O fim de semana passado não foi bom para a causa da diversidade e da igualdade racial. Pior: a coisa desandou porque quem encabeça essas políticas públicas no governo federal atravessou a rua para pisar em uma casca de banana. O inevitável tombão fez (e ainda faz) a festa da extrema direita.

No domingo, 24, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, foi à capital paulista para assinar um protocolo de combate ao racismo no esporte, em parceria com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e o Ministério dos Esportes. Detalhe importante número 1: a solenidade ocorreria durante a segunda partida da final da Copa do Brasil, entre São Paulo e Flamengo. Detalhe importante número 2: Anielle é flamenguista.

Até aí, tudo bem. O uso do avião da Força Aérea Brasileira (FAB) estava respaldado pelo evento oficial, ainda que houvesse uma óbvia união entre trabalho e prazer. A coisa começa a sair da rota quando, dentro da aeronave e rumo ao local do evento, a ministra publica nas redes um vídeo curto e descontraído, em que começa cantarolando “domingo eu vou ao Maracanã… ops, mentira, ato falho: domingo a gente tá indo pro Morumbi…”. O verso é o trecho de O Campeão, uma canção clássica de Neguinho da Beija-Flor cuja melodia é entoada nos estádios pelas torcidas, especialmente as cariocas.

Irreverência e política juntas não são problema, tanto que o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) tem se notabilizado no Instagram e outras plataformas por ultimamente ter aderido a um estilo bem brincalhão para as postagens em seu perfil. A questão é que brincadeira tem hora. E a hora nunca é dentro de um voo pago com dinheiro público num domingo com destino a uma partida de futebol.

Claro que a postagem recebeu uma enxurrada de críticas, algumas justas, outras exageradas. E Anielle Franco não achou que deveria se retratar. Ao contrário, qualificou como “inacreditável” ser questionada “por ir fazer seu trabalho de combate ao racismo”. Fez uma sequência de tuítes para mostrar que sofrera “violência política” em relação ao episódio.

No entanto, no saldo da viagem oficial, sua postagem foi apenas uma pequena gafe tendo em vista o que fez a chefe de sua assessoria especial. A começar por um story no Instagram, em que Marcelle Decothé, também rubro-negra, expôs tudo que não deve vir de alguém dos quadros do Ministério da Igualdade Racial. Infiltrada entre os são-paulinos, tirou uma foto e escreveu ao postar: “Torcida branca, que não canta, descendente de europeu safade (sic)… Pior de tudo de pauliste (sic)”. Um curto texto-chorume de preconceito e xenofobia.

Para começo de conversa, o uso do pronome neutro, por si só, já seria alvo de ironias da extrema-direita. Mas isso não é nenhum problema. Só virou a cereja no bolo – já que a forma engajada de escrever tem como mote o respeito e a visibilidade às diferenças – diante da ignorância cristalina demonstrada pela declaração.

Marcelle Decothé desconsiderou, ao mesmo tempo, o lugar de fala e a função pública que ocupa em meio às questões estruturais do Brasil e as especificidades conjunturais do futebol como entretenimento. A realidade social impõe que um estádio numa final de competição nacional seja lotado praticamente apenas por brancos, porque não é novidade que o silencioso sistema de castas multissecular deste País impôs à imensa maioria dos negros outro território que não o das arenas de futebol com ingressos caríssimos.

“Pauliste” só piora tudo. Porque branco, preto, amarelo, rico, pobre, ateu, evangélico, homem, mulher, hétero e trans… são “tudo pauliste” também. A rivalidade entre Rio e São Paulo teve seu auge há um século, o que mostra certo descompasso até para aludir uma eventual brincadeira provocativa.

Como cotista que foi graduada em Defesa e Gestão Estratégica Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também se tornou mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos, Marcelle sabe de tudo isso.

Anielle e Marcelle, ironicamente, são marcadas desde a certidão de nascimento pelo ferro em brasa colonialista. O caso da ministra com a brincadeira dentro do voo é perdoável. Nenhuma pessoa pública está imune a cometer deslizes e, quando eles acontecem, as críticas vêm. Já Marcelle foi além do tolerável. Não foi apenas um “erro: foi preconceito, foi xenofobia. Na veia. Isso afora outras postagens em que ela ataca a CBF, xinga a diretoria de seu próprio time e mistura o evento oficial com os perrengues do jogo a que foi assistir.

Não se deve esperar menos do que muita indignação quando servidores públicos em cargos de confiança passam a impressão de total descolamento da realidade, no que diz respeito a sua função.

A causa da igualdade racial é importante demais para ser tratada por gente debochada. E quem mais perde com isso são justamente os que luta com seriedade por tais políticas públicas. Mas tem também quem lucre: a extrema direita segue com material farto para atacar o governo atual na pauta de costumes, desviando o foco dos crimes cometidos – na pandemia, na educação, no meio ambiente, enfim, no conjunto da obra – pelo governo golpista que foi derrotado nas urnas.

Por isso, episódios como o do fim de semana, em uma pasta tão visada ideologicamente, são falhas enormes. Numa guerra cultura, é preciso ter senso estratégico. A luta racial é importante demais para estar sob o comando pessoas sem ideia da função que ocupa.

Resultado: perderam uma batalha. A munição de ataque entregue de mão beijada pela equipe de Anielle foi tão comemorada pelos bolsonaristas quanto o título da Copa do Brasil pelos são-paulinos no Morumbi.