Marília Mendonça se foi jovem demais, mas teve tempo de dar lugar de fala às mulheres e “libertá-las” da opressão do machismo no gênero

Marília Mendonça (ao centro), com a dupla Maiara e Maraísa: as “patroas” liderando o empoderamento | Foto: Reprodução

Que a música sertaneja é um terreno fértil para o machismo e a misoginia isso é coisa bem fácil de comprovar. Se recentemente Henrique & Juliano cantaram “vai namorar comigo, sim!” e “se reclamar, cê vai casar também” (Vidinha de Balada, música que virou hit em 2017), para ficar em apenas um de vários exemplos mais contemporâneos, os “modões”, o sertanejo chamado “raiz” ou “caipira”, também era pródigo em discursos com o mesmo viés.

Cabocla Tereza, de Raul Torres e João Pacífico, eternizada na voz de Tonico & Tinoco, conta o caso de um feminicídio após uma infidelidade da mulher. Mais insano é ouvir, com os ouvidos da atualidade, a letra de Maria Chiquinha cantada pela dupla infantil Sandy & Junior – este que, há dois anos, disse que era inaceitável algo parecido num show hoje em dia. Resumindo o enredo de Maria Chiquinha, fala jocosamente de um homem que resolve arrancar a cabeça da mulher por desconfiar que ela o traiu.

Boiadeiro de Palavra, um dos sucessos de Tião Carreiro & Pardinho, conta a história do recém-casado que resolve devolver a mulher para o sogro por ela ter cortado o cabelo sem seu consentimento. Antes, porém, ele leva a esposa de volta ao salão e ameaça de morte o barbeiro se ele não terminar o serviço: rapar a cabeça. Serviço feito, o homem dá uma volta na praça para humilhar de vez a “morena careca”.

Raríssimo encontrar quem nunca ouviu alguma dessas ou de outras músicas – principalmente se você nasceu em Goiás – que trazem a figura do sujeito traído ou abandonado que, amargurado, busca se vingar. Alguns cantaram (e cantam) e outros certamente já dedilharam no violão seus acordes.

Abrindo parênteses: é bem verdade que a violência e o desrespeito contra a mulher expostos nas canções não são exclusividade do gênero: bastaria recordar Sílvia, do Camisa de Vênus (“todo homem que sabe o que quer pega o pau pra bater na mulher”); ou Ciúme, do Ultraje a Rigor (“eu quero levar uma vida moderninha / deixar minha menininha sair sozinha (…) mas eu me mordo de ciúme”); Faixa Amarela, de Zeca Pagodinho (“mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela / vou lhe dar uma banda de frente / quebrar cinco dentes e quatro costelas / vou pegar a tal faixa amarela / gravada com o nome dela / e mandar incendiar / na entrada da favela”.

Ainda em 1968, Elza Soares, da vanguarda dos anos 60 e hoje ícone dos movimentos negro e LGBTQIA+, cantou uma canção de Ataufo Alves chamada Mulata Assanhada: “Ai, mulata assanhada / Ai, meu Deus, que bom seria / Se voltasse a escravidão / Eu comprava essa mulata / E prendia no meu coração”.

Voltando ao foco, já houve no passado grandes ícones femininos na música sertaneja. Inezita Barroso talvez seja o maior; Inhana, da dupla com Cascatinha, também marcou época, e Nalva Aguiar e Sula Miranda alcançaram algum sucesso entre os anos 70 e 80. Tiveram também duplas, como as Irmãs Galvão, que marcaram a cena. Mas o maior nome antes de Marília Mendonça, sem dúvida, foi Roberta Miranda, uma cantora respeitável e ainda melhor compositora.

O que difere Marília de todas as outras? É que a goiana compôs e cantou dando lugar de fala à mulher. Antes dela – mesmo com Roberta Miranda –, as vozes femininas apenas reproduziam o discurso posto e a hegemonia masculina. Não havia discussão sobre o conteúdo agressivo das letras – e talvez seja isso que incomoda tanta gente ao dizer que “o mundo ficou chato demais”.

Por isso, a goiana se tornou a líder maior de um movimento que hoje é chamado “feminejo”. Em suas letras, a mulher tem os mesmos direitos que o homem – se é traída, também pode trair; se é desprezada, a fila anda; se a fazem sofrer, ela diz para a amiga: “supera!”. É a dose de empatia que fez uma geração inteira de garotas que cresceu ouvindo o sertanejo universitário ver contemplado seu lugar para se antepor ao vai-namorar-comigo-sim. É uma tomada de espaço como nunca se viu no gênero.

É verdade, Marília Mendonça é um produto da indústria cultural. Sim, mas os Beatles foram também e, ao mesmo tempo, são louvados tanto por sua arte como pelo que representaram e ainda representam. Por falar nos garotos de Liverpool, suas músicas não passaram invulneráveis ao machismo: em You Can’t Do That e Run For Your Life estão lá a prepotência e a opressão do homem sobre sua “amada”. Com certeza não as escreveriam hoje: ainda que certa casta de “conservadores” use sua verborragia, nesse sentido o mundo mudou, para melhor. E melhor para as mulheres – ainda que falte tanto por fazer.