Judas acreditou que Jesus “escaparia”. Mas, ao perceber seu erro, se matou. Traidores não se suicidam, seguem suas vidas

 

O escritor Amós Oz (Amós Klausner é seu nome de batismo) morreu em 2018, aos 79 anos, sem o prêmio Nobel, embora merecesse. Foi indicado, e como eu disse, merecidamente. Mas muitos merecem, o prêmio é um só (por ano) e alguns, como ele, têm que ficar de fora. Oz fechou sua produção com o livro “Judas”, de 2014, que chegou até nós no ano passado, ou seja, foi traduzido para português em 2019. A edição é da Companhia das Letras, tradução direta do hebraico por Paulo Geiger, 362 páginas.

Amós Oz era tido como o mais lido autor israelense (seguido de David Grossman e A. B. Yehoshua), com vasta produção (cerca de 30 livros escritos), muitas traduções mundo afora. Boa parte de sua obra é encontrada em português (inclusive sua autobiografia “De Amor e Trevas”). Pacifista, francamente adepto de uma convivência entra árabes e judeus, não deixou de experimentar a antipatia de alguns radicais.

“Judas” é um romance. É uma ficção permeada pela realidade do drama palestino que permanece sem trégua desde a Assembleia Geral da ONU, de 1948, que criou em tese dois Estados, um judeu e um palestino, dos quais só o primeiro se concretizou, com o amálgama das perseguições europeias aos judeus, e principalmente do Holocausto.

Os personagens do livro são Shmuel, um estudante judeu, frustrado pelo insucesso financeiro familiar que o fez abandonar a faculdade, e que também foi desprezado pela noiva; Wald, um inválido singularmente lúcido, mas recluso desde que perdeu o filho na guerra árabe-israelense; e Atalia, viúva, nora de Wald, uma mulher madura, bela e irremediavelmente fechada em si mesma. Até porque é também filha de um dissidente do líder judeu (e primeiro-ministro de Israel) Ben Gurion, que por sua dissidência foi considerado traidor, e morreu isolado e em desonra na mesma casa.

Em fins de 1959, Shmuel, sem trabalho, atende um anúncio e se apresenta para cuidar de Wald, que mora em uma casa onde reside também Atalia. Passa a residir ali, e nesse microcosmo a relação entre os três personagens reflete o drama de Israel e seus vizinhos árabes, além da inevitável atração de Schmuel pala misteriosa e inalcançável Atalia.

Em paralelo, Amós Oz lança uma das mais instigantes indagações bíblicas, via dos estudos que Schmuel desenvolve, mesmo afastado do meio acadêmico, para uma tese que pretende desenvolver, e que resume no título “O Evangelho Segundo Judas”.

Um Schmuel socialista, logo internacionalista, se dá bem com Wald, um pacifista que nunca sai de casa, mas que se mantém perfeitamente informado, enquanto a atraente Atalia se mantém sempre distante. E nas suas pesquisas e nos seus estudos, nas suas discussões com Wald, vai se formando a contradição que Amós Oz coloca no centro do seu livro: foi Judas, de fato, um traidor?

Todos os seguidores de Jesus eram pequenas figuras das margens do mar da Galileia: pescadores, pastores. Judas, um abastado, homem de propriedades, foi enviado como espia pelos sacerdotes de Jerusalém, intrigados pela crescente popularidade daquele nazareno amoroso e afável. Judas passa a ser um dos seguidores de Jesus pela Galileia, mas atraído pela bondade, profundidade e poderes do chefe, logo se tornou o mais próximo dos seguidores de Jesus, e seu mais entusiasmado discípulo.

O que seria traição, na verdade seria um gesto de entusiasmo de um seguidor cego: Judas acreditava que, convencendo Jesus a pregar em Jerusalém, logo este seria preso, julgado e até sentenciado à morte. Mas não era o Messias um homem mortal, e nem podia sê-lo quem andava sobre as águas, multiplicava pães, exorcizava demônios, curava enfermos e até ressuscitava os mortos. Não, Jesus no momento fatal, faria o maior de seus milagres e escaparia de qualquer castigo mundano, pois não era desse mundo. Esse seria o grande momento de todos os homens de boa vontade, e o ponto de partida da religião das religiões.

Na teoria de Schmuel e Wald (e de Amós Oz), Judas não traiu Cristo. Apenas não acreditou que ele aceitasse a morte, e dela saísse com um chamamento ao Pai, que o salvaria com raios de fogo, num enorme milagre que faria crer todos os incréus.

Ao ver que Jesus morria, Judas entrou em pânico, que o levou ao suicídio. Traidores não se suicidam, seguem suas vidas. Judas não negou Jesus, como fizera Pedro. Trinta moedas nada representavam para ele, rico proprietário de terras. Seria traidor? Judeus eram todos, ele inclusive. E daí, fala o personagem Wald: “Em todas as línguas que conheço e também nas que não conheço, o nome Judas passou a ser sinônimo de traidor. E talvez também sinônimo de judeu. Para o cristão simples, todo judeu está contaminado com o vírus da traição…”.

De fato, quantas perseguições, pogroms e extermínios não tiveram origem nesse trecho bíblico e nessa pretensa traição de Judas, principalmente na Europa? Justamente no mundo ocidental, que se fez dentro da moral cristã?

Judas pode ter se convencido de que, a se aceitar essa interpretação, naquele momento em que Jesus morria na cruz, sua crença se desmoronava. Imaginava morta uma crença que hoje, vinte séculos depois, ainda está na base do que se pode de bom e tolerante esperar da humanidade, e na frase que vale por um tratado inteiro de filosofia: Não faça aos outros o que não queres que te façam.