marcio111
Marcio Thomaz Bastos: morto, o advogado de parte da cleptocracia tropical virou santo em artigos e reportagens publicados nos jornais | Foto: Nelson Jr./SCO/STF

“Mas sabe o senhor por que somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples: para com eles não existe obrigação.”
[“A Queda”, de Albert Camus]

Não faz muito tempo, faleceu entre nós de uma figura pública de comportamento discutível, que costumava receber críticas bastante ácidas da imprensa. A surpresa veio no dia mesmo do enterro: uma unanimidade de elogios, na mesma imprensa. Cheguei a comentar, aqui mesmo na coluna, que às vezes no Brasil é mais confortável estar morto do que vivo (falava, é mais que evidente, do conforto moral). Essa é uma característica nossa, é mais uma jabuticaba: a morte redunda numa imediata beatificação e o velório já é palco da canonização do de cujus, de uma maneira quase geral.

A história agora se repete, superlativamente. Morto na semana passada, o advogado e político
Marcio Thomaz Bastos foi alvo deste comportamento à exaustão. Noventa e nove por cento dos necrológios impressos, televisivos e irradiados exaltavam a figura do falecido com os mais positivos adjetivos. Tornou-se, da noite em que ainda vivia, para o dia em que morreu, um Pai da Pátria, um Varão de Plutarco. Pouquíssimos os que, muito timidamente disseram algum “não é bem assim”.

Não faz bem à história esse comportamento abertamente condescendente. E não só a ela, história, que é passado. Tampouco faz bem ao futuro, que pede exemplos, e onde, para se usar figura bem atual de retórica, há sempre uma estiagem de exemplos a serem seguidos. Maquiagem dos fatos reais, eis uma farsa.

Voltaire dizia que aos vivos devemos respeito, e aos mortos devemos verdade. Não conheci pessoalmente Marcio Thomaz Bastos. Falei com ele ao telefone por duas vezes, ainda no final da década de 1970. Foi interessante: um amigo de São Paulo, honesto, mas temperamental, reagiu a uma ofensa agredindo severamente uma pessoa em local público. Foi preso em flagrante, respondia a processo e necessitava de um bom advogado. Era um homem de posses. Pediu-me para falar com Bastos, já conhecido como um dos melhores e mais caros criminalistas da Pauliceia, que ele não conhecia. Ponderei que também não o conhecia, mas ele insistiu: Marcio Thomaz Bastos dava-se muita importância, tinha vasta clientela e talvez não o atendesse. Já eu, era um ex-governador… Diante de sua insistência, liguei para Bastos, e expus a questão. A resposta foi que, sim, a causa lhe interessava, e custaria um determinado valor. Pediu uma resposta em 24 horas.

Com a concordância de meu amigo, voltei a ligar no dia seguinte. Para minha surpresa, Bastos me comunicou que não prosseguiria na negociação, pois havia combinado defender… a parte contrária. Ficou-me uma má impressão, de um leilão entre dois possíveis clientes em litígio.

Lembrei-me do fato quando vi sua nomeação para ministro da Justiça de Lula, e muitas vezes critiquei aqui sua atuação na vida pública. Não concordo com as louvações que recebeu quando de seu falecimento precoce, logo lamentável. Concordo que foi arguto, inteligente, conhecedor como pouquíssimos dos meandros da advocacia criminal. Chegou, nos últimos tempos, a ser chamado de “God” pelos advogados dos mensaleiros, tal a sua proeminência entre os colegas, reverentes ao seu preparo e inteligência. Talvez devesse — e poderia fazê-lo — selecionar um pouco melhor sua clientela, por critérios outros que não o do saldo bancário. Usaria melhor sua inteligência. Mas não é questão que nos diga respeito; diz respeito apenas a ele e ao Criador, a quem deve, nesta hora, prestar contas.

Não quero, pois, me referir ao advogado, mas ao homem público, ao ministro e petista. A verdade é que foi figura central para que a impunidade, ainda que em parte, prevalecesse no mensalão. A sua tese do “caixa dois de campanha”, se não triunfou sobre a tese de roubo escancarado foi apenas devido à pertinácia de Joaquim Barbosa. Mas a cúpula petista, ao contrário dos empresários envolvidos, embora todos igualmente culpados, já está fora das grades, e até fazendo suas viagens de recreio, disfarçadas de trabalho. Em grande parte agradece a Marcio Thomaz Bastos por isso.

O célebre advogado foi ainda figura central em evitar o impedimento de Lula, que parecia inevitável. Bastos foi quem, com Antônio Palocci, convenceu Fernando Henrique Cardoso a se acovardar e fazer recuar a oposição, que já se aprestava a requerer um impeachment.

A continuidade do petismo, assim obtida, até hoje nos estiola como brasileiros. Vide o Petrolão, escândalo símbolo dessa continuidade. O desarmamento dos corretos, a omissão do desarmamento dos bandidos e o desrespeito ao resultado do referendo sobre o desarmamento tiveram também o concurso firme de Marcio Thomaz Bastos. O resultado, para o Brasil está à vista: mais de 50 mil assassinatos por ano, uma população inerme, a marginalidade superconfiante, ciente de que o governo fez o favor de desarmar suas vítimas.

A tentativa — felizmente fracassada — de transformar a Po­lícia Federal em polícia política tam­bém pode ser creditada a Bas­tos. Nossa fraca memória não traz à tona as operações espetaculosas, sempre com a presença de uma televisão escolhida a dedo, “prendendo ricos pela primeira vez na história deste país”. A maioria dessas prisões em nada redundou, a não ser espetáculos e jactância de Lula. Sigamos Vol­tai­re: a morte não pode elidir a verdade.