Ana Carolina Coelho e Aline Bouhid

A vida nos toma de assalto e tira nosso fôlego como mães. Como assistir a uma tragédia como a de ontem e não ter inúmeras dúvidas e preocupações sobre o futuro de nossas crianças? Pensando nisso, o “Conversas de Mãe” dessa edição veio um pouco diferente.

Eu, Ana Carolina Coelho, e Aline Bouhid fomos conversar com duas feras no assunto: Brenda Vanessa Pereira Soares, Assistente Social; Especialista em Gestão Universitária pela Universidade Estadual do Maranhão; Mestra e Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão e atualmente atuando na 2° Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de São Luis/ TJ-MA, e Marcella Brito, Psicanalista, professora, escritora e pesquisadora. Mestranda em psicologia social, especialista em teoria psicanalítica. Atende jovens e adultos de modo remoto, oferece supervisão clínica e cursos nas áreas de saúde mental e psicanálise. Mãe do Fernando, Miguel e Isabella.

Espero que essa conversa seja, para vocês leitoras e leitores, tão esclarecedora como foi para nós. E vamos conversar? Há muito o que ser dito ainda sobre as maternidades!

O que leva um adolescente a adentrar em grupos extremistas?

Marcella Brito – A adolescência é um período de grandes e intensos conflitos e ambivalências. Podemos pensar que este sujeito encontra-se no “limbo” entre a infância e a vida adulta, há uma carência de um repertório simbólico suficientemente desenvolvido para que se possa nomear objetivamente seus afetos e desejos. Concomitantemente há uma busca interna por referências que possam lhe assegurar um ” lugar de ser e existir” em sociedade. E é nesse contexto que os grupos assumem um lugar crucial dentro do universo do adolescente: ideias, crenças, interesses que aproximam-se daquilo que esse jovem entende como seu e que alimenta esse processo de identificação… Como não há um amadurecimento emocional pleno, os extremos acabam seduzindo esse jovem que encontra nesses espaços uma espécie de decodificação para seus anseios, agressividade, impulsividade e demais afetos desconhecidos até então. Podemos considerar também a inferência da cultura nesse circuito: a franca reprodução e glamourização de violências e a massificação de discursos de ódio presentes em filmes, séries, jogos, músicas e demais produtos que são consumidos por esses jovens, o que pode reforçar a ideia disfuncional de que é preciso dominar, subjugar, violar para se obter poder, status e algum reconhecimento no laço social; na psicanálise chamamos de criação de um” falso self” esse movimento de criação de uma “personalidade distorcida” a fim de se adequar às demandas de um ambiente hostil e/ou ser aceito por esse.

Brenda Vanessa Pereira Soares – No meu ponto de vista enquanto assistente social, penso que não há uma única razão para responder a essa questão. Os motivos podem ser diversos, até porque estamos falando de pessoas com diversas subjetividades e vivências além, claro, do contexto em que esse adolescente está inserido. Porém, é importante destacar que vivemos nos últimos anos no Mundo (e sobretudo no Brasil) um avanço de ideologias conservadoras e extremistas, onde a violência é colocada como alternativa para a resolução dos problemas sociais do país.

Por que presenciamos uma quantidade cada vez maior desse processo de radicalização?

Brenda Vanessa Pereira Soares – Falando da especificidade do Brasil, é importante destacar que nosso país já nasce a partir da violência: contra a população indígena, a escravização do povo negro, com base no patriarcado, como sistema social composto por ideologias de inferiorização das mulheres. Assim, uma vez que nos últimos anos a ideologia conservadora e extremista da extrema-direita ganha espaço inclusive no cenário político brasileiro através da Internet (redes sociais) os jovens, que estão em fase de construção de suas identidades, acabam se tornando alvos mais fáceis e até mesmo propagadores e executores de atos extremistas, como vimos recentemente no atentado à escola que matou uma professora e deixou alguns alunos feridos. Esse adolescente já havia sido transferido de outra escola justamente porque utilizava-se das redes sociais para ameaçar colegas com armas de fogo, conforme vinculado ontem em outro veículo de imprensa.

Marcella Brito – A história da civilização se desenrola através de grandes conflitos, guerras e violências. A agressividade é algo inato ao ser humano, inicialmente como um instinto de sobrevivência que a posteriori é potencializada pelo meio através das dimensões de poder inscritas nos laços sociais. A radicalização não é algo novo, podemos observá-la em vários momentos da história mundial como na inquisição, colonização etc. Talvez a proporção e o potencial influenciador que esta radicalização esteja operando no contemporâneo se apresente como algo novo: hoje tudo está ao alcance de um click, em tempo real, sem o registro da impossibilidade ou da distância geográfica. Num tempo onde a internet das coisas arremessa o jovem numa quantidade infinita de informações e ideias sem a fiscalização full time de um adulto que possa lhe auxiliar na “filtragem e elaboração” desse conteúdo, há uma ruptura na lógica de seguridade, a ideia de se estar ” dentro de casa” como garantia de proteção precisa ser repensada por pais e cuidadores com urgência, mais do que presença física é indispensável interesse pela “casa interior” desse jovem.

Como a família ou a escola pode ajudar para diminuir essa atração pelos extremos?

Marcella Brito – Gosto muito da frase que nomeia um livro de um teórico da psicanálise chamado Winnicott: “Tudo começa em casa”, pois de fato a família (enquanto ambiente, lugar de cuidado) é o primeiro laço social instituído da criança, é através da parentalidade que os primeiros vínculos afetivos se inscrevem e o mundo exterior lhe é apresentado, um segundo núcleo crucial é a escola, essa parceria precisa perdurar por toda a fase de desenvolvimento emocional desse jovem, ou seja, um ambiente facilitador, que acolhe e observa a subjetividade e potencialidade desse indivíduo tende a promover uma construção de um ser mais equilibrado em suas relações interpessoais, seguro, empático e com senso de coletividade. É salutar que haja um diálogo, uma parceria entre pais e a escola, inclusive no período de adolescência, pois a tendência é que essa articulação diminua ou se perca com o passar dos anos, talvez aí esteja o erro. Embora seja interessante oportunizar uma certa autonomia a este adolescente para que consiga localizar seu lugar no mundo, é preciso considerar que esse ainda está em processo de desenvolvimento, a independência precisa ser relativa; os pais (independente do registro biológico ou de gênero) necessitam assumir seu lugar de orientadores, terceirizar a função de cuidado socioafetivo à escola pode significar a ruptura de um vínculo importante para esse jovem, que precisa de referências para se sentir seguro diante das instabilidades internas e do meio. É importante pontuar que quando falamos em “pais” não estamos dentro de um discurso familista que restringe esse lugar ao significante homem/ mulher, biológico ou não, mas sim a uma função que pode ser exercida por qualquer pessoa que se disponha a cuidar, orientar e que adote essa filiação simbólica.

Brenda Vanessa Pereira Soares – A família E A escola tem o dever de desde muito cedo desenvolver nessa criança e/ou adolescente, independente de ideologia a qual acredita, o respeito às diferenças, o combate às opressões e fortalecimento da autoestima. Combate ao machismo, ao racismo, à intolerância religiosa, o respeito à diversidade sexual e o combate ao bullying devem ser pautas fundamentais nesses espaços de socialização. Eu, por exemplo, tenho um filho de 1 ano e 7 meses, e sempre faço um momento de leitura durante o dia, mesmo que a rotina seja apertada. Nessas leituras eu seleciono livros que versam sobre as temáticas que mencionei acima. Tento também reduzir ao máximo o uso de telas, ocupando-o com brincadeiras e áreas livres fundamentais ao pleno desenvolvimento.

Como a escola ou a família podem evitar esse caminho?

Marcella Brito – Me parece essencial a atenção, o diálogo, o interesse nesse jovem e um trabalho constante de conscientização acerca da importância da respeito a diversidade. Outro caminho importante é a facilitação e promoção de um espaço de fala e escuta sem julgamentos no ambiente escolar, um trabalho psicoeducativo no sentido de acolher as narrativas e auxiliar o trabalho de nomeação dos afetos desse jovem.

Brenda Vanessa Pereira Soares – Complementando a questão anterior nas escolas essas temáticas ( de combate às opressões) devem ser centrais nos currículos e nos projetos pedagógicos. Devem ser desenvolvidos projetos e atividades diversas a respeito, além de formação com professores e demais funcionários das escolas, bem como com os pais, no intuito de que sejam multiplicadores de tais ensinamentos.

Quais seriam os principais sinais de alerta?

Brenda Vanessa Pereira Soares – É muito difícil identificar sinais de alerta, principalmente porque muitos pais estão na correria do dia a dia e ainda tem a questão das subjetividades…mas veja bem: introspecção, comportamento violento, abuso de telas, posicionamentos intolerantes e preconceituosos podem ser um alerta para os pais procurarem ajuda!

Marcella Brito – Os principais sinais de alerta são as mudanças comportamentais e de interação em casa ou no ambiente escolar, por isso essa aliança entre os pais e a escola é primordial. É fundamental ter atenção ao excesso de reclusão, maior irritabilidade, mudanças na forma de se vestir e na rotina, além dos materiais que este jovem consome. A busca por apoio profissional também é super interessante nesses casos, não somente direcionado ao jovem em questão, mas também aos cuidadores para que possam atravessar esse momento de modo mais assertivo, uma vez que esse período pode suscitar muitas questões internas desses pais pois está fase os convoca a se haver com sua própria história familiar e adolescência.