Livro revela que Hitler usava drogas ao mesmo tempo que levava a Alemanha à guerra e ao desastre

29 novembro 2020 às 00h00

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Militares da Alemanha nazista usavam drogas parra se sentirem mais fortes e até “invencíveis” no campo de batalha
De Aveiro, Portugal — Norman Ohler é um romancista alemão bem-sucedido, tendo publicado três novelas bem aceitas pelo público internacional e escrito argumentos para o cinema. Mas seu último livro, já sucesso e campeão de vendagem, traduzido em trinta línguas, foge à sua linha ficcional. “Delírio Total — Hitler e as Drogas no Terceiro Reich (tradução portuguesa de Pedro Garcia Rosado para a editora portuguesa Vogais, de 2017) é um uma história documentada. E muito bem documentada, diga-se.
Ohler teve acesso a arquivos ainda não publicados, apesar de sua importância, como os registros minuciosos do dr. Theodor Morell (o mais famoso médico nazista) sobre as medicações aplicadas em seu paciente A (Adolf Hitler) e em outras figuras de proa da Alemanha nazista. Isso reforça a tese de muitos historiadores sobre o nosso ainda incompleto conhecimento sobre o maior conflito da humanidade.

Quem me chama a atenção para o livro é o engenheiro Marcos de Castro, de Brasília, um dos estudiosos brasileiros sobre a Segunda Guerra Mundial que mais pesquisaram sobre ela, nem só em leitura, mas também no campo. Marcos de Castro já esteve pessoalmente nos principais campos de batalha da Europa, inclusive nos mais recônditos da antiga União Soviética, para o que deve ter se desdobrado para conseguir autorizações. É pena que não escreva sobre seus estudos. Não poderia guardá-los apenas para seu deleite, e deveria dividi-los conosco, os curiosos sobre o assunto.
Ohler aborda três aspectos, nas quatro partes e cinquenta e um capítulos de sua publicação. Estes aspectos são os das drogas na população, nos soldados e no ditador da Alemanha, nos doze anos (1933-1945) do nazismo.
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Drogas e o povo alemão
Vejamos o primeiro aspecto: as drogas e o povo alemão em geral.
Quando falamos de drogas de uso popular, devemos nos lembrar que o uso de drogas naturais, de origem vegetal, se perde na poeira dos tempos. Usadas em rituais religiosos, teriam sido descobertas há milênios. Já as drogas sintéticas são bem mais recentes, dos séculos 19 e 20, principalmente. No início do século 19, a droga de uso disseminado entre os ricos da Europa era o ópio extraído da papoula. Coube a um farmacêutico alemão, Friedrich Wilhelm Setürner, em 1805, isolar um alcaloide do ópio, a morfina, que se mostrou não só um poderoso analgésico, mas um atrativo entorpecente, tanto quanto o ópio. Industrializada na Alemanha e depois em toda a Europa, a morfina teria dois importantes auxiliares em sua difusão: a seringa de injeção, inventada em 1853, e as guerras, com milhares de soldados feridos pedindo alívio para as dores — e recebendo morfina.

Em 1859, o químico alemão Albert Niemann sintetizou a cocaína (já conhecida pelo uso ritual ou medicinal nas folhas de coca, na América do Sul e levada à Espanha pelos conquistadores daquele país). Em 1897, outro químico alemão, Felix Hoffman sintetizaria duas drogas, um analgésico leve, a aspirina, e um estupefaciente pesado, a heroína.
Entrava o século 20 com essa múltipla escolhe de drogas, vendidas nas farmácias sem qualquer controle por toda a Europa. Não é de se admirar o largo uso europeu de drogas, principalmente a partir da Primeira Guerra Mundial, ainda mais disseminadas pelo uso militar e pelo estado psicológico das populações, duramente atingidas pela guerra. Os alemães, às suas descobertas dos anos 1800, somariam outras no século 20. Afinal, eram imbatíveis em Química.
Entre os anos 1901 e 1931, os alemães ganhariam 20 prêmios Nobel de Química e Fisiologia, quase um por ano. A partir do final da Primeira Guerra, o consumo de drogas na Alemanha, que já era considerável, disparou. A noite berlinense pertencia a elas. E cerca de 40% dos médicos da capital alemã eram viciados em morfina. Tudo fácil, tudo sem controle. Indústrias químicas que nasceram nessa época floresceram: I. G. Farben, Mercke e Bayer, por exemplo. Somente haveria combate às drogas com a ascensão do nazismo, em 1933. Levantavam-se contra elas os ideais de saúde, força e pureza do regime. Mas outros acontecimentos viriam a seguir, no campo das drogas.
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Drogas e os soldados alemães
Vejamos o segundo aspecto focado pelo livro de Ohler, sobre os soldados alemães e seu uso.
Nas Olimpíadas de 1936, em Berlim, foram usados estimulantes (uma anfetamina chamada benzedrina) pela equipe dos Estados Unidos. Na época, isso não constituía ilegalidade.

Um químico alemão, Fritz Hauschild, do laboratório Temmler, iniciou pesquisas a respeito, e conseguiu sintetizar a metanfetamina, que era ideal pelos seus efeitos estimulantes duráveis e que pareciam isentos de danos colaterais. Patenteou a droga com o nome de Pervitina e iniciou sua produção e venda em comprimidos chamados Pervitin. Não demorou muito para que se espalhasse por toda a Alemanha. Era uma droga antidepressiva, estimulante, dava euforia, tirava o sono, tirava o apetite (o que era um atrativo a mais para as mulheres), aparentemente sem efeitos colaterais e era permitida.
Mas seu uso institucionalizado como arma de combate seria o mais impressionante e viria a seguir, graças ao diretor do Instituto de Fisiologia e Defesa alemão, Otto Ranke, que vendeu a ideia de seu uso na Wehrmacht às altas patentes, vencendo algumas reações.
As reações desapareceriam na invasão da Polônia, onde o uso do Pervitin em combate se generalizou com uma enorme aceitação entre os soldados, que se sentiam mais resistentes, eufóricos e combativos — e principalmente na invasão da França. Conta-se que algumas unidades conseguiram combater duas semanas sem dormir, graças aos comprimidos da empresa Temmler, de quem o exército alemão havia comprado 35 milhões de unidades. O Pervitin chegaria rapidamente à Marinha e à Força Aérea alemã, a Luftwafe. Seria uma importante arma de combate até o final da guerra.
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Hitler como usuário
Vamos ao terceiro aspecto das drogas abordado no livro de Ohler: Hitler como usuário.
São inseparáveis, quando se fala de Hitler e suas medicações, as figuras do médico (que muitos de seus colegas alemães julgavam pelo menos meio charlatão) Theodor Morell e do ditador Adolf Hitler.

O leitor vai encontrar, no livro de Ohler, o relato mais completo surgido até agora de como Hitler, então líder supremo de uma Alemanha que tinha que se mostrar forte, devia para todos os efeitos vender uma imagem pessoal saudável. E como, necessitando cada vez mais de estimulantes para se manter disposto à medida em que a guerra se desenvolvia, foi se tornando um refém de Morell, que cada vez mais lhe administrava, em quantidade e em qualidade, drogas estimulantes e que não só o tornaram um dependente químico, como o levaram a tomar decisões desastradas em estado de falsa euforia, acabando por deteriorar inteiramente sua saúde.
No início, eram apenas injeções de glicose e vitaminas, mas logo, por insistência do próprio Hitler, passou Morell a usar estimulantes cada vez mais fortes, como o Eukodal, um opióide analgésico, chegando a compostos de cocaína, no final de 1944. As tentativas feitas por outros médicos de interromper esse processo redundaram em reações de Hitler contra eles. Havia se tornado prisioneiro de seu dealer, o dr. Theodor Morell.
O livro revela fatos novos, não só referentes ao uso de drogas em meio à sociedade alemã, à vantagem proporcionada pelo Pervitin aos combatentes da blitzkrieg alemã e à medicação usada por Hitler, e minuciosamente detalhada nos diários de Morell. Ohler mostra também, sob nova visão, erros táticos e estratégicos cometidos por Hitler sob efeito de estimulantes e procura, com muita propriedade, interpretá-los.
E um adendo: embora os sinais de danos cognitivos, dependência e até danos mais sérios e permanentes de percepção tivessem sido registrados nos soldados alemães, o Pervitin permaneceu em uso no pós-guerra, e não só na Alemanha. Nos meus tempos de universitário, na década de 1950 e no Rio de Janeiro, sua venda era livre nas farmácias e seu uso frequente pelos alunos, para estudarem à noite, às vésperas das provas. Só foi proibida sua venda livre, no Brasil, em 1963.
Nota
O livro saiu no Brasil com o título de “High Hitler — Como o Uso de Drogas pelo Füher e pelos Nazistas Ditou o Ritmo do Terceiro Reich” (Crítica, 384 páginas, tradução de Silvia Bittencourt).
Opiniões de historiadores sobre o livro
De Ian Kershaw, apontado como principal biógrafo de Hitler: “É um trabalho de pesquisa muito sério e definitivo”.
De Antony Beevor, expert em Segunda Guerra Mundial: “Os historiadores pouco conhecem sobre o universo das drogas. Ohler veio com uma mente aberta e outros interesses e acabou escrevendo um livro fantástico”.