Um dos mais antigos e famosos vigilantes das histórias em quadrinhos é o Batman, o herói que é a própria noite autoproclamada. Na internet, é comum achar sátiras que utilizam dessa figura para debater a desigualdade social. Por exemplo, uma criança rica e herdeira mesmo que perca seus pais e fique órfã, vai sofrer, mas ainda terá uma vida mais confortável e com mais oportunidades profissionais e financeiras do que a maior parte da população. Ele com certeza terá agua e saneamento básico, não vai faltar uma boa educação. Sem mencionar o tempo livre para academia e artes marciais.

E para cada Batman, que explora o idoso Alfred, agride os criminosos da cidade, e interfere no trabalho da polícia; talvez surjam mais Coringas. Porque ele representa quem não tem mais nada para perder. Quem não tem o que perder, seja no sentido de vínculos ou condições de vida, assim como o vilão, pode ser extremamente imprevisível. E a cada vez que perguntam sua história de vida, existe uma profunda ferida e desamparo, mesmo que a mesma história nunca seja contada duas vezes. Cada caso é único e cheio de particularidades, e mesmo assim, nem mesmo o Batman deveria ter o direito de pular diretamente para as conclusões por conta própria.

Casos de justiceiros

Um justiceiro é uma pessoa que, ao presenciar um ato criminoso, sente-se compelida por um senso de injustiça a agir fora dos limites da lei, buscando penalizar aqueles que acredita serem os culpados pelo delito. Este comportamento é frequentemente referido como autojustiça ou vigilantismo, que se traduz em buscar justiça por conta própria, com as próprias mãos. Existem dois casos recentes que repercutiram mais e devem ser relembrados com a devida atenção, principalmente considerando o aumento de frequência dos casos.

Primeiro o suspeito de matar a estudante Amélia Vitória, que teve a sua casa queimada por populares. Esse homem, de fato, teve o carro apreendido por passar na rua no momento em que o corpo da adolescente foi deixado na calçada. O homem, que trabalha como pedreiro, foi tido como suspeito de ter cometido o crime contra a adolescente. A indignação foi alimentada durante dias após a descoberta do corpo da adolescente de 14 anos, que saiu para buscar a irmã na escola.

O sensato, ainda que atice a ansiedade ver culpados e suspeitos soltos, é aguardar a ordem legal das coisas e cobrar para que as instituições responsáveis atuem efetivamente. E isso também é política. Talvez parte do problema seja a aversão atual das pessoas à política, somada a um imediatismo geracional e a sensação viciante, encontrada com frequência na internet, de não existirem limites. Porque essas pessoas sabem que não estão acima da lei, mas elas podem se sentir legitimadas por discursos e bolhas nesse sentido.

O outro caso, igualmente revoltante, aconteceu na cidade de Tabatinga em São Paulo, onde um homem espancou a sua esposa grávida. A vítima foi encontrada em casa, com 32 anos e no sexto mês de gestação, ela tinha diversos hematomas e cortes, principalmente na região da cabeça, o que gerou uma hemorragia intracraniana que deixou sequelas. O suspeito fugiu do local antes da chegada da Polícia Militar e a irmã da vítima foi nas redes sociais exigir justiça, com toda a razão. Ainda que, na minha humilde opinião, essa justiça não devesse ter acontecido pelas mãos do povo. O agressor teve o rosto desfigurado por populares. E saber disso gera em muitos a sensação de que “pelo menos a justiça foi feita”.

Ainda assim, muitas pessoas simpatizam e se solidarizam com a causa. Não pela lei, não pela justiça, mas muitas vezes por argumentos como “imagina se fosse com a sua família”. Por isso, também vale lembrar que onde o estado não é capaz de garantir os Direitos Básicos da população, parte da população pode vir a buscar meios de conseguir o necessário para sobreviver. Essa é uma boa reflexão para essa semana, já que no dia 10 de dezembro é o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E, querendo ou não, tanto as vítimas quanto os culpados são humanos que tiveram os seus direitos violados a partir do momento que se legitima o vigilantismo.

Cinema x Vida Real

Em diversas obras da literatura e do cinema, críticas sociais são construídas utilizando paralelos da vida real. Uma pergunta que já atiçou muitos estudiosos se resume em: será que a vida imita a arte ou a arte imita a vida? As duas coisas, na verdade, são tão entrelaçadas que seria mais fácil explicar porque o ovo veio antes da galinha.

“Os Sofrimentos do Jovem Werther” é um livro de um escritor alemão, publicado em 1774, é uma obra marcante que retrata com romantismo e detalhes o suicídio de seu protagonista, Werther. 200 anos depois, o “Efeito Werther” foi um termo cunhado pela sociologia para descrever o fenômeno de imitação do comportamento suicida. Muitas fatalidades foram encontradas com cópias do livro, vestindo roupas semelhantes às descritas e até mesmo seguindo o “método” escolhido pelo protagonista para por fim à própria vida.

E agora a moda são os super-heróis, e são muitos para tentar citar em uma só matéria. Entretanto, nas dublagens o termo “vigilante” já era encontrado de forma romantizada, como Robin Woods contemporâneos. E sátiras, como é visto na série The Boys, muitas vezes não são bem interpretadas e compreendidas. O personagem Homelander, que representa o mais poderoso super-herói quando desconhece limites, faz de tudo para passar uma boa imagem de “defensor do país”, quando não defende nada além dos seus próprios interesses.

A teoria mostra que os justiceiros tentam, de alguma forma, resgatar o ideal de justiça perdido. Uma vez que o Estado, que é o responsável pela manutenção da segurança pública, não está chegando da forma adequada, surge o ideal do justiceiro. É um caminho para a barbárie pura e simples. E porque? Assim como cinema, esses casos de vigilantes surgem exatamente em situações que o Estado e a Justiça falham: seja no seu papel de garantir melhores condições de vida para a população, seja na questão da punição adequada para cada crime.

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