O médico Boanerges de Souza Massa estudou na USP, militou na ALN de Carlos Marighella e no Molipo e foi assassinado por militares em Formosa 

“O Exercício da Incerteza — Memórias” (Companhia das Letras, 295 páginas), de Drauzio Varella, é um livro que deveria ser lido por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, estudantes de Medicina. Leitores leigos também podem tirar proveito daquilo que o oncologista relata, em capítulos curtos e texto preciso. Aqueles que apreciam a história do país ficarão sabendo do guerrilheiro Boanerges de Souza Massa, que foi amigo do médico-oncologista.

No livro “A Ditadura Escancarada” (Intrínseca, 528 páginas), Elio Gaspari escreve: “Boanerges de Souza Massa foi considerado um desaparecido político”. Leia abaixo mais informações sobre o guerrilheiro da ALN e do Molipo, que, depois de preso, foi assassinado por militares do Exército, no município de Formosa, em Goiás, no Entorno de Brasília.

Quando Drauzio Varella entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (aprovado em segundo lugar), em 1962, Boanerges estava no terceiro ano. Pobre, dava aulas em cursinho para se sustentar. Durante o dia estudava Medicina e, à noite, era aluno de Direito da USP.

Ousado, Boanerges disse aos colegas: “Estamos no início do quinto ano, o mais calmo do curso. Vamos falar com os professores para nos liberar das aulas por um mês, para viajarmos pela Europa”.

Drauzio Varella: um dos mais importantes divulgadores de ciência do país | Foto: Reprodução

Desconfiados, alguns alunos riram e outros apuparam Boanerges. Mas o estudante insistiu: “Estou falando tão sério que comprei um Renault Gordini para rifarmos”.

Sem se importar com os céticos, Boanerges apareceu na faculdade com blocos de rifas para o sorteio do automóvel. O Gordini era o “sonho dos jovens da época”.

Meticuloso, Boanerges explicou aos colegas o seu planejamento, na síntese de Drauzio Varella: “Os recursos obtidos pagariam as passagens aéreas, as estadias nos Albergues da Juventude instalados em diversos países e o aluguel dos carros Renault na França, com os quais os viajantes seguiriam pelas principais cidades europeias. (…) Só não contou que o tal Gordini ainda não existia, que seria comprado com o dinheiro adquirido com a venda das rifas”.

Feitas as rifas, “quase cinquenta alunos de fato viajaram para a Europa”. Depois, “mais de sessenta estudantes da turma” também viajaram.

“Devo à ousadia desse rapaz de inteligência irrequieta a oportunidade de conhecer a Europa nos anos 1960 na companhia de um bando alegre de colegas”, anota Drauzio Varella.

Boanerges de Souza Massa: guerrilheiro da AL e do Molipo | Foto: Reprodução

Na Europa, o estudante de 23 anos assistiu a final da Copa do Mundo de Futebol de 1966, na qual a Inglaterra derrotou a Alemanha e foi campeã.

Popular, por ter organizado a viagem dos colegas, Boanerges se candidatou à presidência do Centro Acadêmico de Medicina, com o apoio de Drauzio Varella, que dirigia o “Bisturi”, jornal dos alunos. Não foi eleito. Mas os dois se tornaram amigos.

Depois de formados, Drauzio Varella e Boanerges perderam contato. O médico reapareceu num hospital do Capão Redondo, em São Paulo. Boanerges acionou o cirurgião Antonio Marmo Lucon, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, e pediu que operasse “um amigo que estava com um quadro de abdômen agudo”.

Marmo percebeu que o ferimento havia sido provocado por bala, operou a pessoa e, ao término da cirurgia, disse: “Boanerges, agora nós vamos até a delegacia. Tiro é ocorrência de notificação compulsória”.

Boanerges retrucou: “Vai sozinho, eu não vou. Vou levar o doente embora”. O diretor do hospital tentou impedir a saída do paciente.

Porém, ao lado de Boanerges, três homens — guerrilheiros — puxaram revólveres calibre 38 e levaram o paciente.

Ao comunicar o fato numa delegacia, Marmo ouviu, relata Drauzio Varella, “que o paciente provavelmente seria o rapaz ferido num assalto a uma agência bancária no bairro de Pinheiros”. Sob censura, a imprensa não noticiou a história.

Dez dias depois, Boanerges ligou para Marmo “perguntando se podia retirar a sonda gástrica do doente”.

Drauzio Varella conta que só teve notícias de Boanerges “anos mais tarde, no fim da ditadura. Boanerges tinha feito treinamento em Cuba, para onde viajara a bordo de um avião comercial sequestrado na Argentina. Teria voltado ao Brasil com o grupo do Movimento de Libertação Popular [Molipo] que se instalou no norte de Goiás, região onde foi preso e transferido para Brasília. Lá, foi executado. O paradeiro de seu corpo é desconhecido”.

Guerrilheiro foi morto e enterrado em Formosa, no Entorno de Brasília

A história de Boanerges de Souza Massa tem sido contada em livros, mas talvez não esteja inteiramente esclarecida. Certo é que foi morto por militares do Exército, em Formosa — município goiano que fica no Entorno de Brasília. Ele havia sido preso em Pindorama de Goiás (hoje Pindorama do Tocantins), em 1971.

Boanerges, o Felipe, foi militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), dirigida por Carlos Marighella e, mais tarde, por Carlos Eugênio Paz, o Clemente. Em seguida, depois de treinar guerrilha em Cuba, se tornou integrante do Movimento de Libertação Popular (Molipo). Aparentemente, havia uma ordem nas Forças Armadas para matar todos os “cubanos”, quer dizer, os membros do Grupo da Ilha (referência a Cuba) ou Grupo Primavera ou Grupo dos 28. Por terem sido treinados por tropas especiais de Fidel Castro, eram considerados guerrilheiros excepcionais, portanto “perigosos”, e por isso o governo do presidente-general Emilio Garrastazu Médici decidiu jogar pesado. Não era para deixar escapar nenhum deles. De fato, escaparam poucos.

Boanerges de Souza Massa: guerrilheiro que foi morto por militares, entre 1971 e 1972 | Foto: Reprodução

Na cidade de Araguaína, no Norte de Goiás (a cidade agora pertence ao Estado do Tocantins), começaram a atuar Jeová de Assis Gomes, o chefe do grupo, Boanerges, Ruy Carlos Vieira Berbert (Silvino/Joaquim), Sérgio Capozzi, Jane Vanine e Otávio Ângelo. Estavam preparando a guerrilha rural e, em alguns casos, tentando sobreviver ao cerco dos militares.

Para disfarçar ou sobreviver, Boanerges trabalhava como vendedor de produtos farmacêuticos. Quando foi preso, em Pindorama, em 1971, usava os nomes de Júlio Martins e Moisés Leôncio Braga.

De Pindorama foi levado para Porto Nacional, onde havia uma base aérea. De lá, o Centro de Informações do Exército (CIE) o levou para Brasília. Teria sido torturado para entregar os companheiros. Entretanto, dado o caráter “móvel” dos guerrilheiros, que circulavam por várias cidades — sem se fixarem por muito tempo numa localidade —, as informações, se efetivamente fornecidas, talvez não tenham dado resultados positivos para os militares.

A jornalista Taís Morais, no livro “Sem Vestígios” (Geração Editorial, 239 páginas), relata que ficou a suspeita de que Boanerges tenha delatado seus companheiros do Molipo. “Carioca sabia que não era verdade”, anota a pesquisadora. O soldado Geverci disse a Carioca (o militar Joaquim Arthur Lopes de Souza, o Ivan, que combateu a Guerrilha do Araguaia) a respeito do guerrilheiro: “Foi feito e enterrado por aí [na região do município de Formosa, em Goiás]. A equipe veio, levou o homem de madrugada e sumiu com ele”. Como estava preso, não oferecendo qualquer perigo para seus captores, pode-se sustentar que foi assassinado pela ditadura civil-militar.

Taís Morais anota: “Boanerges descansa em algum lugar próximo a Formosa, em Goiás”. Trata-se de um personagem histórico que estava esquecido e que foi “ressuscitado” pelas memórias do médico Drauzio Varella, de 79 anos.