Livro de professor de Yale relata como foi a operação para retirar 14 mil crianças de Cuba
27 dezembro 2014 às 12h23
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Em tempo de reatamento de relações entre Cuba e Estados Unidos, vale a pena ler o livro “À Espera de Neve em Havana”, um relato pungente e de alta qualidade literária de um menino cubano que foi obrigado a sair de seu país e imigrar para outra nação, e sem os pais
Carlos M.N. Eire é um historiador e escritor, doutor pela Universidade de Yale, onde ocupa a cadeira de professor de História da Religião. Nascido em 1950, em Havana, emigrou em 1961, juntamente com um irmão, para os Estados Unidos, desacompanhado dos pais, na ação da Igreja Católica e do governo dos EUA chamada Operação Peter Pan. Falamos dessa dramática operação, aqui na coluna, na edição nº 2047, de 28 de setembro deste ano. Carlos Eire tem bom currículo acadêmico: antes de lecionar em Yale (1966), foi professor da Universidade de St. John, em Minnesota, e da Universidade da Virginia. Estagiou por dois anos na Universidade de Princeton. Entre vários livros de que é autor, pelo menos dois foram traduzidos no Brasil. Um deles, “Uma Breve História da Eternidade” (Três Estrelas, 328 páginas, tradução de Rogério Bettoni), é um atraente apanhado histórico sobre a Vida Eterna, tal como a encararam os religiosos, principalmente na Europa medieval e moderna. Falo religiosos aí incluindo filósofos, teólogos, sacerdotes e o povo em geral.
O prolongamento da existência além da vida terrena, embora fora da capacidade humana de entendimento, e negada pela ciência, sempre apaixonou o homem, e ocupou seu imaginário. Eire mostra a evolução desse conceito de Eternidade, como impregnava a crença religiosa das várias épocas, suas implicações no cotidiano das pessoas, sua transformação com a Reforma e com a secularização da sociedade europeia. É um livro atraente para quem gosta de história, agradável e fácil de ler e obrigatório para quem, além de história, se ocupa também da religião.
O outro livro de Eire traduzido cá por nossos lados é “À Espera de Neve em Havana” (Globo, 496 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite) . Sucesso nos EUA, premiado com o National Books Award de 2003 na categoria não ficção, um dos mais categorizados prêmios literários, o livro ganhou o mundo todo. É um relato biográfico de Carlos Eire na sua infância cubana, embora lance alguns lampejos sobre seus primeiros anos no exílio norte-americano. Poder-se-ia tomar o livro como um relato inteligente sobre a meninice de um garoto cubano, visto pelo adulto que é agora, com sua visão crítica dos amigos, dos parentes, dos colegas (Eire foi colega de escola de um dos filhos do ditador Fulgência Batista). Ou como a sequência divertida das peraltices de um garoto ativo, observador e curioso, dentro das peculiaridades locais — Cuba era então uma ilha capitalista, de certa forma cosmopolita, liberal. Mas é muito mais que isso, esse rico livro de Carlos Eire. Não é um Cazuza, de Viriato Correia, nem um diário de Anne Frank, mas alguma coisa entre os dois.
Até 1959, Carlos Eire é um garoto como qualquer outro. Talvez um pouco mais observador, talvez um pouco mais memoriado. Tem um pai juiz, que se julga reencarnação de Luís XVI, e uma mãe com leve deficiência física. Tem um irmão mais velho, que é para ele uma espécie de exemplo, principalmente pela audácia, e um irmão de criação, também mais velho, que ele detesta. Diverte-se como todo garoto, tem os mesmos gostos. Exagera um tanto na sua inimizade aos lagartos, que em Cuba são abundantes.
A partir do ano em que Fidel desce de Sierra Maestra, para encanto de todos, o garoto começa a observar as mudanças que só entenderá por completo muitos anos depois. Desaparecem os religiosos e suas escolas são fechadas; as casas de amigos ricos mudam de mãos e passam a abrigar os poderosos do regime; desaparecem as guloseimas de que a garotada gosta; os filmes americanos de caubói ou de aventuras no mar, tão apreciados por garotos e adolescentes, são substituídos por insossos documentários de doutrinação política. E os colegas, amigos e vizinhos de sua idade começam a desaparecer, silenciosamente. É que a operação Peter Pan começou.
Pais cubanos, primeiro os ricos, depois os da classe média e finalmente também os pobres estão enviando para Miami os filhos, com apoio da Igreja Católica, por intermédio de um jovem bispo irlandês da prelazia de Miami, D. Bryan O. Walsh. Valem-se, para tentar livrar os filhos da pregação comunista e materialista, da permissão que têm as crianças, mas não os adultos, de deixar a ilha. A maioria desses pais acredita que dentro em breve Fidel Castro deixará o poder e tudo voltará à normalidade democrática, quando poderão trazer de volta seus garotos. Outros poucos, mais experimentados, conscientes do que é um regime comunista, sabem que possivelmente jamais poderão rever seus pimpolhos, mas sabem também que, com todo o sofrimento do desenraizamento e da falta dos pais, eles terão melhores possibilidades de futuro numa democracia.
A Operação Peter Pan vai retirar de Cuba cerca de 14.000 crianças e adolescentes, nos anos 1960, que serão distribuídos por 36 Estados norte americanos, adotados por cubanos exilados, por casais americanos, ou simplesmente viverão em abrigos e orfanatos até que possam levar vida independente.
Carlos Eire vê chegar sua vez, e segue com o irmão para os EUA, onde a mãe irá encontrá-lo alguns anos mais tarde. Nunca mais verá o pai. Sua narração, quando fala do exílio, mostra que a Operação Peter Pan nunca poderia ter esse nome. O personagem Peter Pan é aquele que se recusa a crescer e abandonar a infância. Os milhares de Peter Pan da operação de D. Bryan O. Walsh viram-se na contingência de passar da infância à maturidade em poucos meses, como aconteceu com Carlos Eire e o irmão. Desprovidos, da noite para o dia dos abrigos materno e paterno, forçados a entender uma língua muito diversa da sua e nela se fazer entender, tendo que enfrentar preconceitos e às vezes maus tratos, ganhando com muita dificuldade seu próprio sustento, viram-se na contingência de saltar sem transição da condição de criança para a de adulto, exatamente o inverso do que caracterizava Peter Pan.
Não se sabe quantas dessas crianças-adultos se perderam nos desvãos do desequilíbrio emocional e não atingiram o objetivo que tão sofridamente seus pais desejaram para eles. Mas se sabe que, tivessem permanecido em Cuba, nada mais poderiam alcançar do que uma vida miserável e sem liberdade. Carlos Eire foi além do que sua mãe (que pôde ao menos contemplar parte de seu sucesso) e seu pai esperavam. Foi muito além, material e intelectualmente, que a maioria dos naturais dos EUA. Este seu livro, mais que um relato de aventuras de infância e adolescência, é um alerta e deixa uma lição: os males da tirania, seja ela qual for, são muito mais amplos, no espaço e no tempo, do que podemos imaginar.