de um automóvel).
A irmã de Coelho, Miriam, a Mim, se torna uma espécie de garota de programa, puta, na Costa Oeste. Os negros aparecem, de supetão, na história: “Triste ser negro, sempre mal pago, os olhos deles não são como os nossos, vermelhos, escuros, cheios de um líquido sempre prestes a escorrer”. “Há negros demais nos ônibus.” O violento negro Skeeter é, aparentemente, um diálogo com o Ralph Ellison de “Homem Invisível”. O espantoso e, de certo modo, inexplicável incêndio na casa de Coelho soa kafkiano.
Atento aos acontecimentos históricos, Updike apresenta a chegada do homem à Lua e a Guerra do Vietnã (“Eu sou totalmente a favor”, diz Coelho, ecoando o próprio Updike). “O futuro está em serviços e software”, diz o narrador, num livro de 1971, quando Bill Gates era apenas um garoto. Apesar da vigência da idéia de progresso, da satisfação americana por ter se tornado a potência dominante, Harry se mostra pessimista e intolerante: “Este país [os Estados Unidos] está tão pirado de LSD, tão afundado na gordura, na conversa fiada, na sujeira, que só se jogassem bomba de hidrogênio em todas as cidades, de Detroit até Atlanta, a gente conseguia acordar, e assim mesmo a gente ia pensar que tinha sido só um beijo”.
Embora eventualmente seja apresentado como otário, quando deveria ser apontado tão-somente como inculto, Coelho é um sujeito perspicaz. Em 1969, com os Estados Unidos no auge, ele diz: “Nunca tive vontade de conhecer [outros países]. Vejo esses outros países na televisão, estão todos loucos para ficar iguais à gente, e queimam as nossas embaixadas porque não conseguem”. Ao mesmo tempo, Harry é patriota e diz para o sogro rico e pão-duro: “Para mim, os Estados Unidos continuam sendo o melhor país do mundo”.
As drogas estão na moda. As pessoas usam heroína, maconha, ácido, haxixe, bolinha e mescalina. Coelho usa drogas em companhia de alguns pirados, na casa onde mora com o garoto Nelson (sonha ter uma camiseta com a estampa de Che Guevara), que não foi levado por Janice. Reúne uma comunidade hippie em sua casa e tem um caso com Jill, uma garota de 18 anos, que acaba morrendo queimada no incêndio criminoso que ocorre na residência de Coelho. Este diz, rebelado: “Mas o que é que não é caretice agora? Só tomar droga e fugir do serviço militar. E deixar o cabelo crescer até entrar nos olhos”.
No terceiro romance da série, “Coelho Cresce”, publicado em 1981, Updike registra o ligeiro amadurecimento de Harry-Coelho. Nos romances de formação, como “A Montanha Mágica”, os escritores têm o hábito de mostrar o crescimento intelectual de uma personagem. Os romances “Coelho” são uma espécie de resgate da formação do homem Harry — só que ele não tinha veleidades intelectuais. Fica-se com impressão de que Harry cresceu fisicamente (tem, adulto, 1,90m), mas, no fundo, continua um meninão, como se Udpike estivesse nos dizendo que idade não significa, necessariamente, amadurecimento. Mesmo assim, pode-se falar que Harry cresce, daí o título “Coelho Cresce” — e não apenas financeiramente. “Coelho grunhe. Uma geração sem espírito de luta, sem gana, sem nada sólido que diferencie o que é fato do que é pura cascata. Satanismo, maconha, drogas, vegetarianismo. Chega a ser patético. Tudo entregue a eles de bandeja, e eles acham que a vida é igual ao que eles vêem na televisão povoada de fantasmas”.
Enquanto Coelho “cresce”, nos primeiros meses de 1979, “está acabando a porra da gasolina no mundo inteiro” (um problema que atinge todos, não só a classe média). Com a crise do petróleo, os automóveis japoneses, como Corolla, mais econômicos que as “banheiras” americanas, se tornam hegemônicos nos Estados Unidos. (Num momento de Fernando Collor, Harry-Coelho discursa: “Dizem que aqui [Estados Unidos] é o paraíso dos automóveis, mas são os estrangeiros que têm todas as boas idéias. Se quer saber, acho que Detroit deixou os duzentos milhões de americanos na mão. Eu preferiria vender carros americanos, mas aqui entre nós três [Coelho está conversando com um casal de jovens], são um lixo. Uma porcaria. São carros de mentira. […] Se dependesse de mim, nós venderíamos por peso todos os carros americanos, assim que eles entram. Só quem quer esses carros são os negros e os cucarachas, e mesmo eles vão acabar acordando um dia desses”. Só faltou chamá-los, à Collor, de carroças. Por sinal, há uma estocada de Nelson, de 22 anos, nos sul-americanos: “Na América do Sul, todos os governos são nosso fantoches”.)
Webb Murkett diz para Coelho: “O dólar vai continuar a perder o valor, Harry, enquanto eles não descobrem um jeito de tirar gasolina barata do álcool de cereais, o que vai devolver a força dos americanos. Cereais nós temos”. Interpretando Nelson, o narrador diz: “Essa história do Irã vai fazer o preço da gasolina subir ainda mais, mas vai acabar passando, não vão ter coragem de segurar os reféns presos por muito tempo”. O perspicaz Charlie Stravos anota: “Pelo menos isto [a crise do petróleo] vai evitar que os chineses e os negros façam uma revolução industrial”. Os negros não fizeram, mas viram um negro, Barack Obama, chegar à Presidência da República do país mais rico e poderoso do mundo. Os chineses fizeram uma grande revolução industrial, e mantendo o regime comunista combinado com o sistema econômico capitalista. Nesta prédica, Updike dançou. Updike menciona meninos de rua, na Pensilvânia, em 1979. Ele registra também a invasão do Afeganistão pelos russos. A História, com H maiúsculo, entra na história de Updike não de forma didática, e sim como parte da vida de suas personagens. Sobre 1980: “Uma estagnação mortal dá o sabor da nova década”.
Mesmo com estagnação, como a crise de hoje, as pessoas continuam vivendo, é o que nos diz Updike, com seus dramas, tragédias e comédias. Harry põe a cabeça no lugar e se torna vendedor de Toyotas na Springer Motors. Torna-se um bom vendedor e, paradoxalmente, se torna amigo do grego Charlie Stravros, ex-amante de sua mulher. Charlie, um figuraço que se apresenta sempre doente, mas parece mais forte do que sugere (inclusive, transa muito bem, segundo Janice), costuma dizer: “É a maluquice que nos mantém vivos”.
Coelho e Janice (que perderam uma filha) voltam a morar juntos e, com eles, o garoto Nelson, agora crescido. Janice mudou e é uma mulher avançada, exigente sexualmente, mas nem sempre correspondida por Harry. Uma boa síntese do casal, e dos que vivem em torno deles, todos gente de classe média, consumistas, é expressa pelo narrador: “Na meia-idade, de certa forma você carrega o mundo nas costas, mas assim mesmo o mundo dá a impressão de estar mais do que nunca fora do controle, a pessoa que você era na infância se esfacela e é distribuída como os pães multiplicados do milagre”.
Ao “examinar” a cabeça de Coelho, num exercício que lembra Faulkner (ao expressar o sentimento de um débil mental), o narrador diz: “Quando mais história você acumula, mais é obrigado a viver. Depois de algum tempo, ela fica excessiva, e talvez seja nesse momento que os impérios comecem a decair”. De um romance para outro, Updike, ou suas personagens, fica um tanto quanto desencantado, talvez cético, e não cínico. As mulheres não saem muito bem: “… depois dos quarenta qualquer mulher fica com um ar assombrado, arregalado, de olhos fixos”.
Há salvação para aqueles que não buscam conforto espiritual no mundo das artes? Updike, que não quer convencer ninguém de nada, diz pela boca do narrador, que interpreta o pensamento de Coelho: “Podemos rir o quanto quisermos dos sacerdotes, mas eles sabem dizer as palavras que queremos ouvir, as palavras que os mortos disseram antes”. O pensamento de Coelho organizado pelo narrador: “Talvez Deus esteja presente no universo pela mesma razão por que existe sal no oceano, para dar-lhe gosto”. “O problema é que, mesmo que exista um Céu, como é que pode existir um Céu que as pessoas aguentem para sempre? Na terra, quando você fica entediado e olha em volta, as coisas mudaram, você já está mais perto da cova, e é interessante”, disserta o narrador a partir dos pensamentos de Coelho. Imagine, leitor, a classe média, perdulária e, às vezes, amoral, sem a religião, católica ou evangélica, para controlá-la e confortá-la?
Afinal, a classe média, o objeto de Updike, é infantil, juvenil ou adulta? “A vida, exatamente como acham no começo, consiste em brincar de adulto”, sugere o narrador, a partir do garoto Nelson. Depois, outra pancada no juveniilismo: “Como é que dá para respeitar o mundo se vê que está sendo governado por um bando de meninos que envelheceram?”
Há pelo menos dez anos, os brasileiros parecem encantados com os carros asiáticos, principalmente os japoneses. O Corolla, da Toyota, e o Civic, da Honda, são dois dos carros mais admirados pelos brasileiros. O objeto de desejo da classe média patropi. A classe média americana descobriu o Toyota Corolla SR-5 em 1979. Ao compreender a classe média americana, Updike acabou por compreender a classe média ocidental. Seu romance, portanto, é um retrato, ficcional, de todos nós.
O que Updike nos diz, ao examinar a aparente pequenez da classe média, suas limitações existenciais e intelectuais, é que ela tem, sim, uma vida rica. Só não é uma vida intelectualizada, mas seus problemas e alegrias são semelhantes, ainda que não esbocem uma ideologia justificadora, aos daqueles que são intelectuais e têm uma vida espiritualmente mais iluminada. A classe média tornou-se melhor, ainda que duramente exibida, depois da prosa de Updike. É consumista, não é dada à leitura de bons livros, vê filmes e novelas (Janice, sua mãe e Tereza, a Pru, assistem as novelas “Em Busca do Amanhã”, “Dias de Nossas Vidas”, entre outras) e ouve música de segunda categoria. Coelho corre diariamente e, rico, joga golfe, e Janice joga tênis “três ou quatro vezes por semana” e pertence ao Rotary. Janice passeia por shoppings. Coelho ouve música no estilo discoteca. Os Bee Gees “assumem” o lugar da disco music. A dieta está na moda: “As pessoas hoje querem ter a impressão de que comem menos”. Mas ambos têm uma riqueza mundana a ser interpretada com mais perspicácia. É o que faz Updike.
O mestre Updike é daqueles escritores que não perdem a dimensão individual — as histórias miúdas da vida privada — e sabem introduzi-la, ou captá-la, na história geral dos Estados Unidos e do mundo. Nesse sentido, ecoa Balzac e mesmo Tolstói, mas com a delicadeza narrativa de Henry James. A partir de vidas aparentemente insípidas, como as de Harry-Coelho e Janice, Updike constrói grandes painéis da sociedade americana, com prioridade, claro, para a classe média, mas com um olhar às vezes arguto para as classes altas e para a plebe; há um olhar ligeiramente compassivo para imigrantes e negros.
O leitor imediatista tende a avaliar que Updike chega a ser sádico na descrição das fragilidades, mentais e comportamentais — a estupidez —, de suas personagens da classe média. A crueldade, porém, é aparente, pois, ao descrever minuciosamente seu objeto, a classe média, com toda a sua pobreza cultural e riqueza humana, às vezes vista como torpeza, o escritor mostra-se uma espécie de sociólogo ou antropólogo rigoroso mas apaixonado de homens e mulheres como Harry e Janice, que, no fundo, querem apenas viver suas vidas em paz, fazendo seu sexo seguro, eventualmente admitindo uma troca de casais, como numa viagem ao Caribe, ou mesmo aventuras extra-conjugais.
Updike descreve tão-bem o modo de viver e ser da classe média porque, longe de detestá-la, de odiar sua futilidade cotidiana, de algum modo a ama. E amá-la significa compreendê-la. Updike não denuncia a classe média, compreende-a e a explica… para ela mesma.
Voltemos a Harry (Harold) Angstrom. Ele agora é rico, sócio da Springs Motors. Gosta de Barbra Streisand e mora na grande casa dos pais de Janice. Não é impotente sexualmente, mas perdeu parte do interesse sexual. Ele culpa o fato de ter dinheiro. Está gordo (“Na idade dele, precisa usar chapéu. E tomar vitamina C também ajuda. Daqui a pouco vai estar tomando geritol”. Mais: “Com a idade, as pessoas vão ficando mais largas da cabeça aos pés”). “Nunca lê livros, só o jornal.” Vive às turras com Janice. O narrador parece entender bem a falta de sintonia, ou, quem sabe, pelo contrário, a sintonia de Harry e Janice: “… um dos laços que existem entre eles sempre foi que a confusão dela se mantém equivalente à dele”.
Ao beber champanhe na festa de casamento de Nelson e Pru, Harry, rico, lembra-se do pai, pobre: “O gosto de champanhe persiste em trazer-lhe a lembrança de seu pai, coitado. Cerveja, água ferrugenta e sopa de cogumelos em lata”. Ele próprio “decolou: está voando bem alto, rumo a uma ilha em sua vida”. A morena Janice, aos 44 anos, dirige um Mustang conversível, bebe vodca com soda ou água tônica. Voltou a fumar. “Nós não somos Deus”, diz e arranca uma resposta de Harry: “Ninguém é”.
Nelson fuma maconha. Harry, que havia fumado na juventude, não aprova. Nelson não é o filho de seus sonhos, mas é o próprio Coelho quem diz: “Você se esforça tanto para conseguir a atenção dos pais a vida toda que parece estranho continuar a viver sem eles”. Webb Murkett diz: “Marty, o [filho] mais velho, me disse: ‘Papai, obrigado por ter sido tão filho da puta. Eu aprendi a cuidar da minha vida'”. Nelson é mais terra-a-terra: “Meu pai [Coelho] é um babaca”.
Na página 33, numa espécie de tributo à literatura modernista, à James Joyce, Updike escreve um parágrafo em pontuação. É como se dissesse: “Também sei fazer isto”. E faz, com facilidade.
No quarto volume da série, “Coelho Cai”, de 1990, assistimos o desmoronamento do mundo de Harry. Sua formação está completa e ele… pode morrer. O que Updike descobriu? Que Harry não mudou. Permaneceu um garotão. A classe média não deixa de ser média, mediana, por ter mais dinheiro. Não consome nada que envolva riscos. Consome o que é apontado como certo e chique.
Nascido em 1933 (Updike nasceu em 1932), Coelho tem 55 anos e pesa 104 kg (ele próprio se chama de baleia. “Todo mundo empaturrado, agora é assim que a gente vive.”). “Uma pontada fria e súbita de dor desce seu braço esquerdo, passando pela axila.” Há uma “sensação de constrição no peito”. Nelson assumiu o comando da concessionária e torra dinheiro comprando drogas pesadas. Coelho e Janice mudam-se para a Flórida, em 1984. Ele se diz uma “ave de arribação”. Tem dificuldade de urinar. Assiste “Lassie”, ao lado da neta Judy, e chora. Judy não chora. “Lassie não faz parte da infância perdida de Judy.”
A velhice chega e, com ela, alguns problemas: “Os casais velhos, como ele [Harry] e Janice, emitem um cheiro bolorento de caules de flores mortas, apodrecendo no vaso”. Coelho sofre um infarto. O Dr. Breit, ao atender Harry, o chama de Harold, o que o leva à infância. Morrem várias pessoas, entre elas Slim, amigo de Nelson, de Aids. “… Nada é muito importante, daqui a pouco todos nós estaremos mortos”. Harry irrita-se com as orientações médicas: “Esse cara [o médico Olman] tem um preconceito contra batata frita e cachorro-quente. Se Deus não queria que a gente comesse sal e gordura, porque Ele fez essas coisas tão gostosas?”
Harry sai um pouco de cena, por conta da doença, e Nelson e Pru (com quem Harry, amoral, transa uma vez) assumem o palco. Nelson usa cocaína, crack e maconha. (Na página 340, fala-se, brevemente, dos perigos do amianto.)
A concessionária, sob Nelson, está em decadência. O grande negócio (década de 1990) são as empresas de alta tecnologia. “Agora está difícil encontrar uma estação que não seja de música country nem de pregação religiosa.” Não se está falando de Brasil.
Harry tem sua Madeleine. Era muito ligado à mãe e frequentemente se lembra da infância. “Havia naquele quarto [de sua casa, na infância] um gosto, de linóleo, ou como tinta quente no parapeito da janela, ou de baunilha e noz-moscada quando sua mãe fazia bolo, que ele quase consegue sentir de novo, mas não, o sabor desaparece nas sombras, atrás da serpentina prateada, com seus meandros enfeitados com volutas em baixo-relevo”.
Ao final da leitura da tetralogia, o leitor se torna íntimo de personagens como Harry e Janice, compreende seus dilemas, é quase solidário e tem certa simpatia por eles, por mais que sejam vazios culturalmente. Um bom teste para um romance é verificar se os personagens são retidos por nossa memória. Harry e Janice são meio sem sal, principalmente Janice, mas, concluída a leitura, são retidos por nossa mente. São seres humanos comuns, mais próximos de Leopold Bloom do que poderíamos pensar.
Falemos, rapidamente, dos outros livros de Updike.
Como era expert em artes plásticas, Updike escreveu um romance muito bom sobre Jackson Pollock — “Busca Meu Rosto” (Companhia das Letras). É um romance e, por assim dizer, uma aula sobre como a literatura pode iluminar outras artes, como as plásticas. Ele é autor do excelente “Pai-Nosso Computador” (Rocco), do divertido “O Sabá das Feiticeiras” (“As Bruxas de Eastwick”, Rocco), o interessante (mas menor) “Brazil” (Companhia das Letras), o ótimo “Memórias em Branco” (Companhia das Letras) e “Gertrudes e Cláudio” (Companhia das Letras), que não li. Entre os mais antigos, e muito bons, estão “Casais Trocados” (Record), “Case Comigo” (Record), “Um Mês Só de Domingos” (Record), “O Golpe” (Nova Fronteira) e “O Centauro” (Record).
A prosa de Updike é elástica e multifacetada. Desconfio que a maioria dos críticos que percebe “certa superficialidade” não tenha lido o conjunto de sua obra. Deve ter lido, no geral, comentários esparsos na imprensa mundial. No Brasil, a crítica de jornal vive de citação de obras críticas, tem-se pouco apreço pela leitura direta de literatura.